Nos últimos meses, multiplicaram-se nas ruas e estradas brasileiras caminhões adornados com faixas nas quais se lê, ao lado de um coração verde, o lema “Combustível sem Imposto”. Na internet, uma busca revelou se tratar de um “movimento a partidário [sic] que visa reduzir o tamanho do Estado e o imposto através do fim da estabilidade do funcionalismo público”. Na sua página, entre outras informações, o movimento reivindica ser composto por um “grupo de cidadãos comuns”; liderado por um suposto “empreendedor que depois de décadas de trabalho honesto em sua empresa viu que o Brasil é um jogo de cartas marcadas onde os que produzem só perdem e os parasitas sempre vencem”; e lutar “pelo povo contra o governo”.
Com efeito, não se trata de iniciativa isolada, mas de parte de uma campanha de “denúncia” cada vez mais intensa contra a cobrança de impostos – nesse caso específico, sobre os combustíveis. Já é tradicional, em muitas regiões do país, a realização anual do “Dia Livre de Impostos”, no qual donos de postos vendem seus produtos pelos preços que, supostamente, praticariam na ausência daqueles. O mais recente desses episódios, ocorrido no último dia 2, recebeu generosa cobertura da mídia. Segundo reportagem publicada pelo portal G1, do Grupo Globo, “cerca de 43%” do preço dos combustíveis para os consumidores finais se deve aos impostos: 31% ao ICMS, 13% aos impostos federais. Já segundo a Folha de São Paulo, alguns postos chegaram a vender gasolina pela generosa “bagatela” de R$ 4,85 por litro. Finalmente, para o InfoMoney, se os impostos fossem inteiramente eliminados, a gasolina no Brasil poderia ficar, em média, R$ 2,44 mais barata; e o diesel, R$ 0,82, muito embora ressaltando que “a medida valeria só até o fim do ano, e novos reajustes de preços pela estatal poderiam reduzir o impacto”; e que, mesmo assim, quedas para o consumidor final “não são garantidas”, pois exigiriam o repasse integral da redução dos tributos.
Por sua vez, ontem, dia 14 de junho, foi aprovado no Senado Federal, por 65 votos contra 12, projeto de lei de iniciativa do Governo Federal que estabelece em 17% o teto máximo do ICMS cobrado pelos governos estaduais sobre combustíveis, energia elétrica, serviços de telecomunicações e de transportes públicos consumidos e utilizados nos seus territórios. Vale lembrar que o ICMS, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, é a principal fonte de arrecadação dos governos estaduais, que são obrigados a repassar 25% dele aos municípios. Além disso, o texto aprovado também reduz a zero as alíquotas de Cide-Combustíveis e PIS/Cofins sobre a gasolina até 31 de dezembro de 2022, além do álcool hidratado e do álcool anidro adicionado à gasolina (os impostos federais sobre o diesel e o gás de cozinha já foram zerados recentemente).
De saída, fica absolutamente explícito o propósito de reduzir, até as eleições, a influência dos aumentos seguidos dos preços dos combustíveis, que estão embutidos nos preços de todos os transportes de insumos, mercadorias e pessoas, na disseminação da inflação no Brasil, a “maior em 20 anos”. Procura-se apenas promover algum tipo de “alívio temporário” no bolso dos eleitores com vistas a melhorar as – até aqui, complicadas – perspectivas de reeleição de Bolsonaro, o presidente impotente para exercer as suas funções, entre outras, comandar a Petrobras. Até aqui, não houve, da sua parte, qualquer preocupação com a extorsão praticada contra os brasileiros, usando os indispensáveis combustíveis como meio. Seus objetivos são inteiramente eleitorais: fraudar os eleitores para, caso reeleito, restabelecer a cobrança de todos os impostos.
Além disso, porém, a iniciativa também indica que os neoliberais que desgovernam o Brasil em nome de Bolsonaro encontraram os “culpados” pelo descalabro. Partiram, então, para lançar sobre os governos estaduais – que, ao contrário do Federal, não possuem qualquer influência ou poder de comando sobre a administração da Petrobras – o fardo da solução dos conflitos distributivos brutais que vêm produzindo com a política que praticam na empresa. Ou seja, trata-se do Governo Federal impondo aos estaduais uma redução na sua arrecadação como “compensação” por uma política que ele próprio está executando.
Paralelamente, praticamente não encontramos manifestações, na elite dirigente ou na mídia, de censura aos lucros estratosféricos que vem sendo obtidos pela Petrobras, “até seis vezes maior do que estrangeiras” do mesmo setor. Tampouco aos pagamentos, igualmente estratosféricos, de dividendos aos seus acionistas no Brasil e no exterior: em 2021, R$ 101,4 bilhões, mais que o dobro dos 47 bilhões investidos; e R$ 85,8 bilhões apenas entre maio e julho de 2022. Volumes colossais de recursos extraídos de um país arruinado por uma crise que talvez seja a mais profunda e duradoura da sua história, através de uma política velada de privatização que dolarizou o abastecimento de combustíveis no Brasil com o único objetivo de maximizar fluxos de caixa para remunerar – sempre tendo em vista a cotação do dólar – acionistas aqui e no exterior. Da mesma forma, nada se fala da administração de refinarias como a Landulfo Alves, na Bahia – a primeira a entrar em operação no Brasil, em setembro de 1950 –, entregue no final de 2021 para o grupo privado Mubadala, dos Emirados Árabes, e já responsável pelos combustíveis mais caros do país; ou da BR Distribuidora, privatizada em 2019 com efeitos análogos.
Por sua vez, inteiramente apática, a sociedade brasileira aceita, sem reação organizada, a dupla extorsão que lhe é imposta. Sem qualquer garantia de que pagará um centavo a menos pelos combustíveis ou pelos produtos que adquire, de quebra será penalizada pela provável piora dos serviços públicos, já deteriorados, oferecidos por governos estaduais com arrecadação reduzida. Dinheiro arrancado dos bolsos brasileiros e transferido para uma pequena elite de financistas, tendo a Petrobras como intermediária. Eliminem-se os impostos, reduzam-se as políticas públicas: quanto aos lucros privados, é a “lei do mercado”, com a qual todos parecem plenamente resignados.
Sem dúvidas, trata-se de mais um passo adiante – por iniciativa de um governo que se afirma “nacionalista” – da campanha implacável dos neoliberais pela “criminalização” do Estado, dos governos e da política em geral no Brasil. É uma campanha expressa, por exemplo, na ideia de que “imposto é roubo”, conforme defende uma tal “Universidade Libertária”; ou ainda, “roubo legalizado”, como afirma o Mises Brasil. De vitória em vitória, prosseguem deixando no rastro da sua ideologia um país em escombros.