Ciro Gomes e André Lara Resende: Para além do Plano Real e do nacional-desenvolvimentismo

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O reencontro entre Ciro Gomes e André Lara Resende, dois dos principais operadores da economia política do Brasil contemporâneo, era esperado há muito tempo pelo mundo dos economistas. Para quem não sabe, André Lara Resende foi um dos formuladores econômicos e Ciro foi um dos realizadores políticos do Plano Real, a reforma institucional que concretizou a estabilização monetária no Brasil após décadas de hiperinflação. Diante da crise do neoliberalismo consolidado pelo Plano Real (1994) e a instituição do Tripé Macroeconômico (1999), a hegemonia do rentismo está em seus estertores. O colapso financeiro de 2008, que já alterou radicalmente a política monetária e fiscal no mundo todo, principalmente nos EUA, ainda demora para gerar efeitos no Brasil, mas a história não anda para trás. O neoliberalismo morreu, só falta enterrar. É isso que Ciro e André estão desesperadamente tentando fazer.

A jornalista Mara Luquet organizou e mediou o encontro entre os dois teóricos-operadores de política econômica. Mara Luquet, diga-se, vem realizando grande papel de romper o pensamento único da hegemonia neoliberal no jornalismo econômico brasileiro, sendo uma das maiores divulgadoras, por exemplo, do livro de Ciro Gomes, “Projeto Nacional: O Dever da Esperança“.

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Ciro Gomes foi o primeiro governador eleito pelo PSDB, aliado do antecessor Tasso Jereissati, com quem iniciou a transição do pobre estado nordestino do Ceará do mais atrasado coronelismo oligárquico para uma modernização urbano-industrial com direitos sociais. Tasso e Ciro ganharam notoriedade pelos bem sucedidos índices de desenvolvimento humano no Ceará, ganhando prêmio da ONU pelo combate à mortalidade infantil, ocupando o primeiro lugar nos indicadores de educação básica, além de importantes obras de infraestrutura contra o problema da seca. Ciro deixou o governo do Ceará para realizar a transição final do Plano Real como ministro da Fazenda de Itamar Franco, mas os dois foram derrotados por FHC, que capitalizou o sucesso do Plano, e foi eleito presidente. Tasso se submeteu ao neoliberalismo de FHC, e Ciro rompeu com o PSDB para se aliar a Leonel Brizola na Frente Trabalhista de 2002, ser ministro de Lula para realizar a transposição do Rio São Francisco, e hoje está filiado ao PDT lutando para levar o trabalhismo herdeiro de Getulio Vargas de volta ao poder.

André Lara Resende é um banqueiro de sucesso no mercado financeiro, operando no Brasil e nos EUA, e um burocrata de altíssimo escalão do sistema financeiro brasileiro. Ele foi o negociador-chefe da dívida externa como diretor do Banco Central do Brasil, e depois, presidente do BNDES.

Ciro trouxe de volta a ideia de Projeto Nacional de Desenvolvimento para o debate público brasileiro, tendo ficado em terceiro lugar nas eleições presidenciais com mais de 13 milhões de votos. André é o responsável pela chegada ao Brasil do debate sobre a Teoria Monetária Moderna (MMT na sigla em inglês), que nada mais é do que uma teoria descritiva sobre como funciona a política monetária com moeda fiduciária, ou seja, sem lastro material como na época do Padrão Ouro. Os dois combatem, na política, e na economia, a ideologia monetarista-fiscalista hegemônica desde os anos 1970 com o choque dos juros de Paul Volcker nos EUA, e o Consenso de Washington em 1990.

A conversa entre os dois teve como ponto de partida as premissas teóricas do livro de Ciro, condensadas no conceito de Projeto Nacional de Desenvolvimento. André inicia elogiando a profundidade reflexiva da obra levando em conta que se trata de um político e não um acadêmico. E faz uma provocação, com a qual a jornalista, Mara Luquet, concorda. O livro NÃO é “nacional-desenvolvimentista”. Isso porque, o nacional-desenvolvimentismo foi um momento histórico específico, e as condições concretas daquele período não estão mais presentes. E Ciro também concordou!

Na verdade, a discussão é sobre um conceito mais complexo e programático baseado em três categorias explicadas pelo ex-ministro da Fazenda: 1. Projeto; 2. Nacional; 3. Desenvolvimento.

1. Projeto: expressa a necessidade do protagonismo do Estado no planejamento econômico, pois o espontaneísmo liberal da utopia smithiana do Laissez-Faire é irreal, ainda mais na periferia do capitalismo.

2. Nacional: expressa a imposição inescapável de que o mundo capitalista é divido em nações, político-econômico-culturalmente, mas principalmente na economia, as condições de investimento, financiamento, e organização do sistema produtivo, dependem do espaço nacional, não apenas do território, mas também dos interesses estratégicos do Estado-nação.

