Um programa não-identitário

Um programa nao identitario
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O identitarismo brasileiro não é uma filosofia, uma teoria ou uma plataforma política. É uma corrente de opinião. Formou-se da justaposição de ideias simpáticas à defesa das minorias e foi refinada pelo pessimismo frankfurtiano, pelo desconstrucionismo e pós-estuturalismo franceses e pelo engajamento dos movimentos sociais norte-americanos. Tornou-se a principal pauta dos debates e produtos acadêmicos, no interior dos quais teve o seu vocabulário básico elaborado por uma elite falante e ambiciosa – uma elite que pensa que não é elite.

Pouco a pouco, o identitarismo penetrou no jornalismo profissional e nas obras e intervenções de artistas e escritores, que ajudaram a traduzi-lo para a grande audiência. Fez-se manifestação hegemônica de pensamento, sobretudo pela autoridade moral que ostenta com pretensão de monopólio; razão pela qual, desde sua ascensão, tem sido difícil falar sobre os temas tangidos pelo identitarismo sem ser confundido, absorvido e, às vezes, moído, por ele.

A performance identiária é autocorrosiva. Em cada eixo temático de que se ocupam os identitários, forma-se uma militância reprodutora de discursos passionais contra as ideias a que se atribui histórico de desfavorecer os beneficiários do respectivo eixo. No exercício da coisa, todavia, o caráter passional do discurso serve mais para despertar uma hipersensibilidade nos envolvidos, que não apenas reagem às ideias em sua forma pura, mas também se equipam para hostilizar quase toda manifestação, seja ela ou não contra-hegemônica, fora e dentro dos círculos identitários. Não é infrequente que falas em defesa de causas identitárias, mas “sem lugar”, venham a ser maliciosamente associadas ao ideário sob o ataque dos identitários. E assim, militantes contumazes na luta pela causa dos oprimidos tornam-se, da noite para o dia, sócios do paradigma opressor que combateram a vida inteira. A rotina de desavenças, desaforos, fofocas e cancelamentos obsessivamente instaurada pelos engajados em representatividade que exemplifica esse quadro, todos a conhecemos, vez que a acompanhamos, diariamente, nas redes sociais.

Dada essa tendência à implosão que lhe é ínsita, o identitarismo opera pela compulsão de dissidências e rompimentos internos. Tais eventos não lhe são meramente incidentais, senão desdobramentos eloquentes do que poderíamos chamar de panconflitivismo intrínseco: a propensão superpor o conflito a todos os processos sociais. Nesse contexto, acontece de ativistas entusiasmados das pautas identitárias, uma vez defenestrados pela diligente máquina de cancelamentos, passarem a se ver como “ex-identitários” – e até “nunca-identitários”. Ledo autoengano. Se alguém conserva a visão de mundo tribal, que restringe o conjunto dos bons ao clã dos seus; se ostenta o temperamento intelectual binário, que funciona dividindo a humanidade em perversos poderosos e puros desamparados, e os cacoetes moralistas, com que substitui-se a tarefa de compreender e orientar à de condenar pessoas, eventos e coisas, ele permanece conectado ao identitarismo, ainda que expulso de sua festa. A mera dissidência confirma a corrente, não a nega.

Pensando nesses excluídos, me ocorreu discorrer sobre os não-identitários, aqueles que, apoiando a agenda de empoderamento das minorias, são visceralmente opostos a tudo o mais que caracteriza o identitarismo. Procederei propondo um programa intelectual e moral não-identitário breve nas palavras, mas demorado na mensagem, contrastando suas premissas às da corrente de opinião hegemônica em nosso país. Seus marcadores são: (1) o psicológico e moral, que entretece questões sobre autoimagem, relações interpessoais e a conduta da vida; (2) o político, que articula questões relativas ao poder, às instituições, à sociedade e ao Estado; (3) e o registro de uma, por assim dizer, antropologia universal, que trata de questões sobre a humanidade. Os dois primeiros são os mais importantes e esclarecedores.

