Lulinha Paz e Amor voltou, mas vai ser difícil tirar o PT do isolamento

Lulinha Paz e Amor voltou, mas vai ser difícil tirar o PT do isolamento lula boulos eunício oliveira mdb aliança renan calheiros
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Após anos de discursos exclusivamente reativos e ressentidos pelas humilhações sofridas como a condução coercitiva, vazamentos de conversas privadas, e, por fim, a prisão, o Lulinha Paz e Amor voltou. Lula finalmente viu justiça ser feita contra a perseguição da facção de extrema-direita do judiciário brasileiro, o Partido da Lava-Jato, ainda que de forma manobrada pela guerra de posições do ministro Fachin na tentativa de proteger Moro, o líder da gangue, de ser declarado suspeito pela corte suprema do judiciário do país. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi o palco de resistência e martírio quando da humilhação da prisão de um ex-presidente, e também da volta triunfal da elegibilidade do carismático e habilidoso conciliador político.

Lula fez um discurso como nos velhos tempos, os de 2002 de Duda Mendonça, não os de 1989. Comemorou em grande estilo a liberdade, tripudiou legitimamente dos algozes da extrema-direita, inclusive os militares bravateiros agarrados em gordos salários do governo, mas rapidamente mandou os recados que há tanto tempo estava desesperado para poder voltar a mandar: o PT quer alianças com o centro, com os empresários (saudades José Alencar), e até com as forças policiais,  nada de radicalismo, Lulinha Paz e Amor é a encarnação da moderação e conciliação.

Outro recado claro foi ‘esquecer’ propositalmente de citar Dilma em seu discurso e pedir desculpas rápida e discretamente após o discurso. Lula precisa deixar os governos Dilma no passado em uma baú escondido e trancado a sete chaves, tanto em relação ao eleitorado que aceitou a queda da incompetente ex-presidente e sequer deu a ela a chance de se redimir como senadora em humilhante derrota na sua terra natal em Minas Gerais, como em relação ao centro político, que odeia Dilma tanto quanto ela odeia os políticos eleitos para o Congresso. Em entrevista recente inclusive, Lula tirou sarro de Dilma ao dizer que ela “nasceu pra cumprir ordens e não pra dar ordens”, devido a terrível incapacidade política da ex-presidente eleita com base na popularidade do antecessor. Chutar Dilma para fora de seu discurso é crucial para Lula sinalizar para toda a sociedade que não pretende deixar essa ala incapaz e anti-política do PT fazer parte de um futuro governo do partido, principalmente para o Congresso, tão mal tratado pela ex-presidente e perseguido pelo lavajatismo que contava com o apoio dela até antes de saírem do controle da própria chefe do Poder Executivo. Enquanto achou que não seria alvejada Dilma deixou os cachorros loucos das corporações judicias perseguirem até mesmo Lula, pois assim ela poderia governar sem a tutela do líder que a elegeu. O resto é história.

Ainda assim, mesmo diante do bem-sucedido retorno pré-eleitoral de Lula, no alto escalão do PT, principalmente no nordeste, onde o partido realmente tem votos e precisa governar estados de forma ampla, com apoio do centro e até da direita, além de negociar com o governo federal, o anúncio de uma candidatura do ex-presidente é visto com cautela. Próceres petistas como o baiano Jaques Wagner, líder do partido no maior estado do nordeste, diz que é precipitado lançar Lula candidato.

A “esquerda radical“, dentro e fora do PT, cínica ou sincera, oportunista ou ingênua, comemorou mesmo assim. Diante do bolsonarismo caótico na pior crise sanitária da história, vale até deixar para lá as críticas ao conservadorismo econômico de Lula. Inclusive, ele fez um discurso keynesiano, defendendo gasto público e atacando as privatizações de Paulo Guedes, que praticamente não saíram do papel até agora pela inabilidade profunda do presidente boçal e do tosco ministro da Economia que ascendeu do baixo escalão de rapinagem do mercado financeiro. Mas, como a “esquerda radical” sabe melhor do que ninguém, Lula sempre fez esses discursos hipócritas. O keynesianismo de Lula é exportação de commodities e assistencialismo do Consenso de Washington. O PT não apenas não revogou nenhuma privatização de FHC, como ampliou as concessões de infraestrutura para o setor privado a preço de banana. O conteúdo do discurso de Lula é pura retórica, utilizada desde sempre contra o PSDB, e abandonada no dia primeiro de janeiro ao tomar posse no Planalto. Isso quando não é abertamente liberal, como na Carta ao Povo Brasileiro, ou na candidatura de Fernando ‘Insper’ Haddad, que defendia autonomia do Banco Central, que “golpe” é uma palavra muito forte, etc.

