Neolulismo, a doença infantil do PSOL, e a utopia da ‘Frente de Esquerda’

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Existem alguns setores da chamada “esquerda radical” brasileira que buscam não se submeter ao esquerdismo mais doente do sectarismo predominante nessa estreita faixa do espectro político nacional, mas acabam sucumbindo a uma nova variante dessa doença infantil: o Neolulismo.

Este é o caso do artigo de Guilherme Tartatelli Pontes, Secretário Político Nacional das Brigadas Populares, uma corrente minoritária do PSOL, que busca o diálogo com os militantes do PDT para convocar “unidade” com o PT em uma utópica Frente de Esquerda. Eu respeito a boa vontade sincera nesse tipo de gesto, mas gostaria de esclarecer que o rompimento de Ciro Gomes como líder atual do trabalhismo é eleitoral e historicamente correto.

Primeiro vou tratar do ponto de vista histórico, e até “conceitual”, do porquê considero o rompimento com o PT tanto irreversível como acertado. E somente depois discutirei a “pequena política”, como diria Gramsci, do porquê nem mesmo eleitoralmente faz sentido para o PDT e Ciro voltarem a apoiar Lula e o PT.

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Quando Lênin escreveu o “Esquerdismo, a doença infantil do comunismo” em 1920, o Partido Bolchevique ainda estava consolidando o poder militar na Rússia pós-revolucionária. Trótski estava liderando o Exército Vermelho, organizado a partir das cinzas do Exército russo, que se desintegrou com a dissidência dos soldados que participaram da Revolução em 1917 e os oficiais profissionais do czarismo recrutados através do sentimento patriótico de defesa do território nacional contra as invasões das potências imperialistas vencedoras da Primeira Guerra Mundial.

O Partido Bolchevique estava reconstruindo uma nação soberana semi-feudal tendo que reorganizar a produção, a infraestrutura, as Forças Armadas, e, enquanto isso, os esquerdistas do movimento comunista internacional estavam “denunciando” as burocracias partidárias, o “autoritarismo bolchevique”, as alianças com partidos reformistas e a participação dos comunistas em parlamentos da democracia liberal. É compreensível a morte precoce por colapso nervoso de Lênin, o fundador do Estado russo moderno que foi capaz manter unido o maior território do planeta, do extremo-oriente à Europa, industrializar o país e competir econômica e militarmente com os EUA.

Agora… imagine em 2021: 30 após o fim da União Soviética e da Guerra Fria; nova multipolaridade geopolítica com ascensão da China compradora de commodities e exportadora de bens industriais e capital; reconstrução da influência militar da Rússia neoconservadora sob Putin; um novo estado do mundo disputado cada vez mais por guerra híbrida na internet estabelecida como território central a ser conquistado com as novas tecnologias da informação; o Brasil pós-Constituição de 1988 e hegemonia do PT neoliberal, anti-Varguista e anti-comunista na esquerda, que ficou 13 anos no poder e foi derrubado pelo corporativismo judicial que ajudou fortalecer deliberadamente e que sempre foi um pilar ideológico do petismo desde os anos 1980. José Dirceu e Lula nem sempre foram as vítimas do moralismo anti-corrupção; pelo contrário, eram os arautos do ativismo judicial e da judicialização da política.

Foi o PT que liderou a esquerda na criminalização da política e no fortalecimento das corporações judiciais dando super poderes aos juízes e aos procuradores do Ministério Público, utilizando CPIs e pedidos de impeachment como instrumentos de oposição, ao ponto de Dirceu ter um telefone em seu gabinete chamado “disque-Quércia” para coletar “denúncias anônimas” contra o ex-governador de São Paulo e líder do MDB no Estado.

O PT sempre foi um assíduo comprador e distribuidor de dossiês e matérias bombásticas na imprensa. O PSOL, inclusive, surge em parte contra a “traição” do PT em fazer alianças com os corruptos no Mensalão em 2005. Luciana Genro e outros setores já haviam saído em 2004, mas Ivan Valente, que é o principal senhor feudal de fato do PSOL, só adere ao partido no ano seguinte, escandalizado com a crise moral do PT no Mensalão. À época, Ciro Gomes era Ministro da Integração Nacional, cargo pelo qual tirou do papel a Transposição do Rio São Francisco, e manteve lealdade ao presidente da República, contra o golpismo da Globo e do PSDB naquele momento.

