Comissão de juristas para combate ao racismo no Brasil

Manifestação em apoio à comissão de juristas para combate ao racismo.
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A Câmara dos Deputados pode criar comissões que têm a finalidade de deliberar sobre as proposições legislativas, de acordo com seus campos temáticos; realizar audiências públicas; e determinar a realização de auditorias na administração dos Três Poderes e na administração indireta, entre outros.

Desta forma, a Câmara dos Deputados instituiu a Comissão de Juristas, em 18 de dezembro de 2020, destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país, reconhecendo que o Brasil é signatário de tratados internacionais e que a própria Constituição Federal de 1988 prescreve o repúdio ao racismo, a busca de uma sociedade sem discriminação, igualitária, justa e fraterna. Além disso, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), estabelece que é dever do Estado promover a igualdade social, cultural e econômica à população negra.

A Comissão de Juristas para o Combate ao Racismo é presidida pelo Ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, tendo a seguinte composição: I – João Benedito da Silva, Primeiro-Vice-Presidente; II- Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, Segunda-Vice-Presidente; III – Silvio Luiz de Almeida, Relator; IV – Adilson Moreira; V – Ana Claudia Farranha Santana; VI – André Costa; VII – André Luiz Nicolitt; VIII – Chiara Ramos; IX – Cleifson Dias Pereira; X – Dora Lúcia de Lima Bertulio; XI – Elisiane Santos; XII – Fábio Francisco Esteves; XIII – José Vicente; XIV – Karen Luise Vilanova Batista de Souza; XV – Lívia Casseres; XVI – Lívia Santana e Sant’anna Vaz; XVII – Rita Cristina de Oliveira; XVIII – Thiago Amparo; XIX – Thula Rafaela de Oliveira Pires.

Os juristas referidos são pesquisadores e estudiosos a respeito da temática racial no Brasil e do Estado Democrático de Direito, tendo sido aberta a possibilidade de inscrição de pessoas ou instituições para manifestações orais em audiências públicas, para que as medidas adotadas pela comissão alcancem a materialização da igualdade para as pessoas negras.

No GT Segurança Pública e Racismo, de 16 de abril de 2021, como evidência do racismo institucional e da ausência de individualidade dos corpos negros, a comissão ouviu o depoimento do músico Luiz Carlos da Costa Justino, que foi preso, em novembro de 2020, pelo crime de roubo, após ser identificado por uma fotografia no álbum da delegacia, sem acesso a alimentação e tampouco ligação para algum familiar.

Importante mencionar que no dia do roubo, em 2017, ou seja, três anos antes da identificação feita pela vítima, o depoente estava se apresentando com os demais membros da Orquestra da Grota, pois ele é violoncelista. O alvará de soltura foi realizado pelo Juiz de Direito André Luiz Nicolitt, homem negro, que reconheceu que não é legitimo a identificação por fotografia, ainda mais de um sujeito que sequer possui antecedentes criminais. O relato Luiz Carlos também apontou que sua injusta prisão apresenta consequências psicológicas para si e seus familiares até os dias de hoje.

O desembargador Siro Darlan, da Associação de Juízes para a Democracia, arguiu que “são os juízes os principais responsáveis por esse racismo estrutural”. No caso de Luiz Carlos da Silva Justino, foi decretada sua prisão preventiva por uma juíza que sequer observou que não havia fundamento para a prisão com a identificação por fotografia, e também o fato dele ser uma pessoa sem antecedentes criminais.

A mentalidade dos magistrados ainda reflete a estrutura social que reproduz a falácia da democracia racial, já que em muitos processos não reconhecem a prática de racismo contra trabalhadores negros que são discriminatoriamente dispensados, ou sofrem discriminação racial e pleiteiam indenização por danos morais, além daqueles casos em que é evidente a seletividade do sistema penal brasileiro, em que os negros são os alvos das arbitrariedades policiais.

A delegada aposentada Jussara Souza, da Associação dos Delegados da Bahia, entende que “nós precisamos de corregedorias fortes para a persecução dos crimes de abuso de autoridade”. E nessa perspectiva, cabe ao Ministério Público investigar as práticas racistas nos fundamentos de sentenças de tantos juízes brasileiros, visto que suas condutas não estão em conformidade com as normas internacionais e nacionais.

O GT de Direito Econômico foi realizado em 19 de abril de 2020 sobre Orçamento/ Finanças Públicas e Combate ao Racismo, para analisar as leis, programas e políticas públicas que estabelecem as formas de arrecadação e como podem ser empregados os recursos do governo para servir ao combate ao racismo.