A função desse programa não é anular a agenda que quer reconhecer e empoderar as minorias políticas, é elevar a um outro patamar os fundamentos do debate público corroídos pelo identitarismo. É preciso varrer os comportamentos viciados que enodoam a vida nacional, afirmando serem eles incompatíveis com a imagem que os brasileiros, enquanto povo, projetam para si mesmos. E isso não é o que o identitarismo, comprometido apenas com a ampliação do vocabulário de denúncia desses comportamentos, realiza.

No plano psicológico e moral, a tese de um programa não-identitário é: o ser humano é um ser de ambiguidades. Cada indivíduo humano é uma singularidade perturbada, uma mônada psíquica atormentada por conflitos desde sua origem. Isso explica a compatibilidade de atos solidários e sádicos em uma mesma personalidade em uma mesma fase da vida. A tese é longeva e vastamente explorada por romancistas e poetas, especialmente nos séculos XIX e XX, além de pela psicanálise. Os identitários, porém, não a compreendem, não a aceitam, ou não a levam a sério. Por ultrapolitizar a vida, eles tendem a considerar a totalidade dos indivíduos enquanto partidários confessos ou latentes de um dos lados na oposição entre os opressores que dominam e os oprimidos que resistem. E isso atinge os recônditos da psique, sendo fácil interpretar o partido de cada um, mas impossível compreender o fato de que todas as pessoas estão nos dois partidos ao mesmo tempo.

As ambiguidades são puídas no altar do simplismo em que a subjetividade é sempre transparente em suas intenções. Para um identitário, as intenções revelam instantaneamente se uma pessoa é colaboradora da resistência ou sócia do mal. Em parte, isso pode ser constatado na revolta dos identitários contra os chamados “pobres de direita”, mesmo quando quem os denuncia são milionários de esquerda.

Por outro lado, é difícil para um identitário admitir que a vida psíquica é incorrigivelmente processual – fator indispensável da tese da ambiguidade –, pois o raciocínio binário não prospera com gradações. Ademais, a hipersensibilidade política pelos oprimidos só se adensa no agravamento da situação sob a qual eles são descritos. Assim, na performance identitária, sempre há um oprimido servindo a um opressor e nenhum opressor se converte à causa daqueles que ele oprime

A segunda tese é política: o mundo moderno não evoluiu a ponto de poder abandonar o paradigma dos Estados nacionais. Isso significa que a política precisa ser pensada a partir das comunidades nacionais em nome das quais os Estados têm sua razão de ser e para as quais eles atuam. A função básica do Estado é proteger e potencializar a sociedade nacional, eliminar, quando possível, e mitigar, quando necessário, os fatores de agonia e padecimento que a abatem, como a pobreza, a fome, a violência, o desemprego, o despotismo, a corrupção, a discriminação etc. O enfrentamento a esses flagelos requer clareza quanto ao imperativo da unidade nacional desprezado pelo identitarismo.

Os identitários pensam que o agente da política são os grupos constituídos por identidades compartilhadas. Mas esse compartilhamento nunca abrange a comunidade nacional, porque isso implicaria uma coalizão com aqueles denunciados como os dominadores na história do país. Assim, optam os identitários por abdicar do fato de que a política nacional e internacional é tocada primeiramente pelos Estados – teatros do ordenamento das sociedades e representantes de suas comunidades nacionais em nível global –, agarrando-se a abstrações sobre uma irrealizável solidariedade entre grupos, eventualmente transnacionais, de indivíduos com sofrimentos comuns, os quais são invariavelmente impingidos pelo próprio Estado.

