O sonho de disputar o governo Lula acabou?

O sonho de disputar o governo Lula acabou
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“E então, queridos amigos,
Vocês vão ter que seguir em frente
O sonho acabou”

John Lennon

O ano de 1970 marcou o fim de uma das experiências musicais mais intensas e criativas da contemporaneidade, Os Beatles. Em apenas 7 anos, a banda inglesa pegou um gênero que estava começando a deslanchar, o rock, e inventou praticamente todos os seus subestilos (além de várias outras inovações musicais) conhecidos hoje. Para além da inventividade, tal experiência veio acompanhada de um sucesso mundial de proporções gigantescas. Tanto que o fim precoce da banda levou a uma tristeza generalizada na sua enorme base de fanáticos. A citação que inicia esse texto é de um trecho da música “God”, que fecha com um recado de John Lennon para os fãs: “o sonho acabou”.

Mas o que isso tem a ver o Lula? Guardadas as devidas proporções, Lula também arrebatou um número considerável de fãs na sua trajetória política, consagrada com um terceiro mandato dado pelo voto popular logo depois de ver suas condenações anuladas pelo STF. Dentre esses fãs, muitos estão no campo da esquerda, inclusive a esquerda que se passa por socialista ou comunista. Um líder sindical com poder de encantar as massas não é um ativo para se jogar fora tão facilmente. Por isso, essa esquerda alimenta um sonho: o de disputar o governo Lula. Na cabeça desses militantes, o governo Lula precisa ser disputado com o mercado e o debate econômico tem que ser travado nas fileiras do governo e no espaço público para evitar que o mercado dite as regras da política econômica.

Parece que essas pretensões foram abaladas nessa última semana. Enquanto o Brasil debatia a invasão das sedes dos Três Poderes por parte de alucinados bolsonaristas, o governo Lula começou a botar as asas de fora e jogar água no chopp de quem ainda tinha alguma pretensão de disputar o governo. Na mesma semana, cancelou o aumento de R$18 que tinha prometido no salário mínimo para além daquele assinado por Bolsonaro (resultando em um aumento real de pouco mais de 1%), anunciou um pacote de ajuste fiscal de R$240 bilhões de reais e sinalizou, a partir dos discursos do ministro da Fazenda e da ministra do Planejamento (as duas pastas mais importantes da economia) que o governo será um governo da austeridade, falando a língua que o mercado gosta de ouvir.

O último ponto é o mais importante em relação aos rumos da economia no Brasil, já que indica o que pensa o novo governo em termos econômicos. Desde 2015, o Brasil está em constante ajuste fiscal e o resultado é uma economia em frangalhos, uma alta taxa de desemprego e um crescimento que mal chegou a 1%, quando teve crescimento. A ideia que move essa série de políticas de ajuste é a de que um governo que gasta menos do que arrecada é capaz de atrair investimentos e melhorar o desempenho da nossa economia. Tal ideia é conhecida pelo nome de “austeridade expansionista” ou “contracionismo expansionista”. Em suma, o corte de gastos e o equilíbrio fiscal, por parte do governo, levaria a um aumento na confiança do setor privado, nacional e internacional, sinalizando que o governo seria capaz de cumprir com suas responsabilidades, aumentando o crescimento da economia. Só que esse raciocínio tem um problema: ele não funciona. Como bem mostra o penúltimo capítulo do livro “Austeridade: a história de uma ideia perigosa” (2018) do economista escocês Mark Blyth, que faz um apanhado histórico de todas as experiências de austeridade, quando políticas econômicas de austeridade são aplicadas, os resultados quase sempre são crises ou recessões econômicas.

O debate sobre o reordenamento dos gastos do setor público no Brasil é urgente e isso não está sendo colocado em questão, já que o Estado brasileiro, por muitas vezes, funciona como uma máquina de tirar dinheiro dos pobres e direcionar para os ricos, ampliando ainda mais as nossas desigualdades e impedindo ainda mais o nosso desenvolvimento econômico. A questão aqui é que essa obsessão dogmática pela austeridade já afundou nossa economia e não pode ser a resposta para a grave situação econômica em que nos encontramos. O corte de gastos em áreas sociais e a redução ou congelamento do poder de compra do trabalhador deprimem a demanda da economia, fazendo com que o consumo não possa estimular a produção e o setor de serviços, dificultando qualquer retomada econômica. Pior, depois da pandemia e dos exemplos do que foi feito para salvar os sistemas financeiros mundo afora, com injeção massiva de dinheiro na economia sem nenhum problema grave posteriormente, algumas visões sobre macroeconomia já deveriam estar superadas. Pior ainda é quando um governo supostamente progressista reforça essas teses atrasadas e anticientíficas que ainda dominam o debate econômico no Brasil (lá fora a conversa é outra) apenas porque servem a uma minoria de ricos que ganha dinheiro com isso.

Diante disso, onde fica a disputa pelo governo? Lula reforça sempre que seu governo é de “frente ampla” usando como justificativa a “derrota do fascismo” e isso parece ser uma ótima estratégia para segurar as expectativas dos militantes de esquerda, mas desde quando sua prática foi diferente? Quando o PT presidiu o país entre 2003 e 2016, seus governos sempre foram marcados por amplíssimas coalizões que chegavam até nos representantes do mercado financeiro e do fundamentalismo religioso. Qual era a grande ameaça fascista na época para justificar tamanha amplitude? A ameaça do bolsonarismo é um fenômeno perfeito para renovar o que sempre fizeram, agora com uma justificativa um pouco mais nobre.

