O Datafolha confirma: o Brasil não é o país imaginado pelo identitarismo negrista

O Datafolha confirma o Brasil nao e o pais imaginado pelo identitarismo negrista
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Os resultados da pesquisa sobre afetos inter-raciais desmontam dogmas da nova esquerda e apontam para a necessidade de revisitar Gilberto Freyre

O Datafolha tornou público nos últimos dias o relatório da pesquisa que fez sobre os relacionamentos inter-raciais no Brasil. Já comentei de forma breve alguns dados que tinham sido divulgados na Folha de São Paulo, observando que os jornalistas e analistas preferiram enfatizar, de modo até bem forçado, indícios de racismo quando na verdade os resultados foram em sentido contrário a alguns dos principais dogmas do identitarismo de esquerda — ou, no caso, o identitarismo negrista, como o chama Antônio Risério.

Quais dogmas esquerdeiros seriam negados pela pesquisa?

Em primeiro lugar, a cantinela insustentável de que a miscigenação no Brasil é produto de um estupro sistemático. Ora, o mestiço é a grande pedra no sapato do movimento negrista, que age para torná-lo invisível a qualquer custo. Não é de espantar, já que o identitarismo de esquerda bebe nas fontes das relações raciais e étnicas norte-americanas, para as quais o mestiço é uma excrescência. Daí que a abordagem que o identitarismo faz do mestiço é a mesma dos racistas anglo-saxões oitocentistas; e, ainda mais especificamente, das oligarquias da República Velha.

Ora, se as elites intelectuais republicanas anteriores a Vargas desejavam “embranquecer” os mestiços brasileiros, os identitários negristas querem “empretecê-los”. O que une ambos é a incapacidade de lidar com identidades raciais intermediárias, ou com a ausência de identidade racial definida. Tanto para os racistas da República Velha quando para os identitários negristas, todos têm de ter alguma raça para chamar de sua, o mestiço se constituindo em nulidade e vazio. É inevitável que, partindo de categorias retiradas da experiência norte-americana, o movimento negrista continue fortemente abraçado ao mundo gestado por Gobineau.

O IBGE se tornou uma trincheira dos identitários racialistas ao considerar todos os autodeclarados pardos como ”negros”. Nas pesquisas populacionais, o brasileiro pode se identificar como preto, pardo, branco, amarelo ou indígena. Mas os que se identificam como pardos [ou similares populares, como caboclos, cafuzos, mamelucos, mulatos, morenos, cabrochas, cabras etc.] são transformados estatisticamente em negros, mesmo que nenhum deles tenha se declarado assim. A manipulação semântica leva à multiplicação de ”afro-descendentes”, à invisibilidade dos mestiços e à projeção da imagem de uma nação birracial, parâmetros que agora guiam as políticas públicas.

Políticas públicas que também se voltam contra os mestiços. Ainda que usados para inflar os números de afro-descendentes, os metiços podem ser descartados pelos instrumentos de ação afirmativa — que desenvolveram símiles de tribunais raciais — caso não sejam retintos o suficiente para a o establishment negrista. Esse mesmo mecanismo de pressão social contra os mestiços se voltou contra o Ministro Flávio Dino, cuja indicação para o STF foi lamentada pelos negristas. O pardo Dino é bom para engrossar os números de ‘negros’ nas estatísticas oficiais, mas se torna ‘branco’ quando ocupa uma posição de poder ou cargo visado pelas lideranças identitárias. Assim como no discurso racista anglo-saxão, o identitarismo de esquerda trata o mestiço como o ”cocô do cavalo do bandido”.

O segundo dogma negado pelo levantamento é de que o Brasil é uma sociedade segregacionista. Ainda que não o afirme explicitamente, o identitarismo racialista, ao pensar segundo o modelo da sociedade ianque, acaba por imaginar uma realidade social diferente da nossa. Por mais que a chaga do racismo exista entre nós, ela não tem a forma nem a gravidade das tensões étnico-raciais norte-americanas. As classificações raciais que operam no seio da sociedade brasileira não são as mesmas em operação nos EUA. O Brasil é uma máquina de ”desetnicização”, e a ênfase das nossas interações entre pessoas de ‘cor diferente’ está na integração, mistura e sincretismo. Um país que não apenas assume a miscigenação: valorizamos também a mestiçagem, e não a separação étnico-racial.

Constatar que a mestiçagem é cerne das nossas relações inter-raciais não implica em negar a existência de um racismo no Brasil. Mas tentar combater o racismo fazendo tabula rasa do principal processo formador da nacionalidade brasileira, substituindo-o por um modelo estrangeiro, que se apoia em outra realidade, e que é reproduzido por sociedades imensamente fracassadas no âmbito das relações interétnicas, como é o caso da norte-americana, é o ápice não só do vira-latismo, como também da alienação.