Anos depois, quando a Polícia Federal sob comando de Tarso Genro e, depois, de José Eduardo Cardozo começou a tocar o terror no governo do PT e Dilma trai sua própria base política com um estelionato eleitoral em 2014 aplicando aumentos represados de tarifas públicas e um violentíssimo ajuste fiscal que empobreceu a população aceleradamente, o PDT liderado por Ciro Gomes foi um dos primeiros e mais agressivos defensores do mandato da presidente eleita contra o golpismo judicial-midiático.

Naquele momento que Ciro e PDT não tinham absolutamente nada a ganhar defendendo um governo completamente desastroso de uma presidente absolutamente incompetente. Quando Lula estava ameaçado de ser preso, Ciro Gomes deu declarações duríssimas e propôs ações práticas para impedir a prisão ilegal do ex-presidente, enquanto o PSOL apoiava a destruição das empreiteiras nacionais sob pretexto de combate à corrupção.

Em 2018, com Lula preso, o PT lança um poste candidato para ir ao segundo turno e manter seus aparelhos de poder estaduais e no Congresso, Ciro isolado fica em terceiro colocado, e o PSOL fez menos de milhão de votos dando “boa noite, presidente Lula” nos debates. Agora, com Lula solto, líder nas pesquisas, Ciro e o PDT mantêm sua pretensão eleitoral novamente para apresentar um projeto para debater o país, mantêm suas críticas ao desastre político e econômico dos governos petistas, e aí, agora, a crítica do PSOL é que Ciro é antipetista?!

Pausa para uma digressão histórico-teórica. Guilherme também faz uma comparação entre “antipetismo” e “anticomunismo” que é superficial. É evidente que em uma sociedade conservadora forjada sob hegemonia geopolítica dos EUA na Guerra Fria o centro da política ideológica das classes dominantes é ser “anti-esquerda”, mas, no caso da debacle do PT, o fator decisivo foi o moralismo anti-corrupção também fortemente construído pelo imperialismo e pelos liberais, como Carlos Lacerda contra o trabalhismo ao longo do século XX. Acusar Getulio Vargas e Juscelino Kubistchek de comunistas até era feito, mas não funcionava; portanto, o centro do oportunismo político da direita (e também da esquerda) contra os governos nacionalistas sempre foi o falso-moralismo escandalizado com a corrupção.

Essa é a ironia histórica. Além de anti-trabalhista, o PT surge também como arauto do falso-moralismo político que levou ao paroxismo no seu próprio governo! Na oposição, a criminalização da política podia até ser um “oportunismo esperto” a ser utilizado contra os inimigos, mas mesmo no poder o PT entregou as nomeações das cúpulas do Judiciário e do Ministério Público para as corporações, e quanto mais pressionado mais entregou, como a Lei da Ficha Limpa posterior ao Mensalão e a Lei da Delação Premiada surgida como resposta às manifestações de Junho de 2013.

E o PSOL sempre lá, atacando o governo ao lado do PSDB e da Globo. Imagine! O PT veio para moralizar a política e foi destruído pelo moralismo! Recomendo o relato de um dos protagonistas desse processo, o ex-juiz e governador do Maranhão, Flávio Dino:

Pois bem. O autor do texto claramente é bem intencionado e busca aproximações na “crítica aos limites do petismo”, mas ele não entende que não se trata de uma questão de nuances em relação à “moderação conciliatória” do Lulismo, e sim de um rompimento efetivo com a hegemonia anti-trabalhista e anti-nacionalista de Lula e do PT. O problema do PT nunca foi a “conciliação de classes”; pelo contrário, Lula é um gênio da política justamente por sua capacidade de articulação e consolidação de alianças. O problema do PT é de projeto e da função que cumpre na formação social brasileira e em relação ao Estado nacional: ser a perna esquerda do neoliberalismo e do imperialismo no combate à Revolução de 1930 que deu início ao Projeto Nacional de Desenvolvimento Soberano do Brasil com industrialização e direitos sociais.

O projeto do PT é a globalização financeira submetida a Wall Street, exportação de commodities, assistencialismo social do Consenso de Washington e corporativismo de altas corporações públicas. A campanha nem começou ainda e Lula já está fazendo promessas para os bancos privados, como abrir o capital da Caixa Econômica Federal para o mercado financeiro. É chocante o nível de comprometimento dele com o capital financeiro.