E onde fica a esquerda nessa frente ampla? A esquerda serve como escada. Os movimentos e os militantes da esquerda funcionam como uma escada para fazer com que o PT suba ao poder em momentos em que estão na baixa. Durante o ciclo 2015-2021, com o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro, o PT se reaproximou de vários setores da esquerda que criticavam os caminhos que o partido tinha tomado. Nessa época, o PT fugiu do pragmatismo total, característico de sua prática no governo, e passou a adotar um radicalismo retórico de esquerda. Isso ficou expresso nas eleições de 2020, onde o PT se negou a compor alianças com outros setores de esquerda mesmo sabendo que não tinha candidaturas competitivas em várias cidades importantes. O exemplo mais emblemático foi São Paulo. Agora, devemos destacar que o problema aqui não é o comportamento do PT, mas da esquerda, que insiste em aceitar esse papel de escada, de coadjuvante, e não trabalha sequer para criar formas independentes de representação ou de comunicação política. É justamente essa parcela da esquerda que acha possível, ainda hoje, disputar o PT pela esquerda.

Enfim, podemos tentar responder à questão que nos move: é possível disputar o governo Lula pela esquerda? Não. Por quê? Como já mencionamos, é uma prática comum para o PT mudar o discurso de acordo com o momento eleitoral. Na oposição, são esquerdistas, na situação, são centristas. Entretanto, o problema é ainda mais profundo, já que há uma outra característica do lulismo que impede essa disputa, o seu hegemonismo na esquerda. Em uma espécie de “Gramsci às avessas”, o PT não buscar ganhar a batalha moral da sociedade para avançar na construção de um projeto socialista, mas apenas busca consolidar a sua própria imagem como única esquerda possível no Brasil. Por isso, hegemonizam os meios onde a esquerda se informa e mantém uma enorme rede de influenciadores e de canais sob a sua influência que ditam o que é ou não de esquerda (sempre aquilo que servir aos interesses do PT). Diante desse cenário, como é possível uma disputa nessas condições?

Diante de tudo o que foi descrito, como esse processo de disputa funciona na realidade? Vamos imaginar um jovem economista, assessor do PSOL na Câmara dos Deputados, que defende teses econômicas mais à esquerda e que tem como intenção uma aproximação com o lulismo para difundir essas teses no meio de sua base. No momento da eleição, sua atividade foi exemplar: critica todos aqueles que apontam as contradições do PT, trava uma luta para garantir uma vitória eleitoral ao partido e vira um grande militante pela vitória de Lula. Por conta de anos junto com o partido na oposição a Bolsonaro, ganha acesso aos meios de comunicação do lulismo, passa a ser difundido e visualizado por aqueles que se julgam de esquerda. Então, o lulismo vence, assume o governo e passa a fazer o contrário do que esse economista defende. Nada mais natural, se é uma pessoa honesta intelectualmente, que confronte o partido por conta de uma atuação cada vez mais distante daquilo que o economista defendia, e que de certa forma foi alimentado pelo PT durante a campanha. Diante desse cenário, onde essa crítica será ecoada? Nos meios de comunicação que trabalham a serviço da hegemonia do PT? Na rede de influenciadores que trabalham a serviço da hegemonia do PT? Essa pessoa certamente não terá nenhum espaço para criticar os agrados ao mercado por parte do governo que não sejam as suas próprias redes.

A partir do momento em que começa a ser mais incisivo na crítica nas suas redes, nosso nobre economista começa a perder espaço nas mídias onde sempre estava presente. Desde quando passou a usar as próprias redes para denunciar os desvios econômicos à direita do governo, não foi mais convidado para nenhum outro programa nessa ampla rede, já começa a ser atacado por outros membros que começam a falar que “não é hora de criticar” ou que ele “está fazendo o jogo dos adversários” quando tece críticas às políticas econômicas do governo. A partir de então, nosso jovem, que antes era um grande defensor da democracia e do povo, passa a ser uma persona non grata, um incômodo. Por fim, suas críticas aumentam diante dessa reação e ele passa a ser chamado abertamente de fascista por conta de suas críticas. Como quem tem o estado, uma rede de influenciadores e uma rede de portais e canais na internet para sustentar qualquer narrativa não é nosso amigo ou o partido que ele faz parte, assim termina a tentativa de disputar o governo pela esquerda.

Qual a moral de tudo aquilo que falamos nesse texto? Enquanto o PT tem a máquina estatal na mão para poder montar uma base política sólida no Congresso e uma aliança com o mercado, ele não vai precisar de esquerdistas para garantir a governabilidade. Qualquer turbulência com o mercado é mediada por seu ministro da Fazenda dando uma declaração suave aos ouvidos do mercado sinalizando alguma medida importante (que, no fim das contas, piora a vida do pobre). Do outro lado, garante a hegemonia do discurso de esquerda com uma máquina poderosa de comunicação que passa a trabalhar 24h por dia para justificar os recuos do governo. Em questão de semanas, passa a ser coisa de “esquerda” defender privatizações, austeridade fiscal constante, corte de gastos sociais, não aumento do salário mínimo e outras coisas mais. Quem criticar isso tudo perde espaço e relevância no debate público, virando um pária.

A partir de tudo o que dissemos anteriormente, é possível achar possível a disputa dos rumos econômicos do governo estando em uma posição subordinada? Da mesma forma que o fã desolado pelo fim dos Beatles ainda nutria ilusões de que aquilo não poderia ser real, será que não é o caso dos nossos militantes de esquerda refletirem um pouco sobre o que andam sonhando e, especialmente, sobre as expectativas que nutrem em relação ao terceiro mandato de Lula?