Porém, a euforia lulista pela anulação dos processos da lawfare da Lava-Jato contra o ex-presidente já começam a se dissipar e as dificuldades da realpolitik se impõem novamente para o PT.

Na esquerda, apesar do impacto público do discurso de Lula, Boulos e a turma do alto escalão do PSOL ‘comemoraram’ discretamente, sabendo que Lula vai agora chantageá-los assim como fez a vida toda com o PCdoB, que agora beira a extinção, e cada parlamentar ou liderança vai para onde for melhor pessoalmente. Marcelo Freixo não aguenta mais fazer um caminhão de votos e eleger trotskistas que o odeiam, além do fato de que o sectarismo de seu partido não permite a ele fazer alianças amplas para que possa ser eleito prefeito do Rio de Janeiro, porém, não há chances do deputado federal ir para o PT carioca, que não apenas foi dizimado pelo próprio PSOL no espectro da esquerda no estado, como é controlado pelo pragmático lulista-bolsonarista-centrãozista Washington Quaquá.

No PSB, cujo presidente Carlos Siqueira tem se acostumado a dar declarações duras contra o hegemonismo de Lula após a chantagem violenta de 2018 que obrigou o partido a ficar “neutro” em uma das eleições mais radicalizadas da história do país, pairou um silêncio ensurdecedor. Poucas declarações tímidas de comemoração, mais da derrota do lavajatismo do que da vitória do lulismo. Declaração inequívoca foi a do vice-presidente do PSB e ex-candidato a vice na chapa de Marina Silva, Beto Albuquerque:

Tenho certeza de que o Brasil pode ser melhor sem Lula e sem Bolsonaro“.

O PDT de Ciro Gomes continua firme na sua candidatura. O presidente do partido, Carlos Lupi, disse que o lulismo e o PT são o passado, e o PDT e Ciro são o futuro. Nem é preciso dizer que o ex-governador e presidenciável tocou o terror contra o PT em todas as entrevistas, e foram muitas, que deu após a decisão de Fachin. Ciro comemorou a derrota do lavajatismo que ele anunciava anos atrás, não apenas chamando Moro de bandido, como dando aulas de direito processual penal ao explicar que os atos do ex-juiz e seus asseclas do Ministério Público Federal iriam, mais cedo ou mais tarde, necessariamente terminar em anulação dos processos. O momento “eu avisei” de Ciro para os lavajatistas foi também de “não contem comigo para esse circo” para os petistas referindo-se a euforia de uma possível candidatura Lula. O candidato trabalhista, que teve 13 milhões de votos e ficou em terceiro lugar nas últimas eleições, não pretende se submeter ao lulismo novamente, nem mesmo diante de situações muito adversas como os analistas pagos do PT estão propagando, até porque, como veremos, a situação não é bem assim. Lula, que costuma ser cordial e condescendente com Ciro, ficou muito irritado com as declarações hostis do cearense trabalhista. O ex-presidente sabe que não está mais em 2006, 2010 ou 2014, quando tinha força para impor a retirada da candidatura alternativa de centro-esquerda, bem como podia contar com a boa vontade do ex-governador para uma unificação em torno da popularidade dos governos de Lula, ainda que com “apoio crítico”. A partir de agora, o PT vai ter que lutar sozinho para levar seu candidato ao segundo turno, não há mais consenso na esquerda em torno de um direito hegemônico a priori de Lula.