3. Desenvolvimento: expressa a realidade concreta, também incontornável, de que a sociedade moderna (ou mesmo pós-moderna) é industrial. As economias dependem não apenas do consumo de massa, mas dos ganhos de produtividade do desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, o Brasil não pode aceitar ser uma semi-colônia exportadora de commodities agrícolas e minerais.

Pois bem, o que Ciro e André concordam é que não é possível repetir o nacional-desenvolvimentismo como fenômeno histórico específico do passado, baseado na substituições de importações da Segunda Revolução Industrial devido a chegada da Terceira (ou mesmo Quarta) Revolução Industrial, tampouco nas políticas macroeconômicas da época, tendo em vista a globalização financeira, o fim do padrão ouro-dólar, etc. Tanto o que Ciro como André defendem é um Projeto Nacional adequado às questões atuais do Desenvolvimento. Investimento tecnológico de ponta, substituições de exportações (e não apenas importações), políticas monetárias e cambiais equilibradas diante dos acelerados fluxos financeiros internacionais, etc. Ciro e André demonstram como nada disso tem a ver com a caricatura desenhada pelos neoliberais contra um “desenvolvimentismo” que supostamente defenderia indústrias de baixa produtividade com tarifas alfandegárias.

Ciro, inclusive, fez uma questão interessante para André sobre o problema da restrição externa. Toda vez que o Brasil cresce aceleradamente, a moeda brasileira sofre desvalorização. Na live, os dois tiveram pouco tempo para expor as razões disso, e discutir as soluções. Mas isso já havia sido explicado detalhadamente por Celso Furtado. Uma economia subdesenvolvida precisa obter moedas estrangeiras (basicamente o dólar) para comprar os produtos industrializados importados. As divisas (moedas estrangeiras de curso internacional) são obtidas através da venda de commodities.

Quando a economia cresce, o mercado interno se aquece, exigindo mais importações, portanto mais divisas, aumentando o preço delas, ou seja, desvaloriza a moeda nacional. A restrição externa é escassez de divisas. Isso ocorre com o crescimento econômico da própria industrialização, como no período nacional-desenvolvimentista, porque as indústrias exigem importação de bens de produção mais complexos; como também durante o processo de desindustrialização, por motivos mais óbvios, pois a economia aumenta sua dependência da importação industrial. Isso se dá inclusive em períodos de crescimento baseado no boom das commodities e aumento do consumismo interno, como nos governos Lula.

Evidentemente isso gera pressões inflacionárias, o que não tem nada a ver com “hiperinflação”, déficit fiscal, dívida pública, etc. André e Ciro explicam que devido ao fato de que o Brasil tem um importante colchão de reservas internacionais (as divisas, ou seja, dólares de propriedade do Estado) e de que a dívida pública brasileira é inteiramente interna atualmente, não há risco de uma nova espiral inflacionária causada pela restrição externa. André ressalva que caso o Brasil torre todas as reservas, o risco de endividamento, e portanto, restrição externa, pode voltar, como ocorre atualmente com a Argentina, que precisa negociar com o FMI sua política financeiro-monetária.

Esse tipo de restrição externa é típica de países subdesenvolvidos, e somente a industrialização acelerada, com uma política cambial firme e soberana (como faz a China), é capaz de superar esse obstáculo. O que, evidentemente, não é simples. É preciso encontrar o chamado “câmbio de equilíbrio industrial” proposto pelos professores da FGV, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Nelson Marconi. No câmbio de equilíbrio industrial, a taxa de câmbio fica em um patamar que favorece a industrialização tanto de produtos internos como externos, para estimular o desenvolvimento tecnológico com a menor inflação possível. Vale a pena procurar os artigos científicos fundamentados matematicamente dos dois professores, bem como em artigos mais didáticos do próprio professor Marconi aqui mesmo no Disparada como: “O que é a taxa de câmbio de equilíbrio industrial?” ou “A fábula do emprego de João e Maria e a taxa de câmbio“.

Vale a pena destacar inclusive a incrível e explícita auto-crítica que André Lara Resende, um dos mais importantes formuladores do Plano Real, fez sobre o problema dos juros altos utilizados para a estabilização monetária. Ciro ajudou a fazer o Plano Real parar de pé, mas logo após a posse de FHC, rompe com o PSDB e passa a criticar a política econômica pós-Real. Sua principal acusação é contra o rentismo viciado nos juros altos.

André, que continuou no governo tucano, com uma sinceridade raríssima na política em qualquer lugar no mundo diz: “Nesses últimos 25 anos pós-Real, há um erro de política econômica muito sério, que explica grande parte da nossa incapacidade de crescer. Que foi a combinação de uma taxa de juros real extraordinariamente alta, que foi um erro, uma política totalmente na mão do Banco Central, com a tentativa de pagar esses juros aumentando a carga fiscal. A combinação de juros muito altos e uma carga fiscal muito pesada asfixiou a economia brasileira. É preciso entender, nós erramos.

