O identitarismo não entende o fenômeno do racismo no Brasil

O identitarismo nao entende o fenomeno do racismo no Brasil
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O identitarismo pós-pós de base esquerdeira pretende monopolizar as discussões anti-racistas no Brasil. É uma tática atroz de se apresentar como único porta-voz legítimo contra o racismo. A pretensão se torna ainda mais ridícula porque esses movimentos se apoiam em classificações e delimitações raciais rígidas e em uma narrativa marcada pelo conflito racial.

Mais ainda ainda, caem na esparrela de ler a realidade brasileira pela universalização da experiência histórica e das alternativas criadas nos EUA, um velho colonialismo mental que pode ser mais bem descrito como “complexo de vira-lata”.

Sempre que contestados, os identitários pós-pós apontam para o passado escravista do nosso país. Não passa pela cabeça deles que o escravismo brasileiro não foi montado nem foi modelado pelo racismo biológico. É um escravismo pré-Gobineau, que no Brasil foi caracterizado por uma combinação singular de convívio inter-étnico, por uma quantidade de alforrias completamente diferente da experiência norte-americana, e por um processo de miscigenação sistemático e que ia muito além das relações dentro do aparato senhorial direto.

As classificações raciais europeias oitocentistas, particularmente as anglo-saxãs, foram ”adaptadas” a um país cujas hierarquias tinham sido formatadas por uma dinâmica sócio-cultural e política bem distinta. Foi criado um ”racismo brasileiro”, com seus problemas e nuances próprios.

Ora, uma das sutilezas do racismo brasileiro era a tendência a imitar o veredito europeu e ianque contra o mestiço. Esse padrão de leitura racialista continua sendo copiado por esta mesma elite, mas agora em um viés ”esquerdeiro”, como se fosse a única opção possível de combate ao próprio racismo. Trata-se de importar as definições e delimitações fixas do racismo ianque e promover uma ”consciência de luta racial” entre os ”oprimidos”.

Mais do que a miscigenação, a mestiçagem [não um processo apenas físico, e sim de mescla e síntese civilizacional] se tornou norma e régua no Brasil. Isto cria obstáculos intransponíveis para a importação pura e simples dos parâmetros raciais ianques e europeus. Daí porque os movimentos identitários pós-pós precisam fazer tabula rasa da experiência histórica que formou o brasileiro. Precisam pintá-la nas piores e mais reducionistas cores possíveis, tornando-a um drama de erros, violência e estupros. Para estabelecer a ”guerra racial santa e purificadora”, os identitários ianques precisam se livrar do Brasil enquanto projeto civilizacional e substituí-lo por alguma outra coisa.

Isto explica o repúdio que os identitários sentem de Darcy Ribeiro, de Gilberto Freyre e outros intelectuais capazes de ler a nossa realidade por dentro [e não a partir de uma importação de teorias do Norte]. Freyre é, inclusive, taxado de ”racista” por ser um dos bastiões da valorização da mestiçagem em nossas terras. Ora, já me repetindo, o mestiço [mais do que o simplesmente miscigenado] é a pedra no sapato do projeto de colonialismo mental identitário. Sua identidade intermediária é a negação da fixidez racial, da etnicização dos caracteres físicos, da mobilização da raça como fator de conflito contra os “opressores”.

Pior ainda, Freyre prova que a realidade do nosso país é melhor lida por nossos parâmetros, em vez de ser gestada como modelo pseudo-universal por universidades dos principais centros capitalistas. Ele é a negação total do vira-latismo ao afirmar que a experiência histórica brasileira é, em algum sentido, superior à norte-americana.

Isso não significa a inexistência de um racismo brasileiro. E sim a constatação de que em nossas culturas e vivências sociais se encontram as respostas para suplantá-lo. A afirmação de que, nesse sentido, não somos um fracasso histórico, como é o caso das relações interraciais ianques, que só oferecem a delimitação e o conflito racial como alternativa à opressão.

O revés do identitarismo pós-pós no Brasil virá também de uma reação das universidades e dos políticos. Mas seu principal inimigo é sempre será a forma própria de sociabilidade construída pelos brasileiros. O Brasil é inimigo do identitarismo pós-pós justamente porque o povo brasileiro, apesar dos pesares e das muitas dificuldades, é avesso a delimitações e conflitos baseados em raça e etnia. É um povo que se construiu para superar estas diferenças.