A terceira tese se refere ao domínio antropológico. Um não-identitário admite asserções sobre a condição humana geral. Ele não crê que tudo o que se tenha a dizer sobre o humano restrinja-se a culturas, sob a sombra do paradigma relativista irrefletidamente abraçado. A pretensão à universalidade é parte da atuação não-identitária nos planos antropológico e epistemológico, que revelam sempre haver dados de nossa situação no mundo que nos conectam enquanto humanidade, dados que respaldam premissas como a dos direitos humanos. Os identitários entram em conflito com isso, pois entendem que universalidade é aspecto do discurso eurocêntrico, colonizador e imperialista, que se desloca às periferias unicamente para lhes impor sofrimento. Mas precisam recorrer à própria ideia de universalidade dos direitos humanos para reivindicar, corretamente, aliás, a proteção de grupos vulneráveis.

Uma quarta tese deve ser mencionada. Trata-se de uma metatese, que atravessa as anteriores: é possível e é preciso defender um programa positivo de intervenção na realidade material, que seja claro e objetivo. Na assunção dessa tese, fica claro o caráter conservador do identitarismo, que não se orienta por programas e que pouco se interessa pela realidade material, preferindo se dedicar a signos, falas e discursos. É uma corrente de opinião complacente com o regime institucional que determina os aspectos mais estruturantes da coexistência, muito embora seu desempenho em vocalizar, denunciar e cancelar, com o qual escamoteia compromissos mudancistas, camufle esse conservadorismo incubado.

É curioso como os identitários profissionais cobiçam cargos públicos e empresariais e almejam a participação em staffs do status quo, sob o álibi aparentemente nobre de buscar a benfazeja e suficiente “representatividade”. Como a compensar, trombeteiam indignação contra as injustiças em que naufragam os grupos que constituem o objeto de seu discurso. Para eles, tudo é tudo uma questão de se ter um microfone em mãos, dar voz aos silenciados. Nada tem a ver com redesenhar a institucionalidade que fabrica a injustiça. A expertise identitária termina por ser a de manipular jogos de linguagem, com vistas sobretudo a introduzir neologismos e truques de expressão e comunicação, esperando que isso, por si só, engendre inclusão social. Contudo, para que a inclusão fosse possível, os identitários deveriam assumir a tarefa arriscada de mudar as instituições, em vez de se jactarem por ocupá-las.

Em suma, o identitarismo é a corrente de opinião predominante no debate público nacional, fato. Tipifica-o a ocorrência combinada de conservadorismo institucional, desorientação programática e compensação oral, em que um clima de faroeste acusatório toma o lugar da intervenção transformadora. Lamentavelmente, os dissidentes dos grupos identitários tendem a ser a confirmação, não uma fuga do identitarismo. Mas não é difícil ver que há um programa intelectual e moral de não-identitários que afirma os marcadores faltantes no identitarismo e que representa uma alternativa viável e desejável ao que ele promete sem poder cumprir. Se as teses acima são insuficientes para escrever esse programa, que discutamos quais outras podem ser agregadas a ele; mas não o ignoremos mais.

Enquanto não reconhecermos que todo ser humano conserva em si contradições que são parte de nossa ambiguidade elementar e que não podem ser compreendidas e administradas pelo discurso moralista e perverso, o qual, de forma sádica e oportunista, destina-se unicamente a apenar pessoas, em vez de instruí-las; enquanto não reconhecermos que não há política que abrace as minorias sem que se as tenha como minorias da comunidade nacional brasileira, em vez de identidades purificadas a se proteger do mal encarnado no Estado; enquanto não lembrarmos que certos temas e encaminhamentos devem ser considerados sob o prisma universal da condição humana, e não o do empilhamento de culturas distintas instaladas, em sua distinção, por uma epistemologia relativista; enquanto não entendermos que nossa atuação fecunda é reflexo de um programa de intervenção real e transformadora do mundo, e não uma mera coreografia em que se substitui a morfologia das palavras e se institui ardis comunicativos em prol de uma inclusão que nunca se consuma, permaneceremos vergados sob a hegemonia de um discurso embusteiro, ocioso e pseudomoralista. Precisamos agir contra isso.