Aldo Rebelo e a mineração em terras indígenas

Aldo Rebelo e a mineracao em terras indigenas
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Crescer no campo ou em alguma cidade interiorana é uma experiência muito marcante, especialmente nesse Brasil hiperurbanizado de hoje em dia. Diferentemente do que a cultura cosmopolita hegemônica dos grandes centros propaga, a vida no interior, em muitos aspectos, é altamente complexa e rica em termos de experiência e formação.

Por ter vindo de lá, com família vivendo na zona rural, o contraste com a vida nas grandes cidades é inevitável. Um migrante avalia tudo em termos de comparação. A comida, os costumes, a relação com o espaço, com o tempo (que é calculado na estranha unidade de medida “depende do trânsito”), o medo de ser assaltado, baleado, sequestrado ou atingido por um meteoro. A vida na cidade grande tem uma dinâmica própria, cujos detalhes parecem invisíveis a quem já nasce inserido nela.

Algo que sempre me chamou a atenção nesse mundo novo foi o supermercado. A fonte de todo alimento, devidamente embalado e rotulado, que dispensa reflexões a respeito do período da laranja, do mês da colheita do milho, da época de jabuticaba ou de uma surpreendente fruta encontrada no pé ‘fora de época’. Gigantescas câmaras frias para armazenagem e sofisticadas embalagens a vácuo que preservam os vegetais quebraram a relação entre o alimento e o período de consumo.

O processo de produção também se esconde nesse gigante processo de distribuição que alimenta as grandes cidades sobre o lombo dos homens e mulheres do campo. Adubos, tratores, sementes, ração, pragas e defensivos agrícolas são temas totalmente ausentes do dia a dia. Aliás, ausentes não. Aparecem nas conversas vez por outra.

Contudo, o assunto nunca é a semente desenvolvida pela EMBRAPA que brota mais rápido e é resistente à seca. Ou a nova raça de vacas que produz mais leite consumindo menos ração. Ou a praga de insetos que destruiu o milharal do Sr. Gerson. Ou a cheia que está impedindo o caminhão de leite de coletar a produção da D. Neide. Ou o atravessador que está ganhando 5 vezes mais que o produtor na região. Ou o banco que extorquiu o Sr. Antônio com juros até tomar o trator dele. O assunto preferencial lá na cidade grande é como o produtor rural destrói a natureza, contrata pistoleiros, mata indígenas e rouba terras.

Óbvio que no Brasil continental, com seu Estado débil e subfinanciado por décadas de austericídio, num contexto de acelerada reprimarização da economia, ocorre de tudo, inclusive esses crimes asquerosos denunciados de forma sincrônica pela grande mídia e pelos sites de ONGs estrangeiras, sempre muito preocupadas com o meio ambiente brasileiro. Mas não deixa de ser um enfoque interessante, e aparentemente irrefletido, esse das pessoas que vivem na selva de pedra, protegidas da malária, da picada de cobra e dos humores de São Pedro para ganhar a vida.

Outro estranhamento que sempre tive foi em relação ao senso de grandeza. Me lembro certa vez de conversar com uma moça revoltada com as queimadas na Amazônia, sugerindo que o governo precisava instalar dispersores de água pela floresta para impedir a propagação das chamas. Um exemplo caricato, mas representativo de muitas outras conversas que presenciei com essa total falta de dimensão territorial e orçamentária.

O convite para o churrasco no “sítio” do tio, que seria “enorme”, foi outra lição que tive. Sem dúvida, uma agradável casa de campo no entorno da capital, mas longe de ser um sítio na concepção que eu tinha da palavra, de um lugar que comporta uma pequena plantação ou algumas cabeças de gado. Esse é o horizonte citadino que forma ‘especialistas’ em agricultura, pecuária, mineração, meio ambiente, estrutura fundiária, relações trabalhistas e direitos humanos no campo e nas florestas.

Claro, também conheci os especialistas de verdade. Agrônomos, engenheiros, geólogos, zootecnistas e até alguns sociólogos e antropólogos discípulos de Darcy Ribeiro, que vêem o mundo pela lente da questão nacional e cujo convívio é sempre muito enriquecedor. No entanto, essa é uma perspectiva que fica restrita ao debate acadêmico, a eventos e publicações setoriais ou a nichos dispersos pela internet. O ruidoso senso comum a respeito da questão agrária no Brasil é formado quase exclusivamente pela grande mídia que, curiosamente, recebe vultosos recursos para difundir a inútil mensagem do ‘agro é pop’ no intervalo da novela, enquanto culpa o setor agrário indiscriminadamente por todas as tragédias do universo no jornal das 8.