Não é como se o PT fosse de esquerda e as alianças com partidos de direita o obrigassem a se submeter. É o contrário: o PT hegemoniza mesmo setores burgueses, como foi o ex-vice-presidente José Alencar, um empresário que criticava a política econômica conservadora e a desindustrialização do Brasil sob Lula, justamente para impedir alternativas políticas rebeldes ao neoliberalismo, como era, por exemplo, a aliança da Frente Trabalhista entre Brizola e Ciro Gomes em 2002.

Esse problema das “alianças” é uma falsa questão. É falta de teoria e conhecimento histórico dos pretensos “radicais” brasileiros. A acusação corrente é que o trabalhismo busca uma aliança entre “burguesia industrial” e “trabalho”, e que isso é impossível, pois a “burguesia brasileira é rentista”. Portanto, a direita brasileira é neoliberal, e acabou. Somente a “unidade da esquerda” pode levar o Brasil ao “desenvolvimento que só poderá ser socialista”. Esse é basicamente o trajeto corriqueiro daqueles que se dizem “radicais” contra os “reformistas”. Isso tudo está errado. Tanto em termos de formulação teórica, como histórica.

A “teoria da burguesia nacional progressista” é invenção – vejam só – do PCB de Luís Carlos Prestes e Nelson Werneck Sodré. Lá nos anos 1950, o PCB editou diversas obras e documentos oficiais dizendo que o caminho para o socialismo no Brasil dependia de uma aliança com a “burguesia industrial” contra a aliança do “latifúndio feudal” e o imperialismo. Após a “revolução nacional-democrática”, viria a luta pelo socialismo. Isso tudo é a teoria dos comunistas. Já a história é outra coisa.

A Revolução de 1930 foi uma aliança entre o tenentismo e uma dissidência das oligarquias rurais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais contra a hegemonia de São Paulo. Prestes, como líder do tenentismo, inclusive foi convidado para ser o chefe militar da Revolução, mas recusou pois pretendia fazer uma sua sozinho na qual ele seria o líder máximo a partir do Partido Comunista, e como todos sabemos foi ridiculamente derrotado em 1935, a despeito da ajuda que recebeu da União Soviética. Daí para a frente, a história é conhecida. Com a recusa da esquerda de apoiar a Revolução Nacional iniciada em 1930, Getulio vence todas as resistências e impõe uma ditadura política com amplo apoio das massas organizadas em um Brasil que se industrializava e urbanizava aceleradamente e das novas lideranças militares herdeiras do tenentismo. Com habilidade política ímpar e liderança carismática incontestável, Getulio inicia a construção da soberania econômica e dos direitos sociais do Brasil. Industrialização, infraestrutura, direitos trabalhistas, previdência, educação pública, política cultural, valorização do samba e do futebol, política indigenista, tudo, absolutamente tudo o que se possa pensar de políticas de Estado para o povo, foi Getulio Vargas que criou ou no mínimo iniciou, tendo sido continuado por Juscelino Kubitschek, João Goulart, e interrompido em 1964 pelo golpe militar. Mas o legado de Getulio Vargas e do trabalhismo foi tão poderoso que continuou até mesmo durante a Ditadura, pois o pilar industrializante do Projeto Nacional de Desenvolvimento tornou-se verdadeiramente hegemônico após a Revolução de 1930. Não havia “burguesia industrial” nenhuma, o que havia era um Estado nacional estruturado pela primeira vez para conduzir um projeto de industrialização e direitos sociais que não puderam sequer ser destruídos pelo golpe, a despeito da política econômica concentradora de renda dos militares.

Somente após a década perdida dos anos 1980 e a consolidação do neoliberalismo nos anos 1990 que essa hegemonia é recolocada no sentido do rentismo-agrarismo compensado com assistencialismo social, tendo o PSDB como perna direita e o PT como perna esquerda, e qualquer tentativa de reconstrução do nacionalismo, desenvolvimentismo e trabalhismo pré-64 como inimigo central.