Mas tudo isso importa menos para Lula, a esquerda ele submete pela força depois, é para o centro e a direita que ele tem que oferecer paz e amor. O PCdoB dizimado pela cláusula de barreira não joga nenhum papel eleitoral, Boulos e o PSOL atuam como linha auxiliar objetiva no primeiro turno e como aliado animado no segundo turno. O PSB é um partido de caciques regionais, que apoiam quem for melhor para cada diretório estadual. Hoje estão mais afastados do que nunca do PT e em busca de um outsider como Luciano Huck, e topam apoiar Ciro se ele se viabilizar e oferecer palanques fortes e amplos em cada estado. Mas no limite, em um segundo turno com Lula, apoiam o PT no nordeste e liberam lideranças locais mais à direita para apoiar Bolsonaro. Já o PDT e Ciro não demonstram nenhum empenho em defender se abraçarem ao neoliberalismo “menos pior” do lulismo, mas entregam todos os votos do Ceará, por exemplo, para o candidato menos conservador em um eventual segundo turno repetido entre PT e Bolsonaro. Desse modo, a grande questão para Lula é voltar a oferecer perspectiva de poder para setores como o MDB de Renan Calheiros e Eunício Oliveira, para o PP de Ciro Nogueira, para o PSD de Gilberto Kassab, e por aí vai.

O problema é que essa perspectiva de poder não é mais tão sólida. Os tempos do lulismo avassalador nos rincões do Brasil pobre que atraiam os líderes do Centrão ficaram no passado. Somente aliados já muito dependentes do lulismo que demonstraram predisposição real em apoiá-lo, e nem tanto assim. O maior entusiasta de centro-direita a Lula, foi o ex-senador inimigo mortal de Ciro Gomes, Eunício Oliveira, que aliás, perdeu seu mandato no Senado para Cid Gomes. É bom lembrar que Eunício presidiu o impeachment de Dilma no Senado, mas mesmo assim permanece com apoio do lulismo, pois é sua única alternativa contra a hegemonia dos Ferreira Gomes no Ceará. A comemoração de Eunício foi na verdade um ataque a Ciro e não um apoio apaixonado pelo PT. Renan Calheiros, por sua vez, o segundo maior inimigo da Lava-Jato, também comemorou mais a derrota da Lava-Jato que a vitória de Lula, o mesmo se pode dizer de Rodrigo Maia, agora totalmente enfraquecido pela perda de controle de sua base na Câmara dos Deputados na última eleição para presidência da Casa. Maia, melhor dizendo, usou Lula apenas para atacar Bolsonaro, tanto que o ex-presidente petista não deu tanta moral assim para a declaração do ex-presidente da Câmara que sempre foi um dos seus maiores opositores. De resto, os líderes do Centrão e da centro-direita ou lamentaram o novo impulso ao lulismo na polarização contra o bolsonarismo, ou atacaram frontalmente Lula em nome de uma alternativa de centro ou em prol de Bolsonaro.

O PSDB segue muito enfraquecido com a brutal rejeição do governador João Doria em São Paulo, que terá que enfrentar prévias pela candidatura do partido contra o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e o ex-prefeito de Manaus, Arthur Virgílio. Mesmo assim, os jornalões de São Paulo continuam apostando em Doria como o candidato do centro neoliberal. Luciano Huck ficou muito esmagado pela volta do lulismo, pois disputa o exato mesmo eleitorado, mas continua negociando com PSB pela esquerda e DEM pela direita para tentar se viabilizar, e com uma proposta da Globo para ser promovido ao horário de Faustão que vai se aposentar. O sentimento geral da centro-direita, portanto, não é de migrar do bolsonarismo para o lulismo, mas para insistir na viabilização de uma alternativa, como expressou o experiente senador tucano cearense Tasso Jereissati:

A possibilidade de Lula ser candidato aumentou ainda mais a consciência desses grupos de centro (João Doria, Eduardo Leite, Luciano Huck, Luiz Henrique Mandetta e Ciro Gomes).
(…)
Se Lula não vier em direção ao centro, suas chances de ganhar eleições serão pequenas.

O Centrão para valer, cuja capilaridade é enraizada no interior do país, que não tem pudor de ser lulista ou bolsonarista, inclusive ao mesmo tempo se necessário, este segmento difuso e gelatinoso no qual se organizam as oligarquias locais do Brasil, prefere, por enquanto, continuar com o orçamento federal, e só vai negociar a agenda eleitoral no ano da eleição.