E tragédias não faltam nessa imensidão do Brasil profundo. Desmatamento ilegal, queimadas sem controle, assassinato de sem-terras, grilagem ou essa situação ignominiosa que ocorre hoje com os yanomamis, cujas horrendas imagens têm apertado o coração de todos que possuem um. E a solução imediata não deve ser matéria de discussão: socorro urgente com alimentos, atendimento médico e proteção das aldeias com força militar. Já no médio e longo prazo a discussão é fundamental e tentar interditá-la usando imagens de crianças famintas devia ser considerado algo tão ignominioso quanto o que gerou a atual situação calamitosa.

Num cenário de tantos interesses envolvidos – poderosos e não tão ocultos interesses –, a situação concreta de indígenas, ribeirinhos, garimpeiros e outros tantos miseráveis que lutam entre si e pelejam para sobreviver na ausência do Estado precisa ser analisada com muita dose de realismo e soberania – dois elementos escassos no debate público atual.

E nessa problemática, um assunto que tem gerado reações apaixonadas, especialmente das pessoas descritas no início deste texto, é a possibilidade de regulamentar a mineração em terras indígenas. O ex-ministro Aldo Rebelo vem levantando essa questão em entrevistas, ao dizer que a Constituição prevê essa possibilidade, carecendo ainda da regulamentação tentada diversas vezes por todos os governos que vieram depois de 1988. Segundo o ministro, em algumas aldeias, os próprios indígenas têm trabalhado na garimpagem de suas terras, como os cintas-largas, por exemplo, cuja produção, por ser desregulamentada, é subvalorizada, além de semiartesanal e sem fiscalização, o que a torna potencialmente mais prejudicial ao meio ambiente.

Mas esses dois fatos levantados pelo ministro, que deveriam estar sendo discutidos junto às comunidades interessadas, são silenciados do debate pela acusação de que apenas enunciá-los já representaria a defesa de um genocídio. E esse é um discurso que reverbera bem entre pessoas que vivem longe do foco do problema, que não distinguem os povos indígenas em seus graus diferentes de integração e que dimensionam o impacto do processo de extração mineral a partir do tamanho do “sítio do tio”.

Só para se ter ideia da extensão dos territórios em questão, a reserva yanomami, por exemplo, apenas do lado brasileiro, possui 9,4 milhões de hectares com uma população de cerca de 28 mil indivíduos, ou seja, igual a população da pequena cidade onde eu cresci dispersa num território maior que duas Suíças! Não estou afirmando com isso que deva-se autorizar a mineração por lá, mas, vista nessa proporção, é possível conceber uma regulamentação da atividade que minimize o impacto entre os indígenas, seja pela criação de uma empresa estatal exclusiva para esse fim, seja por uma rígida regulação de cooperativas de garimpeiros, criando uma fonte de recursos que financie a proteção, em todas as dimensões possíveis, da vida nas aldeias.

Entretanto, se essa é uma possibilidade que levanta legítimas dúvidas e questionamentos, uma coisa é certeza: independentemente de qualquer regulação, ninguém que vive num território desse tamanho, com água abundante, ensolarado o ano inteiro e com uma população relativa tão diminuta pode passar fome. Isso representa um fracasso inaceitável do Estado brasileiro na condução das políticas indigenistas, o que parece não estar perto do fim, como vimos nas últimas semanas na reserva yanomami, com cenas de ministros de ministérios sem orçamento organizando doação de cesta básica por ONGs, enquanto membros de um governo ávido por pautas positivas produzia imagens para divulgar na mídia internacional. Aliás, governo de um partido que vem flertando perigosamente com ideias como a internacionalização da Amazônia, como já abordado neste blog aqui e aqui.

Reduzir a solução da questão indígena à autorização da mineração em suas terras é algo tão simplório quanto afirmar, a partir do conforto das grandes cidades do sudeste, que deve-se proibir qualquer tipo de introdução técnica nas aldeias, independente da opinião dos próprios indígenas a respeito (essas duas posições extremadas foram muito bem analisadas nesse ótimo artigo, “Nacionalismo, indigenismo e a Grande Síntese”).

As comunidades indígenas são diversas não só na língua e nos costumes, mas também no grau de integração e aproximação com as demais comunidades que integram a sociedade brasileira. Permitir que os mais isolados sigam em seu modo tradicional de vida, sob proteção do Estado nacional brasileiro, é algo tão imperioso quanto assegurar àqueles que querem desenvolver atividades econômicas em suas reservas recursos, treinamento e garantias legais para tal. Em ambos os casos, a construção de infraestrutura por parte do Estado é imprescindível, seja levando estradas, luz elétrica, saneamento e meios de transporte aos que desejam se integrar, seja garantindo, ao menos, acesso à saúde e proteção militar das terras no caso das comunidades menos integradas, cujo desejo de isolamento não pode eximir o Estado de suas obrigações legais para com todos os brasileiros.

