Processo estrutural contra a judicialização da política: percurso inconcluso

Processo estrutural contra a judicializacao da politica percurso inconcluso
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A judicialização da política é a Geni. Todos são contra a judicialização da política, salvo quando lhes beneficia. Políticos e seus partidos, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, ONGs (algumas meras fachadas de laboratórios farmacêuticos), todos apelam ao salvacionismo heroico ad hoc, randômico e disruptivo do Judiciário para resolver situações emergenciais (algumas delas meras conveniências casuísticas e oportunistas, e mesmo deslavados ataques piratas ao orçamento). Mas todos são contra a judicialização da política.

O Judiciário é Poder. E Poder gosta de poder. O Judiciário diz que age quando provocado. Mas, como sabemos, nem sempre. Não raras vezes desce ao parquinho porque gostou da brincadeira. A “lava jato” é apenas a face mais visível do protagonismo judicial para “civilizar” a sociedade (no caso da LJ, servir a interesses estrangeiros contra o desenvolvimento nacional).

E, cada um dançando a sua música, segue o baile da judicialização da política. A experiência institucional para controlar a judicialização da política resultou no que se chama de processos estruturantes ou processos estruturais.

Ato do presidente do Senado institui Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil. Na precisa definição do desembargador federal Edilson Vetorelli, relator da comissão:

Processos estruturais são demandas judiciais nas quais se busca reestruturar uma instituição pública ou privada cujo comportamento causa, fomenta ou viabiliza um litígio estrutural. Essa reestruturação envolve a elaboração de um plano de longo prazo para alteração do funcionamento da instituição e sua implementação, mediante providências sucessivas e incrementais, que garantam que os resultados visados sejam alcançados, sem provocar efeitos colaterais indesejados ou minimizando-os. A implementação desse plano se dá por intermédio de uma execução estrutural, na qual suas etapas são cumpridas, avaliadas e reavaliadas continuamente, do ponto de vista dos avanços que proporcionam. O juiz atua como um fator de reequilíbrio da disputa de poder entre os subgrupos que integram a sociedade que protagoniza o litígio. (aqui)

PLs 8.058/2014 e 5.139/2009

A comissão de juristas do Senado produzirá um texto capaz de ser aprovado pelo Congresso? O histórico das iniciativas na matéria mostra o tamanho do desafio. No caso da mais notória iniciativa legislativa na matéria — o PL 8058/2014, da Câmara dos Deputados —, a política rejeitou a proposta.

De iniciativa do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), o projeto resultou de alentada reflexão acadêmica entre 2010 e 2014, coordenada pelos professores Kazuo Watanabe, Ada Pellegrini Grinover, com a colaboração do professor Paulo Lucon.

O projeto visava indicar “o caminho a ser seguido pelo Poder Judiciário, em estreito contato com o Poder Público, para a construção do consenso ou a formulação de comandos flexíveis e exequíveis, que permitissem o controle da constitucionalidade e a intervenção em políticas públicas, evitando que o juiz se substitua ao administrador.

Todavia, de boas intenções o arquivo do Congresso está cheio. Nos quase dez anos de tramitação, o PL 8.058/2014 já frequentou o arquivo da Câmara dos Deputados por duas vezes, ao final das legislaturas findas em 2015 e em 2019, tendo dele sido resgatado pelo resiliente deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

O autor e o relator original, deputado Esperidião Amin (PP-SC), requereram e coordenaram uma longa audiência pública em 1/9/2015 e outra foi requerida, mas não realizada.

Em 22/1/2019, o relator Espiridião Amin (PP-SC) devolveu o projeto, sem manifestação, para a Comissão de Finanças e Tributação, a primeira para a qual foi despachado e na qual ainda se encontra.

Designado novo relator, em 3/4/2019, o deputado Enio Verri (PT-PR), a tramitação foi atropelada pela pandemia. Em 31/1/2023, o deputado, hoje presidente da Itaipu Binacional, deixou de fazer parte da CFT. Desde então o projeto encontra-se sem relator e sem movimentação. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) não está no exercício do mandato. É ministro do Desenvolvimento Agrário. O projeto está sem quem o defenda e o impulsione.

Enfim, o esforço dos doutos que inspiraram o PL 8.058/2024 acabou por não produzir qualquer mudança legislativa ainda.

PL 5.139/2009

O PL 8.058/2014 não foi a primeira iniciativa legislativa para colocar contenção na judicialização política. Em 2009, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, coordenou esforço que resultou na propositura pelo presidente do PL 5.139/2009.

O projeto foi elaborado a partir de estudos de uma comissão de juristas com o objetivo de disciplinar a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Malgrado sua evidente natureza de código instituidor de um ”Sistema Único Coletivo”, a opção por um projeto de lei ordinária visou evitar a longa tramitação de um projeto de código.

A estratégia era boa, mas no caminho havia uma pedra. A ficha de tramitação do projeto mostra que o ele foi atropelado pela articulação operada pelo deputado Luiz Carlos Aleluia (então DEM-BA), redator do parecer vencedor na Comissão de Justiça e de Cidadania. Da decisão da CCJC foi apresentado recurso ao plenário, que aguarda despacho da Mesa desde 12/5/2010.

Comissão de juristas do Senado

A Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil terá êxito onde malograram os doutos da comissão de juristas que escreveram o PL 5.139/2009 e os professores de Direito que inspiraram o PL 8.058/2014, ambos atropelados pela política?