Após o Estado Novo findo em 1945, durante duas décadas, o Brasil foi governado por uma democracia de altíssima intensidade. Diversos projetos populistas disputavam entre si, mas com hegemonia clara dos dois partidos criados por Getulio, o PTB à esquerda liderando os trabalhadores organizados pelo sindicalismo da CLT, e o PSD à direita organizando as oligarquias do interior do país. Essa era a aliança sob hegemonia do Projeto Nacional de Desenvolvimento da Revolução de 1930. O desafio da nação brasileira é forjar uma nova aliança com esta hegemonia: soberania nacional, desenvolvimento industrial e justiça social. Portanto, alianças com o que a esquerda “radical” considera “direita” nunca foram nem nunca serão uma contradição para o trabalhismo.

A duríssima tarefa do PDT, que recaí sobre os ombros de seu maior líder, o cearense Ciro Gomes, é justamente reconstruir essa tradição trabalhista herdeira de Getulio Vargas, combatida pelo lulismo desde 1979 com o “novo sindicalismo”, que chamava a CLT de fascista. Portanto, não se trata de “limites” do PT quando o PDT rompe com o hegemonismo lulista; trata-se de uma contradição de visão sobre o passado, o presente e o futuro do Brasil. O projeto nacionalista, desenvolvimentista e trabalhista é profundamente antagônico ao projeto assistencialista e liberal do PT, mas esse argumento que é eminentemente político é acusado de “economicista” pelo dirigente das Brigadas Populares do PSOL. Essa acusação é superficial e puramente estética, mas trataremos disso em seguida. Por enquanto, basta dizer que o que o militante psolista considera como aspecto “político” é o espectro geral e arbitrário sobre “esquerda x direita”, enquanto a discussão sobre a diferença dos projetos de Ciro Gomes e Lula seria meramente “econômica” e as diferenças do trabalhismo e do petismo na história do Brasil seriam meramente “teóricas”.

O PT combate o PDT desde o nascimento dos dois no processo de redemocratização. Não se trata de dois projetos “próximos”, que devem se aliar para combater a direita. O PT é o partido cujo objetivo é ocupar o poder e realizar o projeto neoliberal assistencialista “pela esquerda”, antagônico ao projeto nacionalista e trabalhista do PDT. E foi bem sucedido nesse processo por quatro décadas. O PT fez oposição a Leonel Brizola nos dois mandatos como governador do Rio de Janeiro, inclusive votando pela rejeição das contas estaduais, foi contra os CIEPs, foi contra a eleição de Darcy Ribeiro, lutou pelo “pluralismo” sindical e pelo fim do imposto sindical, que é basicamente o neoliberalismo no movimento dos trabalhadores ao impor a concorrência de mais de um sindicato por categoria e o fim da autonomia financeira dos sindicatos que ficam a mercê do poder econômico das empresas. O PT foi contra o colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves para por fim ao regime militar e à Constituição de 1988, que foi o diploma legal mais avançado da história de um país marcado pela escravidão e saindo de uma ditadura sanguinária apoiada pelo imperialismo. O “radicalismo” do PT “raiz” dos anos 1980 nada mais era do que um sectarismo para construir a própria estrutura partidária sem compromisso nenhum com os desafios concretos da nação em cada momento histórico.

Este é o mesmo partido que, em 2002, com a perspectiva de poder, antes mesmo de sentar na cadeira, já entregou de bandeja toda a política econômica e monetária para o capital financeiro na “Carta ao Povo Brasileiro”. Palocci não virou neoliberal no dia primeiro de janeiro de 2003. Ajuste fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação sempre foram a política econômica planejada pelo PT. O projeto do PT sempre foi o de demonstrar para o capital financeiro que seria mais capaz de realizar essa política do que o PSDB, pois faria mais assistência social. Com o boom das exportações de commodities isso foi fácil, deu até pra fazer alguns investimentos de infraestrutura relacionados ao setor. Mas nada de política industrial com investimentos públicos, juros baixos, câmbio controlado, política essa que era exigida até mesmo pelo vice-presidente “de direita” José Alencar. Direitos sociais, como a Consolidação das Leis do Trabalho, nunca estiveram no horizonte do PT.

A política “de esquerda” do PT era apenas algum excedente orçamentário para assistencialismo e enriquecimento concentrado do mercado imobiliário com a política de habitação e criação de uma burguesia rentista da educação sustentada com dinheiro público para fundar instituições de ensino de baixíssima qualidade para estudantes em busca de ascensão social, que, ao fim e ao cabo, obtiveram diplomas de graduação para continuar disputando os mesmos empregos de baixo valor agregado, como telemarketing, serviços de restaurantes e hotéis, e, por fim, a uberização selvagem do mercado de trabalho no Brasil. Nada de investimento em tecnologia, pesquisa, indústria, enfim, desenvolvimento das forças produtivas e geração de valor agregado das cadeias de ganhos de produtividade.