Uma grávida necessitando realizar uma cesárea precisa ser atendida com urgência, viva ela numa grande cidade, viva ela no meio da floresta tropical. Deixá-la gritando de dor por dias até vir a óbito junto com o bebê, sob pretexto de não poder alterar a cultura indígena ancestral, não é só uma crueldade aplaudida por certos setores ilustrados da classe média urbana, mas é ilegal segundo a Constituição que ainda vale em todo território nacional, seja em reserva indígena ou não.

Outro papel fundamental da presença do Estado é o patrulhamento das áreas de fronteira. Se a presença militar nas reservas é necessária para a proteção de indígenas e biomas, ela também é indispensável para garantir a soberania territorial da nação. Restringir qualquer acesso das Forças Armadas na região de fronteira, sob pretexto de ser área de reserva, certamente cumpre funções que não estão nem de longe ligadas ao bem-estar das comunidades indígenas. Estudar a história da formação dos Estados nacionais mostra bem que funções são essas.

O garimpo ilegal tem levado do país muitos bilhões de dólares que deixam aqui pouquíssimos benefícios e todos os malefícios possíveis. E a condenação estrangeira de qualquer atividade econômica na área de floresta não coaduna com sua voracidade em comprar tudo o que é extraído daqui de forma irregular, sob o anteparo de leis que protegem esses compradores do crime de receptação. Segundo o Instituto Escolhas, metade do ouro extraído no Brasil entre 2015 e 2020 saiu de mineração ilegal em reservas indígenas e os principais compradores são empresas do Canadá, Suíça e Reino Unido, três grandes financiadores de ONGs supostamente ambientalistas que atuam aqui.

Num cenário desses, qualquer debate sério a respeito dessa questão precisa levar em consideração a dimensão territorial, o desejo dos próprios indígenas – tomados em suas particularidades e não como a massa uniforme idealizada por pessoas que vivem longe das aldeias, o volume de dinheiro envolvido, os escusos interesses de dentro e de fora do país, as necessidades econômicas da região, o combate à miséria, a situação de garimpeiros e ribeirinhos (gente pobre que serve de bode expiatório e bucha de canhão de um negócio bilionário) e, sobretudo, a estrutura econômica brasileira que, ao se reprimarizar, aumenta a pressão para uma expansão continuada da fronteira agrícola para cobrir déficits na balança de pagamentos [sem indústria não há floresta!]. Ou seja, em um mundo em crise, compelido a um eterno ajuste e intensificação de guerras comerciais ou mesmo conflitos bélicos, como vemos na conjuntura atual, só há uma saída para a realização dos interesses das comunidades indígenas e de todas as demais comunidades que compõem o tecido social brasileiro: caminhar juntas sob o manto do Estado nacional. Eis nosso destino e nossa única salvação.

  1. Queridos, 1.Yanomamis aqui em Roraima são isolados, protegem sua cultura, que faz parte morar em terras mais altas. Para exploração econômica das áreas a discusão passa pela permanência ou não do direito ao uso exclusivo delas por esse grupo étnico. O sistema atual é que a área é para eles e seu meio de vida é dependente dessa exclusividade. 2. A fome nessa Suíça, entre tantas Suíças no nosso país, não pode ser dissociada da poluição das águas pelas formas baratas que tornam lucrativa essa forma de mineraçao. 3. Essa mineração não é criminosa apenas por promover o genocídio ianomami, mas é ilegal também pelo fato desse minério não pertencer a esses mineradores, eles não tem nenhum direito à essa lavra, então se trata de roubo. Mas a nossa tradição racista passa um panão pra essas ordas armadas assassinas, afinal são os velhas milícias sertanistas ocupadas de extermínio étnico e drogas do sertão.

  2. Dilhermando Campos, interessante seu texto sobre o o Estado e os indios, mas antes de tudo, favor definir o que o Sr entende por ser Índio.
    No meu entender, Índio é quem vive integrado na natureza, utilizando de seus recursos de forma Natural e Primitiva, como há milênios. Pra isto é que são designadas áreas imensas pra eles ocuparem.
    Se o Estado começa tutela-los com Assistência médica, Formação escolar, Recursos da sociedade “”moderna””, etc, então deixam de ser Índios, e deveríamos retirar deles esta imensidade de terras e matas, e integrá-los em nossa sociedade.
    Ou um, ou outro!!!
    J E M.Simão

  3. Ótimo texto. Nesse momento em que o neoliberalismo transforma-se em dogma, nada mais perigoso que o debate.

  4. Gostei do comentário. As mesmas ongs que se diz proteger a Amazônia, são exatamente das nações que estão roubando as nossas riquezas. Hipocrisia pura.

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