Reflexões sobre as comparações entre Lula, Getúlio e JK

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Há duas semanas, o escritor Fernando Morais, autor do recém-publicado “Lula, volume 1”, afirmou em entrevistai para o portal UOL que “A história verá que Lula foi o maior político brasileiro até hoje. Sou um defensor da obra do Getúlio Vargas, mas acho que Lula vai estar na história um degrau acima do que esteve Getúlio”.

Em rigor, Morais não revelou quais critérios adotou para chegar em tal conclusão. Talvez estejam no seu livro, que ainda não li. Mas para começo de conversa, a comparação parece ignorar as enormes diferenças de contextos históricos.

Logrando se fazer chefe civil da Revolução de 1930, um movimento majoritariamente militar, Getúlio liderou um governo que se dizia “provisório”, mas no qual exerceu poderes excepcionais consideráveis. Em seguida, a partir de julho de 1934, governou como presidente da República eleito indiretamente pela Assembleia Nacional Constituinte, regulado – ao menos do ponto de vista formal – pelas disposições da Constituição proclamada naquele ano. Assim foi até o golpe de 10 de novembro de 1937 quando instituiu o Estado Novo do qual foi líder inconteste, com poderes ditatoriais, até a sua remoção pelos principais líderes militares, não mais seus aliados, em outubro de 1945. Por fim, eleito pelo voto popular sob a égide da Constituição de 1946, retornou à Presidência da República em 1951 governando no contexto das instituições liberais representativas, até a crise que levou ao seu suicídio em agosto de 1954.

Portanto, ao todo, Getúlio governou o Brasil por cerca de 18 anos e sob quatro arranjos institucionais consideravelmente distintos. Lula, como sabemos, o fez por apenas oito e sob um único, o da Constituição de 1988, também de caracteres predominantemente liberais representativos. Logo, de saída, percebe-se haver muito pouco em comum entre as suas trajetórias políticas e os contextos históricos nos quais governaram o Brasil. A comparação feita por Morais soa absolutamente extemporânea.

Se partirmos, porém, para uma análise das realizações de cada um, fica claro que, no mínimo, Morais desconhece a obra de Getúlio que afirma defender. Da forma mais sucinta possível, no plano das realizações institucionais, Getúlio foi o responsável pela criação: do Ministério do Trabalho, Comércio e Indústria (novembro de 1930); da Carteira de Trabalho (1932); do Departamento Nacional do Trabalho e dos institutos do Açúcar e do Álcool (1933); dos códigos de Minas e Águas (1934); do Conselho Federal do Comércio Exterior (1934); da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil (1937); do Conselho Técnico de Economia e Finanças (1937); do Conselho Nacional do Petróleo (1938); do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP, 1938); do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1938); do salário-mínimo (1938); do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI, 1942); da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, 1943); do Serviço Social da Indústria (SESI, 1943); do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (1944); da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC, 1945), embrião do banco central brasileiro; da CAPES (1951); do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, 1952; depois, BNDES); do Banco do Nordeste do Brasil (1952); da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (1952); e da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (CACEX, 1953), entre muitos outros órgãos já extintos ou de menor importância.

Já no plano da infraestrutura produtiva, coube a Getúlio criar a Companhia Siderúrgia Nacional (CSN, 1941); a Companhia Vale do Rio Doce (1942); a Petrobrás (1953); o Fundo Nacional de Eletrificação (1954) e o projeto da Eletrobras, aprovado apenas em 1962. Ou seja, as empresas estatais responsáveis pelos materiais básicos para a industrialização nacional: aço, minérios, petróleo, combustíveis e energia. Destaque-se, além disso, ações decisivas na busca dessa industrialização como a moratória da dívida externa (1937); diversas leis, ao longo dos seus governos, implantando controles de remessas de lucros, royalties e dividendos; e políticas cambiais como a Instrução 70 da SUMOC (1953) e a lei que criou a CACEX, planejando o comércio exterior brasileiro

Em suma, coube a Getúlio criar as estruturas fundamentais que serviram – e continuam servindo, o que ainda subsiste delas – de base para a construção de um Brasil moderno e soberano. O que Lula deixou, nesse sentido, que possa se comparar a essa obra? Cabe a Morais, que reivindica defendê-la, indicar.

Com efeito, uma comparação mais pertinente talvez possa ser feita entre Lula e Juscelino Kubitschek. Nesse caso, me refiro especificamente ao seu estilo de governar. JK e Lula se mostraram, na Presidência da República, dois operadores políticos de grande habilidade, plenamente versados na “gramática” da política brasileira. Guardadas as diferenças significativas entre suas origens sociais e ideários, ambos mediaram com sucesso notável grandes arranjos de conciliação entre oligarquias regionais tradicionais, espalhadas pelo vasto território brasileiro; empresariados dos setores na vanguarda da acumulação capitalista nas suas respectivas épocas; e classes trabalhadoras, nas quais Lula – ao contrário de JK, egresso do getulismo “conservador” – tem suas raízes biográficas e políticas.

Se passarmos para o plano das realizações estruturais, todavia, as diferenças entre eles também não autorizam comparações. A tônica do governo JK foi a promoção do desenvolvimento, via industrialização, como solução de geração e distribuição de renda e criação de empregos – em suma, de conciliação de classes. Tratou-se de um governo que, partindo das realizações deixadas por Getúlio, promoveu profundas transformações na infraestrutura produtiva brasileira a partir da execução do Plano de Metas, da implantação da indústria automobilística e da construção de Brasília. Para isso, também tomou medidas ousadas no plano internacional como a ruptura com o Fundo Monetário Internacional, quando as suas exigências financeiras se mostraram incompatíveis com a realização dos seus planos desenvolvimentistas.