A entrevista de Ciro Nogueira, histórico e crucial apoiador dos governos petistas, senador do Piauí e presidente do PP, partido que agora comanda a Câmara dos Deputados com Arthur Lira e deve ocupar o Ministério da Saúde com a iminente queda de Pazuello em meio à crise da nova onda da pandemia de covid, é paradigmática sobre como o Centrão está vendo a volta de Lula para o cenário eleitoral:

Acho que até para a história do Lula não é bom ele disputar essa eleição, porque ele sempre passou, principalmente externamente, a imagem de uma pessoa imbatível aqui no Brasil. E a chance de vitória dele é muito pequena.
(…)
Acho que ele não é mais aquele Lula lá, não, que vende essa expectativa. Hoje o Bolsonaro rivaliza muito na identificação que ele tem com a população do Nordeste. Eu sempre disse que o Nordeste nunca foi de esquerda, é até mais conservador do que o restante do país, mas pelo fato de ter o Lula, lá ele criou essa identificação.
(…)
Difícil ele conseguir mais. Acho que ele vai atrair aqueles apoios do PCdoB, PSB acho que vai orbitar aí, pode ser, mas são os apoios naturais. O centro, não. Não vejo ele puxando o centro. Pelo que eu conheço, pelo que eu converso com os partidos de centro, acho difícil. O meu partido, com certeza, não vai.
(…)
Ele (Bolsonaro) não vai admitir, mas para ele é bom. O antipetismo no país é muito mais forte que o anti-Bolsonaro. Hoje ele tem uma corrente de pessoas muito mais apaixonadas do que o Lula. O Lula só tem hoje os militantes do PT, e grande parte sem muita expectativa de vitória. Vai ser um discurso só para eleição de deputado (federal). Não vai ser pensando em expectativa de poder.
(…)
A rejeição do Lula, do PT, do petismo é muito forte no nosso país, muito maior do que a intenção de voto.

Ainda é cedo, é claro, mas também as pesquisas de opinião não mostraram uma empinada tão favorável a Lula, pelo contrário, até o momento a maioria da população permanece rejeitando Lula e o PT, inclusive em levantamentos específicos sobre a inocência ou culpa do ex-presidente, e dando vantagem para Bolsonaro nas intenções de voto. Os petistas vão tentar emplacar a narrativa da pesquisa mais favorável, e os bolsonaristas a mais desfavorável, mas o fato é que nenhum delas aponta Lula como o poderoso e incontestável favorito eleitoral como diz a propaganda dos meios de comunicações oficiais do lulismo.

Ademais, o grande problema para Lula não é o suposto “conservadorismo” da sociedade brasileira que optou pelo fascista orientado por Olavo de Carvalho e Steve Bannon. Na verdade, o desastre para o PT é a entronização do bolsonarismo nos rincões do Brasil, inclusive do nordeste e nas bases lulistas, gerada não apenas pela popularidade do “Lula de direita” que se identifica com os anseios do homem médio brasileiro, com os costumes do trabalhador comum, enfim, com o povo tal como ele é. O lulismo está sendo enfrentando com sucesso não por uma manipulação malvadona das elites, mas por um outro fenômeno populista tão forte quanto àquele herdeiro do Bolsa Família. O ex-aliado de Lula, Ciro Nogueira, explica:

Eu também convivi com Lula, mas eu nunca conheci um presidente que tenha uma identificação popular tão forte (quando o Bolsonaro). Ele chega próximo de superar o Lula nisso aí. Ele tem uma disposição de contato com a população muito forte. E as pessoas, na forma simples dele se comunicar e se portar, têm identificação.
(…)
No que diz respeito ao meu partido, nós ideologicamente não tínhamos nenhuma identificação com o PT. Mas (os partidos aliados a Bolsonaro hoje) são partidos que têm uma linha da grande maioria dos parlamentares de levar benefícios para os seus estados, e por isso você tem que ter uma relação com o governo. E você acabava tendo essa relação com os governos de esquerda. Mas com o Bolsonaro nós temos uma identificação, um projeto.

Para o Centrão, o bolsonarismo se tornou a expressão de uma mobilização populista pela direita, e, portanto, com maior potencial de eficácia nas pautas de costumes, de segurança pública, de religião etc., além de ter conseguido fazer um rompimento violento com os ex-aliados da outra facção do populismo de extrema-direita, esta sim articulado pelas principais oligarquias ligadas ao imperialismo e corporações judiciais, o lavajatismo.

