Agora que o término das eleições de 2022 expôs o óbvio: que o Brasil está visceralmente dividido, de todos os cantos, ouve-se a frase: “a tarefa do novo governo é unificar o país”. Para além do resultado das urnas, na base social, a impressão de que o país está rachado ao meio não é mais presente que a que sugere estar ele em estilhaços, furibundo demais para a paz, entediado demais para o diálogo e sensível apenas para o que desencadeie sua cólera. Como unificar o país num contexto como esse? Proponho uma resposta a essa questão, elencando três objetivos de longo prazo associados a possíveis passos iniciais.
Em nossa história recente, as duas mensagens mais repercutidas sobre os problemas nacionais são as que identificam na moralidade ou nas estruturas a fonte de nossos tormentos. Os moralistas enfatizam a corrupção e a insegurança como consequências da imoralidade que historicamente nos atravessa e recomendam punição severa e, se possível, espetacularizada, quer a assaltantes de ônibus, quer a parlamentares venais. Os estruturalistas enfatizam as desigualdades que as estruturas sociais nos fazem reproduzir e apostam na correção ou na substituição total das plataformas sobre as quais o país foi construído. O erro dos moralistas é não enxergar que problemas sociais não são para ser abordados pelo prisma das vontades individuais, mas dos arranjos e jogos subjacentes. O erro dos estruturalistas é acreditar que basta denunciar as estruturas e os agentes que as confirmam para que elas – sabe-se lá, como! – sejam refeitas.
Embora a questão nacional não tenha surgido hoje, interpretar os problemas nacionais pela perspectiva que os associa à ausência de unidade nacional nunca foi predominante nas classes pensantes e falantes, não ao menos desde a redemocratização. E o problema está intimamente ligado ao êxito das mensagens supramencionadas. Falam de combate à corrupção e à desigualdade como se fossem valores absolutos, quando são subsidiários ao valor maior que é a consolidação de um pacto nacional. É só da perspectiva de um nacional refeito, ou ao menos em processo, que se pode dizer que crimes de rua, corrupção e estruturas opressoras não são compatíveis com o que o Brasil espera de si mesmo. É em busca dessa imagem de país, que hierarquize valores e objetivos de modo a dar dignidade, decência, florescimento e grandeza às pessoas, no comum do cotidiano, que convém pensar qual unificação é possível e desejável em um contexto de polarizações e estilhaços.
São três agendas complementares. A agenda simbólica, a institucional e a material. A agenda simbólica é sobre a recuperação dos símbolos, dos vocabulários e das práticas atravessados pelo elemento nacional. É preciso não apenas desgarrar coisas como a bandeira, o hino e as armas, do bolsonarismo, como também impedir que elas possam ser monopolizadas artificialmente por quaisquer outros políticos e partidos. É preciso, portanto, destribalizar os símbolos nacionais e protegê-los de açambarcadores oportunistas.
A maior dificuldade para o sucesso dessa agenda não tem residido no poder persuasivo da direita de trazer para si os símbolos que são de todos, mas na capacidade dos autoproclamados esquerdistas de empurrar para os outros a carapuça Brasil. No momento em que, aderindo à gramática estruturalista, interpreta-se o país como a divisão entre os beneficiados do poder e engrinaldados com os símbolos nacionais, de um lado, e minorias heroicamente resistentes, de outro, é o país quem perde. Perde porque perde o direito de ser contraditório e experimental, como qualquer país o é. E perde porque não obtém nenhum substituto para o seu repertório de símbolos nacionais, no momento em que os penduraram como medalhas no pescoço de opressores orgulhosos. A agenda de unificação nacional, pelo lado simbólico, é a agenda de reconstrução de nossa relação com nossos símbolos, com os que já existem, com os que serão criados e com os que estão aí, sem que saibamos que nos servem de amálgama. É uma agenda de soerguimento consciente da cultura e de suas potências.
A agenda institucional é mais objetiva, embora não seja por isso mais fácil. É necessário propor e incentivar instituições novas, ou inovações nas vigentes, para assegurar a parceria entre entes federativos, de modo a fazê-los lidar com questões e problemas nacionais e regionais localmente. A sabedoria popular diz que nada une tanto pessoas diferentes quanto a percepção de terem um inimigo comum. A ideia deve ser aproveitar a diversidade dos entes e de suas administrações para, sem feri-las, convergi-los em projetos afins contra suas adversidades contemporâneas. Dando prioridade a instituições interestaduais, teríamos, como com os consórcios, ocasiões para o enfrentamento dos entraves nacionais com recursos e dispositivos estaduais diversos. A diversidade, portanto, viria em socorro da unificação.