Segundo Roseli Faria, Analista de Planejamento e Orçamento, Vice-Presidente da ASSECOR (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento), “o conjunto de regras fiscais está prejudicando a população negra”, isso porque ainda que essa pessoa tenha direito subjetivo a uma bolsa família, por exemplo, em razão do limite orçamentário, essa pessoa ficará desassistida. Ela também afirmou que “a burocracia de orçamento é branca e masculina”, e que é necessária uma mudança cultural para que tenha formação antirracista sobre as propostas de editais e a formação continuada de todos os gestores da casa legislativa.

Ato contínuo, Clara Marinho Pereira, Secretária do Orçamento Federal, afirmou que os reflexos do racismo na definição do orçamento são a “baixa participação da população negra nas carreiras de finanças públicas e na representação política na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO); que o orçamento público tem papel fundamental na materialização dos direitos humanos e sociais, mas como não é neutro, a população negra -em particular as mulheres negras- sofre mais com sua redução em termos reais; e por fim, a complexidade do processo orçamentário dificulta o seu controle social”. Ela também afirmou que hoje não há nenhum orçamento da União que garanta a efetividade do disposto no Estatuto da Igualdade Racial, e que tampouco há uma agenda para a população negra expressa no orçamento público.

Fernanda Santiago, Procuradora da Fazenda Nacional, afirmou que o “orçamento tem tanto receita quanto despesa”, isso porque sempre que há crise, o argumento é para que sejam adotadas medidas para a redução de gastos, e com isso impõe um teto de gastos, que aprofunda as desigualdades. Mas é importante destacar que há uma receita, e que é esquecida, porque “o direito tributário é pensado por uma elite econômica branca”, de modo que o recolhimento de imposto não aponta se o sujeito é branco ou negro, por exemplo. Para a Procuradora existe um espaço de expansão da tributação ou uma readequação da tributação, e que são válidas a indução de comportamentos para combater o racismo e o sexismo.

A procuradora também argumentou que outro problema de governo é que “a fiscalidade não é isonômica, ou seja, é contrária a Constituição Federal”, e sequer é vista como programa de governo a ser alcançada de forma igualitária. Há três pontos que definem esse comportamento: “o primeiro, baixíssima tributação do patrimônio no país; segundo, a baixa progressividade da tributação do imposto de renda, agravada pela tributação de dividendos; e terceiro, elevada tributação sobre o consumo”.

O professor Edvaldo Brito, afirmou que o problema do negro é um problema de todos os brasileiros, e não apenas dos sujeitos negros. E que o fato de os negros não estarem nas estruturas de poder, contribui para negação do racismo nas decisões de Estado. Outra questão é que as PEC (Projetos de Emendas Constitucionais) para a reforma tributária são péssimas, e não contribuem para o fim das disparidades sociais e raciais.

As participantes e o participante da audiência pública afirmam que a União para cumprir sua função distributiva deve colocar a raça como central, bem como que deve avançar nos investimentos para coleta de dados, para que eles sejam utilizados na formulação de políticas públicas a fim de corrigir a inferiorização da população negra.

O racismo no Brasil continua atribuir desvantagens à população negra, especialmente, as mulheres negras, reduzindo direitos, aumentando desemprego e desigualdade sociais, culturais e política. Desta forma, ainda que seja importante ampliar o número de pessoas negras nos cargos de poder, é essencial que elas tenham consciência racial, ou seja, a compreensão da especificidade de como racismo atravessa as vidas dos negros.

As ações afirmativas para ingresso de pessoas negras nas universidades e serviços públicos são fundamentais, tanto pela inclusão quanto para ampliação do debate racial nesses espaços. Clara Marinho Pereira e Fernanda Santiago afirmaram que ingressaram em suas carreiras por meio das ações afirmativas, e isso confirma os benefícios sociais da implementação desse mecanismo nos processos seletivos, já que são mulheres negras, que apresentam formas de luta contra o racismo a partir da cargo que ocupam.

As audiências públicas despertam novos horizontes para pensar o combate ao racismo, e nesse artigo não foi possível esgotar todas as propostas, mas desde já é possível constatar que os desdobramentos da Comissão de Juristas vão ter impacto para toda sociedade brasileira, a partir do acesso de propostas que enfrentem a desigualdade estrutural a partir da classe, raça e gênero.