Do ponto de vista dos políticos do Brasil real e profundo do interior foi muito mais eficaz que Lula e o PT. Se em um primeiro momento, Bolsonaro foi o candidato da anti-política e se aliou a Sergio Moro, em seguida, botou o chefe do Partido da Lava-Jato pra correr, e mostrou que quem manda no Ministério da Justiça é o Presidente da República e não o corporativismo judicial. Os representantes do Centrão viram finalmente um presidente capaz de enfrentar essas corporações que odeiam os poderes republicanos eleitos pelo sufrágio universal. Nesse sentido, contra o lavajatismo, é que Ciro Nogueira ‘comemora’ as anulações do processo de Lula, que não se dão por um esforço do lulismo, e sim pela articulação do campo da política no STF liderado por Gilmar Mendes. O senador piauiense sinaliza que não apenas os processos devem ser anulados, mas que a discussão agora é sobre punir os lavajatistas por seus ‘excessos’:

“E tem um aspecto que eu não vi ser levantado até hoje é a questão da segunda instância. Como é que o Fachin agora vai votar a favor da prisão em segunda instância, se ele cancelou as decisões? E aí? Teve uma pessoa que ficou presa de forma ilegal? Injustamente, sei lá. Mas e agora, como fica a questão? Eu acho que essa decisão do Fachin sepulta essa questão da segunda instância no nosso país, porque são justamente as pessoas que defendiam a prisão em segunda instância. É um fato que aconteceu, o Lula foi julgado e condenado nas duas instâncias. Depois como fica? Acho que ficou bem claro com esse vazamento das informações que os excessos… Ninguém discute mais no país que não houve excesso, né? A discussão agora é se deve se punir os excessos, pelo fato de as mensagens serem ilegais. Excessos, não tem uma pessoa no país que diga que não houve.”

Ao contrário de Lula, que cedia ao corporativismo inventando listas tríplices, campanhas internas para cargos de nomeação pelos poderes políticos, etc., e principalmente, ao contrário de Dilma, que incensava as hostes de concursados na perseguição aos políticos que ela não gostava de receber em seu gabinete, Bolsonaro transitou da anti-política para o mais cínico e pragmático fisiologismo. Ele entrega tudo, emendas, cargos, apoio nas eleições internas do Congresso, e apenas finge que não distribuiu ministérios. E o Centrão também se adequou muito bem a esse jogo. Defendem o presidente dizendo que o apoiam sem pedir nada em troca, já que no topo dos ministérios estão apenas os celerados bolsonaristas, como Damares, Ernesto Araújo, Pazuello, etc., e ainda por cima são chamados de “ministros técnicos, sem indicação política”. Novamente, Ciro Nogueira explica o sentimento do Centrão:

“A própria classe política aprendeu a dialogar com ele. No passado a classe política era acostumada, e isso vem desde o governo FHC, Lula, depois Dilma, você participava de um governo, recebia um ministério e era porteira fechada. Com Bolsonaro, não foi assim. E a classe política começou a ter uma aliança com Bolsonaro muito antes de cargos. As votações no meu partido não mudaram desde que passamos a ter cargos. Houve uma mudança de parte a parte e acho que foi uma mudança positiva.
(…)
Bolsonaro foi eleito dizendo que não iria ter nenhum tipo de aliança, mas ele viu que não estava indo no caminho certo. Você se lembra que há um ano e tanto era “fecha Supremo”, “fecha Congresso”, era manifestação. Ele viu que não ia ter sucesso. E as pessoas estavam querendo, até da sua base, uma estabilidade. Imagina se estivéssemos entrando nessa pandemia mesmo com essa instabilidade. Não vou negar que quem deu estabilidade ao país foram os partidos de centro, que foram quem fizeram as grandes mudanças, tudo o que foi aprovado, aliados à esquerda ou agora à direita. O Bolsonaro viu que precisava para governar ter essa aliança. E nós, para termos instrumentos para levar benefícios aos nossos estados, também precisávamos do governo.
(…)
Ali no início era um processo de construção, Bolsonaro tinha uma certa desconfiança das nossas reais intenções, como nós também. O próprio Arthur Lira ganhou essa confiança, diversos líderes que transmitiram que nós queríamos, claro, o benefício de estar ao lado do governo, mas também levar estabilidade para o país. Aquilo não iria terminar bem. Ia ter uma quebra das instituições, com certeza. Seja judiciária, seja legislativa. O presidente notou isso.”