Ciro Gomes, com sua verve típica, elogia a elegância acadêmica de André, mas faz questão de apontar que não foi apenas um “erro”, e sim uma “negociata”. O ex-ministro da Fazenda na época explica as razões da utilização de altas taxas de juros na implementação do Real, em trecho longo que vale a pena ser reproduzido na íntegra:

Basicamente a taxa de juros, lá atrás, foi alta por três razões de conjuntura, que teriam que ser superadas rapidamente nos primeiros meses do Fernando Henrique. 1. Antecipadamente prevenir explosão de demanda agregada e atingimento de 100% de capacidade instalada pelo fim abrupto da inflação que era um tipo de imposto, que retirava a renda do pobre que não tinha ativos indexados (correção monetária criada pela Ditadura). 2. Arbitrar em padrão internacional um juro tão alto que nós faríamos reservas artificiais para lastrear uma moeda que se criava conversível ao par com o dólar. Ninguém ia acreditar, se a gente não tivesse reservas mínimas, que não estávamos blefando. Quantas vezes eu não ouvi algumas pessoas dizendo ‘vai ser a maior hiperinflação da história’, o André deve lembrar das discussões antecedentes ao anúncio do Plano. Nós bancamos o risco. 3. E a terceira razão, nós íamos subtrair do sistema financeiro receita com a qual eles estavam intoxicados, que era a receita inflacionária. Qual era o efeito disso na quebra do sistema financeiro? Nós não tínhamos ideia. Então nós íamos trocar receita indexada por juro alto na crença de que iríamos fazer uma travessia e o Fernando Henrique entraria, seria reconstituída a higidez do sistema político destruído pelo impeachment do Collor e pela inconfiabilidade que a elite brasileira tinha com o Itamar, e com o novo Congresso Nacional que havia sido desmoralizado com o escândalo do Orçamento, enfim, e o que aconteceu é que as pessoas se viciaram em juro alto. E dominaram o poder real no Brasil. O Lula assinou a Carta aos Brasileiros (‘Carta ao Povo Brasileiro’ prometendo manter a política macroeconômica de FHC) renovando esse compromisso. E ainda se afirmam os monopolistas da esquerda, papo furado.

Impressiona a capacidade de síntese e clareza com a qual o ex-ministro se expressa sobre temas tão complexos, que parecem simples em sua retórica tão inflamada quanto didática. Faz a jornalista Mara Luquet concordar rindo: “É verdade!”.

Ciro ainda completa: “Ou a gente refunda o Brasil em bases profundas e teóricas, por isso o meu elogio repetido e sistemático ao André Lara Resende, ou esse país está ferrado“.

A palavra volta para o riquíssimo banqueiro: “O Ciro tem toda razão. Sobre os juros extraordinariamente altos, existem razões realmente justificáveis para serem utilizados por tempo muito curto em circunstâncias excepcionais. Esta era a ideia no lançamento do Real. Não tinha como, diante das incertezas e das desconfianças naturais de mais um plano de estabilização, que os juros não fossem altos. O grande equívoco, prefiro chamar assim, porque até eu caí nele, foi manter essa taxa de juros por décadas“.

É evidente que se pode fazer críticas à concepção do Plano Real. Leonel Brizola as fazia, criticando a hegemonia do sistema financeiro sobre a formulação da política econômica. No entanto, é preciso levar em conta que a política não é decidida apenas pela vontade dos homens, e sim pelas estruturas do modo de produção capitalista, e de suas conjunturas históricas com seus diferentes regimes de acumulação e modos de regulação.

Em 1994, o mundo vivia o auge do neoliberalismo. Imperava o Consenso de Washington. A hiperinflação e o endividamento externo foram gerados pelas contradições intrínsecas do nacional-desenvolvimentismo, tais como a restrição externa já explicada, mas também, e principalmente, por políticas desastrosas da Ditadura. A indexação da economia através da correção monetária, e o super endividamento externo, foram obras dos militares. O choque Volcker de juros altos combinado com o choque do petróleo na disputa com a OPEP, a estagnação das economias desenvolvidas, e a crise das dívidas dos países subdesenvolvidos, gerou inflação com estagnação no mundo inteiro, a estagflação, e hiperinflação na periferia do capitalismo.

Nos anos 1990, todas as dívidas foram renegociadas no Plano Brady (Secretário do Tesouro dos EUA). Este é o contexto da formulação do Plano Real. A política é constrangida por essas estruturas econômicas e geopolíticas. Denunciar o financismo especulativo sempre está correto, mas para vencê-lo é preciso mais do que vontade. A crise de 2008 abriu esse horizonte novamente. No diálogo entre Ciro Gomes e André Lara Resende, vemos dois gigantes do alto escalão da política nacional com plena consciência disso tudo.

Essa conversa é um documento histórico para a posteridade do estudo da economia política do Brasil nos anos 1990 e 2000. O vídeo de apenas 1 hora é imperdível e deve ser assistido por todos os patriotas brasileiros.