Vamos a alguns resultados da pesquisa que são um obstáculo para a abordagem identitária. Fiz notar, em texto anterior, que para 85% dos entrevistados, a cor da pele não interfere nem em relacionamentos amorosos nem em amizades. Alguns poderiam imaginar que se trata de uma retórica de tolerância que não encontra eco nas práticas cotidianas. Afinal, ninguém quer posar de politicamente incorreto em uma entrevista. Mas o levantamento vai além e pergunta também se a pessoa já viu a cor da pele interferir em seus próprios relacionamentos amorosos e amizades. E 91% afirmaram que não, uma proporção ainda maior que a da questão anterior, que se fundamentava mais em percepção do que nas experiências de vida do entrevistado. Mesmo entre os pretos, grupo mais visado por discriminações raciais, 81% dizem que a cor da pele nunca interferiu no seus relacionamentos, sejam eles amorosos ou de amizade [88% disseram ter amigos próximos de outra cor de pele, somente 6% afirmam ter círculo de amizades próximas formada por indivíduos da mesma cor de pele].

A pesquisa se torna ainda mais objetiva ao questionar se, nos últimos relacionamentos amorosos, a pessoa se envolveu com pessoas de outra cor. Apenas 15% dos entrevistados se relacionaram exclusivamente com pessoas de sua própria cor. 77% tiveram relações amorosas com pessoas de cor diferente da sua. 47% tiveram relações amorosas majoritariamente com pessoas de cor diferente. Não há diferença entre pretos [80% e 58%], pardos [75% e 45%] e brancos [76% e 41%] nesse quesito. A maioria esmagadora dos brasileiros se envolve intimamente com pessoas de outra raça, uma lógica integracionista e não segregacionista.

Alguns poderiam dizer que há diferença substancial entre o namoro e a construção de uma vida em comum. Na hora de relações estáveis, de casamento, o que imperaria no Brasil é a segregação racial. Mas a pesquisa também desmonta esse argumento. Os entrevistados respondem se já casaram ou moraram juntos de pessoas com cor diferente da sua. 47% afirmam que sim [45% que não, e 8% nunca moraram juntos de alguém]. Entre os brancos, o percentual é de 44%; entre os pardos, 48%; entre pretos, 51%.

A maioria dos brasileiros casa com pessoas de outra cor/raça. Cai por terra a ideia de uma sociedade segregacionista, e cai por terra a tese insana de que a miscigenação é fruto de relações de opressão e de estupro sistemático. O brasileiro sente atração, namora, casa com pessoas de outra raça, se miscigena, e se torna mestiço, porque quer, e porque gosta.

É a partir destes dados [a maioria dos brasileiros tem amizades, relações amorosas e casa com pessoas de raça diferente] que podemos avaliar melhor as percepções mais subjetivas captadas pelo levantamento. O Datafolha perguntou qual cor de pele é mais atraente para o entrevistado, uma pergunta que pode adquirir, em certos círculos, um tom politicamente incorreto. 40% se disseram indiferentes [46% entre os brancos, 37% entre pardos, 36% entre pretos]. Mas 20% disseram preferir a cor preta, e 28% a parda. Só 14% cravaram preferir a branca.

[As respostas eram múltiplas, e portanto o total supera os 100%.]

Entre brancos, 15% sentem mais atração por pretos, 21% por pardos, apenas 17% preferem os próprios brancos. A maioria esmagadora dos brancos diz ser indiferente à raça em sua atração sexual, ou então preferir explicitamente pretos e pardos. O corte racial em que mais explicita atração por pessoas da mesma cor é o dos pretos: 38% preferem os próprios pretos, 18% os pardos, e apenas 15% os brancos. Entre os pardos, apenas 13% preferem os brancos.

Aparentemente, a libido brasileira tem viés ”racial” de fato: prefere majoritariamente a melanina.

Alguns podem argumentar que isso é apenas retórica politicamente incorreta: mas segundo a pesquisa, a maioria dos entrevistados afirma ter amigos de outra cor, ter namorado recentemente pessoas de outra cor, e morado juntos/casado com pessoas de outra cor, respostas que não dependem apenas da percepção ou impressão do entrevistado, mas que refletem suas próprias práticas sociais cotidianas.

O identitário esquerdeiro, o adepto fanático do movimento negrista, parece falar de um país inexistente. O Brasil real sofre com a chaga do racismo. Mas um racismo que se dá com parâmetros muito diversos daquele ianque. E um país que nada tem de segregacionista. Um país que tende a integrar pessoas de etnias e raças diferentes, que assume a miscigenação, a reproduz organicamente, e valoriza antes de tudo a mestiçagem — e não a separação e o segregacionismo. E faz isto por gosto. Por amor. E não por causa de uma estrutura escravista que induz ao estupro sistemático.

É hora de revisitar Gilberto Freyre.