Portanto, quem manda no orçamento público, cada vez menor devido ao Teto de Gastos e a rapinagem de Paulo Guedes, é o Centrão, que precisa levar contrapartidas para seu eleitorado em forma de auxílio emergencial e obras para buscar a reeleição em 2022. Em 2020, nas eleições municipais, o Centrão já conseguiu se aproveitar dessa situação e foi o setor político que mais cresceu, enquanto o bolsonarismo raiz não foi capaz de se enraizar nas máquinas públicas, e o lulismo sem orçamento federal foi o maior derrotado de todos não elegendo nenhum prefeito de capital e pouquíssimos nas grandes cidades de dois turnos.

Desse modo, passada a euforia delirante dos lulistas, merecida diante de tanta injustiça diga-se, o jogo vai voltando ao mesmo estado de antes. O bolsonarismo rivaliza com o lulismo nos rincões do país, enquanto a maioria silenciosa, que se expressa na pulverização de candidaturas da centro-esquerda à centro-direita e na capilaridade do Centrão e das oligarquias locais, continua difusa buscando uma alternativa viável de enfrentar os dois fenômenos populistas mais ou menos consolidados com 20% de intenção de votos cada.

Como venho defendendo há bastante tempo, Ciro Gomes, como líder altamente popular e hegemônico na sua região, capaz de negociar com as oligarquias locais do Ceará, tem como desafio principal não ganhar o apoio da esquerda, do PT ou de Lula, e muito menos se submeter a ele, mas sim de rachar e obter o apoio da maior parte do centro. Para isso precisa negociar os interesses concretos desses segmentos apresentando uma perspectiva de poder. Por sua vez, esta perspectiva de poder só é possível com uma política de massas profissional, nas redes sociais principalmente neste novo estado do mundo comunicacional altamente digitalizado que vivemos. Consolidando os 12% de votos que já obteve em 2018, totalmente isolado e sem uma política de redes profissional, Ciro pode avançar para o centro se profissionalizar mais sua pré-campanha, para atingir um crescimento no eleitorado que não quer nem Lula e nem Bolsonaro, e assim, oferecer perspectiva de poder viável para os atores políticos detentores das máquinas regionais que podem dar a capilaridade que o trabalhista precisa para ir ao segundo turno e vencer as eleições.

É bom lembrar que em 2018, essa coalizão do centro com o trabalhismo quase ocorreu. Líderes do centro na época, como o hoje enfraquecido Rodrigo Maia, mas também o atualmente fortalecidíssimo Ciro Nogueira, queriam apoiar Ciro Gomes ao invés do presumivelmente derrotado com resultado pífio Geraldo Alckmin, o picolé de chuchu. O empresário Benjamin Steinbruch, dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e vice-presidente da FIESP, chegou a se filiar no PP para ocupar o posto de possível vice-presidente na chapa de Ciro, que inclusive já trabalhou como executivo da importante empresa fundada por Getúlio Vargas. Outro cogitado para vice de Ciro foi empresário mineiro Josué Gomes, filho do ex-vice-presidente José Alencar.

Porém, foi a atuação de Lula pela esquerda chantageando o PSB e pela direita influenciando seu velho aliado, e desafeto de Ciro, Valdemar da Costa Neto, bem como Michel Temer, então presidente, utilizando a força do governo federal para isolar o cearense pela direita com os partidos do governo (“Tudo menos Ciro!” disse Temer). Ou seja, foi essa histórica aliança entre PT, a cúpula do MDB e o pior do baixo clero da corrupção, que impediu uma coalização do centro com o trabalhismo. Pois bem, ninguém acredita que essa aliança amplíssima em torno de um candidato meia-bomba do PSDB pode se repetir em 2022. O desempenho de Ciro em 2018 torna-o muito mais atrativo, bem como torna impossível o que uma turma mais histérica do próprio cirismo de internet tem chamado de “marinização”, ou seja, o derretimento eleitoral que ocorreu com Marina Silva que terminou com 1%. O que esses preocupados apoiadores de Ciro não levam em conta é que Marina perdeu os votos dela justamente para o candidato do PDT! E não para o PT! Ciro não é um arrivista sem base social, é um líder político do Ceará que hegemoniza seu estado há praticamente 30 anos! Não há a menor chance de Ciro terminar a eleição com menos de dois dígitos em votos válidos, e o centro político sabe disso, e por isso leva o nome dele a sério como alternativa.