Ainda assim, diante de todos esses “limites”, tanto o PDT, como Ciro Gomes, aceitaram a hegemonia do PT conquistada nas urnas. A gestão do neoliberalismo do PT sem dúvidas não era igual a do PSDB. A participação de Ciro como ministro para realizar uma obra de infraestrutura crucial para que o povo nordestino tenha acesso à água é exemplo disso. Porém, essa hegemonia do PT era uma imposição da realidade pós-vitória eleitoral. O que o companheiro do PSOL está querendo é uma submissão ao neoliberalismo do PT pré-eleição.

Brizola cometeu esse erro em 1998 e se arrependeu apoiando Ciro Gomes em 2002. No enterro de Brizola em 2004, Lula foi vaiado por toda a militância trabalhista, não apenas pela política neoliberal que estava conduzindo, mas pelo desrespeito com o qual tratou o último herdeiro criado diretamente por Getulio Vargas. A hegemonia neoliberal consolidada no sistema político de revezamento entre PSDB e PT acabou. A extrema-direita chegou ao poder e a economia política mundial está em crise buscando o caminho para fora do neoliberalismo. Nada pode estar mais correto historicamente do que romper de modo inequívoco com o pilar “esquerdo” do neoliberalismo no Brasil.

Sobre este tema da crise do neoliberalismo e da abertura para uma nova hegemonia para fora do rentismo-assistencialismo periférico conduzido por PSDB e PT muito mais poderia ser dito. Desde uma análise econômica da crise do regime de acumulação pós-fordista e o início de uma transição no sentido de um ainda indeterminado neofordismo, até um exame das dinâmicas políticas da transição do modo de regulação com o retorno do populismo. Mas indico aqui alguns textos complementares nos quais já tratei desses assuntos preliminarmente:

1. “Crise do Pós-Modernismo e ascensão da Revolta Irracionalista“: Neste texto, busco articular a questão das crises estruturais e cíclicas do capitalismo com as reorganizações ideológicas de cada fase histórica do modo de produção.

2. “Ciro Gomes e André Lara Resende: Para além do Plano Real e do nacional-desenvolvimentismo” e “Do monetarismo à MMT, a volta do desenvolvimentismo“: Aqui, há uma análise sobre os pilares econômicos da hegemonia do neoliberalismo no Brasil que já não existem mais a partir da recente intervenção de André Lara Resende no debate público.

3. “‘Buy American’: Biden anuncia a ‘volta’ do protecionismo“: Neste texto, faço uma rápida análise das primeiras medidas econômicas do novo governo dos EUA no sentido de uma transição geopolítica para fora do pós-fordismo. É importante ressaltar que esse texto foi escrito ainda antes das mais recentes medidas no sentido de fortalecimento do sindicalismo na organização da força de trabalho e do pacote fiscal de investimentos públicos na casa dos trilhões de dólares.

4. “O populismo de Boulos e a reconstrução da Hipótese Comunista: Prestes vai voltar” e “Boulos quer ser o Pablo Iglesias (Podemos) e Tsipras (Syriza) do Brasil“: Aqui, há um exame ambíguo no qual busco fazer um balanço tanto crítico dos limites como positivo das potencialidades da ascensão de Guilherme Boulos como líder natural da faixa mais à esquerda do espectro político nacional.

***

Na primeira parte desse artigo argumentei historicamente que PT e PDT representam projetos distintos e antagônicos para o Brasil e, por isso, o rompimento é natural para disputar o futuro da nação brasileira. Contra meu interlocutor, argumentei que sua convocação de unidade com o PT é baseada em uma análise estética e arbitrária do sistema político brasileiro. Pois bem, agora é preciso tratar da “pequena política”, dos arranjos partidários mais concretos e imediatos, e diria até mais mesquinhos. Essas mesquinharias, diga-se, são parte estrutural da política: não existe partido sem estrutura material para sustentar as pessoas que dão corpo à organização política da sociedade no capitalismo. Portanto, sem falso-moralismo, já que o debate é franco e fraterno, tratemos das coisas como elas são, e não percamos tempo com discursos hipócritas.