Há razões para otimismo. Primeiramente, a derrota do governo Lula na votação do PL 5.139/2009 na CCJC foi comandada por Paulo Maluf (então PP-SP). Não parece que haja hoje à vista um líder político de envergadura disposto a derrotar uma iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Por outro lado, o PL 8.058/2014, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP). teve sua tramitação inicial dificultada pelo ocaso do governo Dilma. Era um governo fraco, que buscava salvar-se, e que foi, afinal, apeado pelo golpe do impeachment. Depois veio a pandemia e nada caminhou no Congresso. A iniciativa da criação da comissão de juristas para o projeto de lei do processo estrutural não é do governo nem contraria interesses da oposição.

Favorece ainda o êxito da proposta que surgirá da comissão de juristas do Senado a necessidade premente de que a matéria seja regulada. Depois da rejeição do PL 5139/2009, as mudanças trazidas pela “comissão Fux”, embora positivas quando equacionaram o problema dos recursos repetitivos), revelaram-se incapazes de resolver de maneira eficiente e prospectiva conflitos coletivos

Fator Aras
Processo social de amplo espectro, a história não é determinada pela ação individual, mas mesmo a teoria marxista reconhece a influência do indivíduo, senão para dirigir de modo absoluto o curso dos acontecimentos, ao menos para influenciá-lo (O Papel do Indivíduo na História, Plekhanov).

Não terá sido acidental que o presidente do Senado tenha escolhido o subprocurador-geral da República Augusto Aras para presidir a comissão encarregada de elaborar o projeto de lei do processo estrutural, que visa colocar regras para a interferência judicial em políticas públicas.

Além de ter participado da comissão de juristas instituída pelo ministro da Justiça Tarso Genro, que resultou no PL 5.139/2009, a biografia do baiano Aras perpassa a política e o Direito. Sua escola política é a do seu pai, Roque Aras, militante da ala esquerda do MDB na ditadura, sob a liderança do lendário Francisco Pinto.

Roque foi vereador em Feira de Santana (BA), deputado estadual, presidente do diretório estadual do partido e deputado federal, eleito em 1978. Findo o bipartidarismo, Roque, em reunião com Moniz Bandeira, da qual Augusto participou, escolheu seguir Brizola no PDT. Depois filiou-se ao PT, vindo a ser candidato ao Senado pelo partido, em 1986.

Aras levou o que aprendeu com o seu pai para a Procuradoria-Geral da República. Embora indicado por Bolsonaro, teve amplo apoio político na sua primeira aprovação pelo Senado, em 2019, e na sua recondução, em 2021, inclusive do PT.

Petistas de calibre, como Jaques Wagner e Rui Costa, e também advogados de esquerda, como Luiz Carlos da Rocha, viam com bons olhos a sua recondução para um terceiro período, mas a escolha do presidente Lula recaiu sobre o subprocurador-geral da República Paulo Gonet.

Duas experiências que marcaram especialmente os dois mandatos de Aras na PGR ser-lhe-ão especialmente úteis na presidência da comissão de juristas do processo estrutural, a “lava jato”, que ele desmontou, e a pandemia, que enfrentou com ampla reforma no Ministério Público.

Em artigo premonitório, ainda no primeiro semestre de 2020, Jorge Bahia resumiu a atuação de Aras nos dois enfrentamentos.

A pandemia, que atrapalhou a tramitação do PL 8.058/2014, segunda tentativa de estabelecer a racionalização do arbitramento judicial de conflitos coletivos solucionáveis por políticas públicas, hoje pode ser fator positivo para a aprovação do projeto de lei do processo estrutural.

Isso porque em nenhum momento anterior da vida republicana o Supremo Tribunal Federal foi instado a regular o enfrentamento de uma situação de crise na saúde pública. Há, digamos, uma fadiga do material e as instituições estariam propensas a encontrar um caminho formal para evitar as frequentes e irracionais interferências ad hoc do Judiciário em políticas públicas.

A pandemia exigiu também que Aras reconduzisse o Ministério Público à revalorização do princípio da unidade institucional, em harmonia com o princípio da independência funcional, experiência registrada em livro publicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

Como registrou esta ConJur, o jornalista Luís Costa Pinto, em série de artigos no Brasil 247 e em entrevista à TV GGN, descreveu o protagonismo de Aras nos febris bastidores que afastaram o risco de conflagração aberta entre os poderes no final do governo Bolsonaro.

Experiência acadêmica

A par da habilidade política e capacidade de interlocução, presentes na presidência de Aras e na vice-presidência do ministro do STJ Ribeiro Dantas, o rigor técnico estará prestigiado nos trabalhos da comissão de juristas do Senado pela participação de experientes professores, como Sérgio Cruz Arenhart, que participou da comissão de juristas que inspirou o PL 5.139/2009.

Também pela participação da Ordem dos Advogados do Brasil, depositária da experiência das iniciativas anteriores na regulação legislativa da matéria. A Ordem está representada pelo ex-presidente do Conselho Federal Marcus Vinicius Furtado Coêlho.

Igualmente relevante que a relatoria da comissão de juristas do Senado para o projeto de lei do processo estrutural esteja sob a responsabilidade do desembargador federal Edilson Vetorelli, reconhecidamente um dos maiores estudiosos da matéria.

Mas, como já vimos nas tentativas anteriores de regulação da matéria, do PL 5.139/2009 e do PL 8.058/2014, o sucesso virá não apenas do bom trabalho técnico-legislativo de racionalização do arbitramento judicial de conflitos coletivos, mas principalmente da arte da política. É preciso combinar com os russos. Alea jacta est.

Por Samuel Gomes

Originalmente publicado no Conjur.