Dessa vez, por enquanto, o PP continua na base do governo de forma explícita, enquanto o DEM finge que não é, mas é, pois o presidente do partido, ACM Neto, precisa do governo federal para disputar o governo da Bahia em 2022, ao passo, que o PDT e Ciro também são importantes para o difícil desejo do carlismo de tirar seus inimigos petistas do poder estadual baiano. Já o PSD se encontra em situação curiosa e propícia para Ciro. Apesar de também fazer parte da base do governo federal e do governo estadual de São Paulo do tucano João Doria, o partido presidido por Gilberto Kassab tem como maior liderança o popular prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, que é favorito para vencer a eleição para governador de Minas Gerais, o segundo maior colégio eleitoral do país, e é um aliado firme e entusiasmado de Ciro Gomes. Em 2018, apesar da coligação formal com Alckmin do PSDB, o prefeito de Belo Horizonte levou Ciro debaixo do braço para todos os cantos da metrópole mineira e deu uma enorme votação para o trabalhista no estado. Além disso, o próprio Kassab se dá bem com os Ferreira Gomes, e está cada vez mais afastado dos tucanos, tendo em vista que o sucessor de Doria em São Paulo deve ser o vice do DEM, Rodrigo Garcia, em aliança com o MDB, enquanto o PSD corre por fora para criar uma alternativa à aliança paulista PSDB-DEM-MDB, ainda que mesmo para vender mais caro seu apoio no segundo turno, tanto na eleição estadual como federal. É desse jogo de interesses pragmáticos que Ciro pode se aproveitar, e não de ilusões utópicas de alianças “programáticas”, outra demanda histérica do cirismo de internet que sonha com um ‘Ciro do PSOL’. O Centrão não tem programa para além de ser governo. Quem lidera o governo é que forja um Projeto Nacional para o país, evidentemente que isso também é negociado, mas é a hegemonia do líder carismático eleito chefe do Estado que dá o rumo da construção programática. Este sempre foi o problema de Lula, e não suas alianças, mas o programa do PT que sempre foi um neoliberalismo de esquerda, com assistência social, e hegemonia do capital financeiro.

Dessa forma, um acordo entre os trabalhistas e Kassab em uma chapa PDT/PSD tornaria Ciro um centro gravitacional para todos que buscam alternativa ao embate Lula/Bolsonaro, tanto à esquerda como o PSB, como à direita, como o próprio DEM, PP, e todos os partidos pequenos do Centrão que estão na base do governo federal. Como já disse, é pouco provável que o centro vá unido como fez de forma inédita com o PSDB em 2018, mas pode se dividir entre Bolsonaro, Doria, e Ciro, o que seria suficiente para viabilizar o terceiro colocado das eleições passadas que parte de um patamar de 12% mesmo totalmente isolado, e tem um Projeto Nacional de Desenvolvimento que atende aos interesses concretos inclusive do Centrão eleito pela população pobre que precisa de obras públicas, industrialização e crescimento econômico.

Essa possibilidade é discutida tanto nos bastidores como abertamente pelos políticos, mas também por figuras importantes da imprensa de direita, ou centro-direita, como Reinaldo Azevedo, Rachel Sheherazade, ou Datena, que aliás, se engajou decidida e anedoticamente na viabilização de Ciro como alternativa eleitoral como se vê na repetição incessante em seu programa de um bordão irônico do trabalhista em entrevista para o popular apresentador da Bandeirantes:

Portanto, a luta entre Ciro, e seu Projeto Nacional, contra Lula, e seu neoliberalismo social, não é pela esquerda, é pelo centro. A volta de Lula às urnas esmaga candidatos arrivistas sem partido, como Luciano Huck e outros falsos “outsiders”. Mas o jogo mudou pouco desde o pós-eleição municipal de 2020 que cristalizou a atual correlação de forças. O desafio de Ciro continua o mesmo, conquistar o centro, ou no mínimo rachá-lo com o governo federal e o governo estadual paulista. O desafio de Lula continua o mesmo, romper o profundo isolamento do PT desde o desastre do governo Dilma que culminou no impeachment e na sua prisão.