Guilherme Tartarelli Pontes é dirigente das Brigadas Populares e militante do PSOL, e repito isso com respeito apenas para delimitar o local de onde ele fala, assim como eu sou militante do PDT. Segundo ele, se ACM Neto, Alexandre Kalil, Tasso Jereissati, Gilberto Kassab, Kátia Abreu, Luiz Henrique Mandetta, Rodrigo Maia etc. são “de direita” ou “liberais”, então a única aliança possível para o PDT e Ciro Gomes enquanto partido e líder de esquerda é com o Lula e o PT, a família Campos e o PSB, Guilherme Boulos e o PSOL, Flávio Dino e o PCdoB, Zé Maria e o PSTU, Rui Costa Pimenta e o PCO, Edmilson Costa e o PCB.

Ele considera que isso é a “esquerda” porque são os partidos que vestem a cor vermelha e discursam em alguns casos sobre revolução e socialismo, e em todos sobre, no mínimo, igualdade social. Já demonstramos historicamente que isso é ilusório, o Projeto Nacional da Revolução de 1930 foi realizado em alianças com militares, sindicalistas e oligarquias, e com a oposição de Prestes e dos comunistas. Eu teria estado do lado do trabalhismo do Estado Novo com a CLT, a CSN, e o Ministro da Educação Gustavo Capanema e à direita da Intentona Comunista de 1935, assim como considero que José Alencar, o “empresário de direita”, teria sido um presidente muito melhor do que Lula. Mas o assunto agora é outro.

A verdade é que esses partidos de esquerda pós-redemocratização – os maiores principalmente, PT, PSB, PSOL e PCdoB – buscam, antes de qualquer coisa, consolidar e ampliar (ou sobreviver, no caso do PCdoB) seus aparelhos de poder. Ou seja, o que importa é a quantidade de mandatos, cargos, fundo partidário, organizações da sociedade civil como sindicatos, movimento estudantil etc., que podem ser mobilizados pelos caciques desses partidos, e, se der pra chegar ao poder e fazer o que der pelo Brasil, ótimo.

PSTU, PCB e PCO também buscam isso, mas de forma muito mais sectária. O PSTU aposta no catastrofismo apocalíptico para atrair setores lumpem do movimento operário e obter alguns sindicatos; o PCB cada vez mais se coloca como corrente externa do PSOL para negociar algo para si, principalmente no movimento estudantil; e o PCO busca atuar como tropa de choque psicodélica do lulismo para obter do gigantesco esquema de comunicação do PT alguma estrutura para a dinastia que comanda o partido trotskista-lulista-neymarzista. Isso tudo porque a cláusula de barreira, mas não só ela, a própria reorganização geral do sistema partidário brasileiro pós-impeachment e chegada da extrema-direita ao poder, tende a levar essas seitas partidárias irrelevantes a total extinção, justamente pela falta da estrutura material.

Evidentemente que a política eleitoral do PDT também expressa essa necessidade material. O PDT possuiu uma bancada média de aproximadamente 30 deputados, dos quais há um núcleo ideológico de dois terços bastante sólido. O restante são representantes das dificuldades naturais da construção partidária no Brasil, e de tempos em tempos ocorrem expurgos de elementos que chegam ao limite da convivência plural dentro de um partido, como os deputados expulsos que votaram pelo impeachment de Dilma, ou os neoliberais financiados por partidos clandestinos do capital financeiro que votaram pela Reforma da Previdência etc.

Mas isso é da tradição plural heterogênea do trabalhismo, que tem suas facções de direita e de esquerda. Sempre foi assim nos tempos de PTB, que abrigava marxistas, cristãos, liberais e, ainda, nacionalistas bastante conservadores, até o tempo de Brizola após o general Golbery roubar a sigla trabalhista. Após a morte de Brizola, já passaram pelo PDT figuras como Paulinho da Força Sindical e o finado senador Major Olímpio. O trabalhismo expressa justamente esse sentimento de que o Brasil é uma nação heterogênea e complexa, e o centro de sua política inclusive nos polêmicos debates internos é a Nação, o Desenvolvimento e a Justiça Social, e não a Guerra Fria, o Comintern, a Quarta Internacional e a construção dos sovietes no Brasil.