Assim, entre 1956 e 1961, JK conseguiu elevar a geração de energia elétrica no Brasil em 50%; a extração de petróleo em mais de 10 vezes e o refino em 150%; multiplicou em quase oito vezes a malha rodoviária federal pavimentada; quase dobrou a produção de aço; alcançou crescimento de 80% na produção industrial global com 125% na indústria mecânica, 380% na de materiais elétricos e comunicações e 600% na de veículos e materiais de transporte. Em apenas cinco anos, obteve um aumento de 60% no produto nacional e de 25% na renda per capita, numa época de acelerado crescimento demográfico. Sem dúvidas, ocorreram problemas como a inflação, que alcançou 39% em 1959 e 30% em 1960; e a entrada em grande escala do capital estrangeiro, ensejando crescente desnacionalização do parque produtivo brasileiro. Em todo caso, inegavelmente, os resultados do governo JK foram impressionantes, muito embora as bases iniciais fossem absolutamente modestas.

No caso do governo Lula, porém, o “desenvolvimento” alcançado foi, no mínimo, controverso. Se de um lado os interesses das finanças foram irrestritamente preservados, rendendo à Bovespa uma valorização inédita dos seus ativos e recordes de lucratividade aos grandes bancos, de outro, em vez da industrialização acelerada dos tempos de JK, tivemos o exato oposto: perda em grande escala de indústrias, apesar da recuperação (que se revelou circunstancial) de algumas, como a naval; e avançada reprimarização da produção e da pauta exportadora brasileira.

É fato reconhecido que Lula promoveu a criação de milhões de empregos formais, permitindo a também milhões de brasileiros, pela primeira vez nas suas vidas, desfrutar de rendimentos previsíveis e do que ainda restava dos direitos trabalhistas (instituídos, por sinal, por Getúlio). Mas no contexto geral da desindustrialização fomentada pela orientação neoliberal da administração fazendária e monetária do seu governo, esses empregos se concentraram predominantemente nos setores de serviços de baixa complexidade, exigindo baixa qualificação e oferecendo baixa remuneração. Sem dúvidas, avanços significativos em indicadores sociais como fome e miséria representaram conquistas importantes nos oito anos sob Lula e um alívio, ainda que muito modesto, na gigantesca dívida social brasileira. Porém, ao mesmo tempo, a destruição de capacidade produtiva eliminou as bases necessárias para dar sustentação futura, continuidade ao processo. Dez anos depois, passados Temer e Bolsonaro, aqueles ganhos já haviam sido mais do que revertidos.

Nesse sentido, portanto, parece mais apropriado falar em “crescimento”, não em desenvolvimento, como a “solução” de conciliação social do governo Lula. E não há aqui qualquer contradição, pois o primeiro não implica necessariamente no segundo. Em rigor, esse foi o caso: durante o governo Lula, tivemos expansões do PIB e da renda per capita acima da média dos (desastrosos) governos que o antecederam; mas elas foram, em boa medida, infladas por um boom de commodities e por um câmbio supervalorizado que deu a todos nós, detentores de ativos denominados em reais, a sensação de riqueza através da ampliação do poder de compra da nossa moeda no exterior. No livro “Complexidade Econômica”, Paulo Gala debate a perda de complexidade produtiva e sofisticação tecnológica do Brasil no período. Segundo o Observatório de Complexidade Econômicaii, o Brasil recuou da 32a para a 36a posição no ranking internacional entre 2003 e 2010. Transcendendo o governo Lula, caímos da 25a em 1998 para a 49a posição em 2019, 21 anos nos quais fomos governados, em sua maioria, por governos petistas.

Portanto, o Brasil de Lula cresceu – 32,6 % em oito anos –, mas em termos relativos, aprofundou o seu subdesenvolvimento. Por trás daquela sensação artificial de afluência, o fato concreto era o oposto: estávamos perdendo, para o resto do mundo, boa parte das bases da nossa riqueza. Pode-se considerar isso algum tipo de “êxito”, quiçá comparável aos avanços obtidos por Getúlio ou JK?
Lula pode e deve ser reconhecido como o presidente mais devotado e favorável às classes populares – o que dada a perversão das nossas bases sociais, já é um mérito histórico considerável – que o Brasil teve desde a década de 1980, quando a nossa construção nacional começou a ser implacavelmente combatida. Porém, durante o seu governo e depois dele, não fez nenhuma menção em sequer denunciar o neoliberalismo que nos mantém cativos, imobilizados e decadentes há três décadas. Ao contrário, com ele tentou conciliar a sua agenda timidamente desenvolvimentista.

Evidentemente, sem alcançar sucesso que se mostrasse perene, sem deixar para o Brasil qualquer legado estrutural significativo. Como comparar isso com as inúmeras realizações de Getúlio e JK que ficaram para a nossa história? Como comparar com as suas posturas corajosas em tempos de plena Guerra Fria, quando tomaram medidas que desafiaram o imperialismo estadunidense em defesa dos seus planos do governo nacional-desenvolvimentistas?

Em suma, com base em dados objetivos, não vejo elementos que permitam corroborar as reivindicações de Fernando Morais. É notório, aliás, que sem as muitas realizações de Getúlio, que ele parece desconhecer, o presidente Lula jamais teria existido. Resta então a curiosidade: quais serão as histórias – além das narradas nas entrevistas de Morais – nas quais o último será reconhecido como o “maior político brasileiro” e estará “um grau acima” do primeiro?