A ver se o Lulinha Paz e Amor será capaz de repetir o feito de 2002 quando conseguiu vencer a aliança entre Ciro e Brizola, impedindo a volta do trabalhismo ao poder no Brasil, para consolidar continuidade do neoliberalismo com assistência social. Dessa vez, no campo da direita, não há um sucessor sem carisma de um governo estagnado incapaz de radicalizar seus apoiadores, como era José Serra e FHC, mas um governo populista altamente mobilizador que invade as bases eleitorais tradicionais do lulismo.

Além disso, Lula só pode apelar para a volta de um passado falsamente idílico de Bolsa Família e exportação de commodities, e vai ter que esconder o colapso econômico e político dos governos Dilma. Não há mais novidade para Lula apresentar, apenas o vitimismo da perseguição injusta que sofreu, e uma radicalização de esquerda está, como sempre esteve, fora de cogitação para o conciliador que precisa do centro, apesar dos apelos desesperados de suas linhas auxiliares que clamam por uma “guinada de esquerda” que nunca vem. Já sabemos que o Centrão e a maior parte da população não liga para o vitimismo e rejeitaria essa utópica radicalização, portanto, é preciso ver se a memória do Bolsa Família vai ser suficiente para enfrentar o orçamento federal atualmente nas mãos do bolsonarismo. Diante desse cenário complexo, tudo é possível, desde a repetição de 2018, até a erupção de uma alternativa viável ao centro (à esquerda ou à direita). Este só não é o maior pavor de Lula, do que o de perder uma eleição para Bolsonaro no voto legitimamente, e por isso, a candidatura-poste, ou pelo menos de algum quadro com voto no nordeste, continua sendo a aposta mais segura no alto escalão do petismo, principalmente fortalecida por um Lulinha Paz e Amor livre capaz de repetir o desempenho nas eleições estaduais e para o Congresso, que é o que importa para o PT enquanto a volta ao poder está bloqueada.

  1. Ciro “tem um Projeto Nacional de Desenvolvimento que atende aos interesses concretos inclusive do Centrão eleito pela população pobre que precisa de obras públicas, industrialização e crescimento econômico.” Pode até ser que sim, mas além de convencer o Centro disso, Ciro terá que se mostrar eleitoralmente viável, o Centrão não se comprometerá com nada que lhe diminua o poder, nesse sentido não bastará um projeto de nação conforme citado, mas algo híbrido com esse projeto de poder, que vai além do governo, senão passarão 8 anos de Ciro e sobrará pouco mais que a tomada de 3 pinos. Equação complicadissima companheiros.

  2. É inevitável que o 2° turno reproduza a polarização direita x esquerda, mesmo que seja fantasiosa, fundada na crença do eleitor que está votando na esquerda ou na direita, conforme sua identificação ideológica. Ciro é, de fato, o melhor nome que a direita tem para disputar com Bolsonaro quem irá para o 2° turno enfrentar o candidato da esquerda, que poderá ser Lula, Haddad ou Flavio Dino. Se a esquerda quiser, de fato, derrotar a direita, ou seja, Ciro ou Bolsonaro, deveria lançar um nome de fora do PT, que, hoje, seria Flávio Dino. Lula, se for lançado candidato, é presença certa no 2° turno. O problema é que, mesmo com seu carisma, corre o risco de perder para o candidato da direita, no 2° turno, seja ele Ciro ou Bolsonaro. Um nome de fora do PT , com o apoio de Lula e do PT, dificilmente deixaria de derrotar o candidato da direita, sendo ele Ciro ou Bolsonaro. Essa é a contradição que caberá ao PT resolver se quiser impedir que a direita continue governando o Brasil, seja através de Bolsonaro ou de Ciro.

  3. Sr. Raul Alves, Ciro de direita?!! E Lula de esquerda?!! Quem quando foi presidente adotou um neoliberalismo afinado com os sistemas financeiros nacional e internacional? Acho que foi o Lula!

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