Para que a unificação do país comece a se dar, não é preciso que Brasília o carregue nas costas. Ao contrário, quanto menos se depende de um centro para se mover pela unificação, tanto mais efetiva ela será. A promoção de instituições que facilitem o trabalho cooperativo entre estados que são regionalmente distantes e politicamente contrários, por exemplo, seria um ponto alto nisso.
Considere um consórcio interestadual que envolvesse uma intervenção aliada de estados como Santa Catarina e Ceará em duas frentes de trabalho: a da segurança pública, em especial pela prevenção de homicídios (Santa Catarina tem dado bom exemplo), e a da educação pública, em especial pelo aprimoramento das práticas de ensino nos anos finais do Fundamental (Ceará já se consagra como exitoso nesse campo), com poucos dispositivos de regulamentação e com verba quase exclusivamente tirada do orçamento disponível do respectivo estado, seria um passo factível e promissor. Não caberia tanto ao governo central fornecer dinheiro, mas tudo o que for necessário para que a parceria institucionalizada ocorra – em último caso, porém, e sob as devidas justificativas, apoiar também com capital. Ao promover um pacote de instituições e instrumentos institucionais nessa direção, o novo governo estaria contribuindo seguramente para a unificação nacional.
Uma terceira agenda é material. Ela é predominantemente econômica e tem dois apelos: o da infraestrutura nacional e o do aprimoramento das parcerias público-privadas. O primeiro apelo poderia ter o slogan “mais Mauá, menos Washington Luís”. Há cem anos e um pouco mais, governar poderia não ser apenas uma questão de criar estradas, mas também de instalar ferrovias. Não o foi. É preciso apostar agora na infraestrutura do país, tanto para fins de abastecimento quanto para fins turísticos. A democratização do setor de transportes requer um investimento público pesado em portos, aeroportos, estradas e ferrovias. Diversificar as condições de transporte já é mérito suficiente para um amplo empreendimento de criação de estradas de ferro, mas o efeito também simbólico de se viabilizar uma conexão profusa no centro do país é de bastante valor.
O segundo apelo é voltado para as PPPs, mas destaco um exemplo menos vulgar sobre o assunto. Não basta apostar nos casos em que as empresas vencem licitações e gozam, isoladamente enquanto empresa, da cooperação com o Estado, mas também pulverizar as parcerias com empresas pequenas que competem entre si enquanto recebem a colaboração do Estado para competirem empresas maiores.
Considere uma situação que já é realidade no país. Grandes agricultores que usufruem de sofisticados mecanismos de irrigação para suas plantações oferecem no mercado o mesmo produto – digamos, tomate ou batata – que pequenos produtores desequipados, os quais competem uns contra os outros por uma pequena porção às margens de um só açude. A competição circunvizinha somada à competição com o graúdo liquida de vez o empreendimento. É necessário, então, que um regime colaborativo altere a lógica de competições. E é aí que entra o Estado: oferecer material técnico, maquinaria e, se preciso, know how, para que os pequenos se façam parceiros contra o grande, sem deixar de rivalizarem entre si. Máquinas para bombear e borrifar a água podem ser disponibilizadas como propriedade estatal e comunitária. O que cabe à União é, também aqui, muito pouco, mantendo-se a premissa de que o êxito dos projetos decorre da iniciativa de quem os assume, não da ajuda externa de quem os incentiva.
O Brasil está dividido e unificá-lo está na ordem do dia. Que tenhamos a clareza de que não se unifica um país como quem assina acordos e baixa decretos. E não sucumbamos novamente à sedução dos discursos moralista e estruturalista que substituem a tarefa de construir pelas de punir e de denunciar. O que cabe ao próximo presidente é a tenacidade em perseguir o objetivo unificador e a responsabilidade de dar imediatamente os primeiros passos, certificando-se, porém, de que o terreno é sólido e que os brasileiros se movem a seu lado nesse percurso. É uma tarefa grande demais para uma pessoa e talvez grande demais para toda uma geração. Mas que isso não seja álibi para uma desistência prematura.