Portanto, concretamente, a candidatura de Ciro Gomes leva em conta esse norte estratégico: a reconstrução do trabalhismo como força política aspirante à hegemonia no Brasil, e não como força a reboque da hegemonia rentista-assistencial do PT. Para tal, é preciso ampliar suas bancadas parlamentares, cada vez com representantes liderados ideologicamente pelo Projeto Nacional de Desenvolvimento que Ciro apresenta para a sociedade brasileira. Eleger governadores, vice-governadores, compor governos, fomentar seu movimento sindical, estudantil e de identidades, enfim, tudo isso que todos os partidos médios e grandes também fazem. E o tamanho desses partidos, suas características internas e regionais são determinantes nessa análise.

O PT é o paradigma que baliza todos os outros. É o maior partido do país. Possui uma bancada muito grande e organizada pois liderada por um projeto eleitoral muito claro e forte: Lula, um ex-presidente muito popular. Mas não foi sempre assim. Aliás… diga-se… O partido do meu interlocutor é uma dissidência petista, assim como PSTU e PCO que saíram nos anos 1990, o PSOL surge liderado pela trotskista Luciana Genro contra a Reforma da Previdência realizada por Lula, e por Ivan Valente, o inimigo das empresas de engenharia do Brasil que financiavam o PT, que rompe diante do Mensalão. Décadas antes, o PT expulsou a atriz Bete Mendes e outros dois deputados por terem votado em Tancredo Neves contra Paulo Maluf no Colégio Eleitoral da redemocratização. O fato é que todas essas decisões são tomadas pensando no interesse fundamental do partido enquanto estrutura de poder.

Se, nos anos 1980, o PT expulsava deputados por “se aliarem” ao “sistema político”, nos anos 2000 expulsava por votarem contra cortes nas aposentadorias dos trabalhadores, e atualmente não expulsa ninguém; pelo contrário, oferece filiação e estrutura eleitoral para todo e qualquer político com potencial de votos para recuperar os postos perdidos na máquina estatal. Marília Arraes, por exemplo, é uma política de direita de Pernambuco, que rompeu com o comando familiar de seu primo, João Campos, e o PT a filiou para enfrentar a hegemonia do PSB no Estado, ainda que negociando, como fez em 2018 quando retirou a forte candidatura dela ao governo para concorrer como deputada e aumentar a bancada federal do PT. Já em 2020, ela foi escolhida para enfrentar o PSB que estava em aliança com o PDT de Ciro Gomes, dessa vez na capital Recife. Em 2022, nada disso mais importa. Lula quer fazer as pazes com o PSB, e para isso Marília que se submeta novamente a ser deputada mesmo com chance de se eleger governadora, ou que tente a sorte por outro partido… Esse é só um exemplo concreto de como funciona a racionalidade material e negocial do sistema partidário. E isso não é exclusividade do PT “malvadão” sem escrúpulos. O PSOL faz o mesmo tipo de cálculo, mas de acordo com seu tamanho e potencialidade.

Veja o caso de Guilherme Boulos em São Paulo. Com a crise do PT e a covardia de Fernando Haddad, que sabia que seria derrotado de forma humilhante na cidade onde já foi prefeito e não se reelegeu, Boulos cresceu em cima dos votos tradicionais do PT na periferia e na classe média e foi ao segundo turno. Com esse potencial de votos, Boulos é chamado para sentar em salões mais endinheirados da articulação política, como já fez na eleição municipal em encontro com banqueiros, e agora como possível candidato a governador indo se reunir com Marcos Pereira, presidente do Republicanos, partido evangélico ligado à Igreja Universal e base do governo Bolsonaro.

Militantes mais ingênuos do PSOL devem ficar ultrajados e até acusar fake news, já eu considero digna de respeito uma notícia dessas. Mostra que Boulos não está brincando de fazer política. Não à toa o PT o assedia para filiar-se ao partido, mas ele espertamente considera melhor ficar independente no PSOL, mas próximo do lulismo, para crescer no longo prazo. Marcelo Freixo é outro político de alto nível que está cansado do sectarismo do PSOL e cogita sair do partido para liderar uma Frente Ampla carioca no Rio de Janeiro com um palanque duplo para Ciro Gomes e Lula garantindo o apoio de PDT e PT, mas principalmente ampliando para o centro ao buscar o apoio do prefeito Eduardo Paes e de César e Rodrigo Maia. Outros setores do PSOL não têm interesse nisso, pois não têm como horizonte ocupar um governo estadual e apenas manter seus mandatos parlamentares de oposição por princípio. Mas, atualmente, a estratégia mais ou menos geral do PSOL é aderir ao neolulismo para surfar na onda da volta de Lula ao jogo eleitoral enquanto oposição à extrema-direita. Isso funciona para os sectários do partido, porque o PT não está no governo e pode manter um discurso esteticamente mais radicalizado, ainda que mandando os recados de sempre de que fará um governo ainda mais de direita, como as entrevistas de Lula demonstram. Mas também ninguém no PSOL é trouxa, todo mundo sabe que as alianças prioritárias do PT atendem apenas um critério: quem amplia mais no objetivo de voltar ao Palácio do Planalto e a ocupar espaços nos governos estaduais, e não quem é “mais de esquerda”. Lula quer Ciro Nogueira do PP, Gilberto Kassab do PSD, Renan Calheiros do MDB, e Boulos do PSOL se for candidato a governador só terá apoio se passar ao segundo turno, porque, no primeiro turno, o PT tem que ter candidato no maior Estado do país, onde Lula é filiado e acompanha pessoalmente até eleição de sindicato e centro acadêmico.

Em relação às dificuldades das articulações de Ciro Gomes e do PDT para atrair o centro e superar a polarização entre Bolsonaro e Lula também já escrevi muito, e não considero necessário repetir as mesmas análises e diversos argumentos em torno dessa questão. Portanto, concluo indicando os textos nos quais discuto os detalhes da luta pelo centro travada entre Ciro, Bolsonaro e Lula, com um texto em especial no qual discuto o voluntarismo ingênuo da esquerda radical a serviço do oportunismo cínico do petismo “radical”. Basicamente expliquei que o braço de comunicação do PT que incide sobre a esquerda de classe média, a chamada “pequena burguesia radicalizada” como dizia Brizola, incentiva um discurso sectário contra as Frentes Amplas, como a que Ciro Gomes tenta nacionalmente e Marcelo Freixo tenta regionalmente no Rio de Janeiro, em prol de fictícia Frente de Esquerda para manter as bases petistas mobilizadas e também para não perder a influência sobre os partidos aliados, como PSOL e PCdoB. Por outro lado, os dirigentes de verdade do PT que atuam nos bastidores e que falam para o mundo político na imprensa, como José Dirceu e o próprio Lula, atuam para que o PT seja o líder da Frente Ampla, com centrão, com Supremo, com tudo. Não há a menor chance de o PT topar uma candidatura estreita só com partidos de esquerda. Se for para perder a eleição isolado, mas “radicalizado”, como pedem os militantes do PSOL, Lula não será candidato. Ele não está nem aí para “criar uma nova grande maioria”, o que ele quer é recuperar os aparelhos estatais e tocar o mesmo projeto neoliberal “de esquerda” para o qual o PT foi fundado para executar.

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  1. Finalmente um artigo digno deste portal! Porque terem publicado essa porcaria escrita por esse tal Guilherme Tartarelli, é de um insulto! Tartarelli faz a típica comparação do impeachment de Dilma com o Golpe de 64, coisa que nem um adolescente de 13 anos em idade escolar ousaria fazer. Mas os petistas adoram essas comparações supostamente “históricas” (que na verdade são a versão deles, totalmente distorcida dos fatos). Mas para piorar, esse homem chama o PND de “economicista”. Um sofisma perigosíssimo porque busca imputar que o PND só vai se preocupar com economia, tal como fazem neoliberais e marxistas/”comunistas” ortodoxos (hoje todos entregues ao lixo neolulista). De modo que as pautas identitárias made in USA que eles tanto amam, fique de fora. Essa gente odeia o debate econômico porque o que vendem é neoliberalismo + identitarismo enquanto que o PND irá reorientar as lutas de Direitos Humanos para seu real lugar: a busca pela igualdade plena de direitos, oportunidades e deveres. Por não acreditarem mais em igualdade, que sempre foi o norte da esquerda, esses falso-esquerdistas chamam o PND de todo tipo de asneira: “economicista”, “elitista”, “excludente”, etc.

    Que o Disparada não mais publique artigos como os desse Tartarelli. Se for para publicar, que se faça menção de artigos de petistas, mas postados nas redes deles!

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