Está tudo caro! O que o feminismo tem a ver com isso?

Está tudo caro! O que o feminismo tem a ver com isso?
Foto: Pilar Olivares/Reuters
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Por Laiz Fraga Dantas – Os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2021 – divulgada no dia dez de junho, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – demonstra que 106 milhões de brasileiros sobreviviam com R$ 13,83 por dia em 2021. Os rendimentos médios apresentaram queda de 8,7% no primeiro trimestre de 2022, em comparação com o mesmo trimestre de 2021, sendo este o quarto trimestre consecutivo de queda na renda. A inflação elevada, a redução do auxílio emergencial e um mercado de trabalho que oferece vagas de empregos cada vez mais precários, marcam um período crítico para a economia brasileira. Sentimos os efeitos destes dados em nosso cotidiano, cada vez que entramos no supermercado, a cada tentativa de equilibrar as contas em casa. Os impactos na economia doméstica afetam, principalmente, às mulheres.

Segundo dados do IBGE, metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Número que vem crescendo a cada ano, configurando uma mudança gradativa na organização das famílias brasileiras. Há algum tempo atrás, o homem era, hegemonicamente, o único responsável pelo sustento da casa. Em paralelo a isto, convivemos hoje com a diluição da tradicional configuração das famílias, maior aceitação social do divórcio, a formação de núcleos familiares homoafetivos e de famílias de constituição distintas. Porém, essas mudanças – certamente positivas, em muitos aspectos – não têm somente haver com o avanço do feminismo, das lutas LGBTQI+, e a consequente conquista de novos espaços. Elas têm relação direta com as transformações internas do capitalismo que alterou, ao longo da história, o papel da mulher no interior de sua cadeia produtiva. Com o processo cada vez mais intensificado de precarização do trabalho, aumento do trabalho informal, diminuição dos direitos sociais e garantias legais que amparam o trabalhador, um único provedor tornou-se insuficiente para sustentar uma família. O capitalismo acomodou a luta das mulheres à sua necessidade de mais mão de obra. Embora mais autônomas, as mulheres, hoje, estão submetidas a uma jornada dupla de trabalho, ainda são as principais responsáveis pelo cuidado com as crianças e com o trabalho doméstico, além de estarem submetidas a uma maior exploração de sua mão de obra no mercado de trabalho – considerando que, em geral, a mulher recebe menos que homens, mesmo quando exercem a mesma função de trabalho.

É importante ressaltar que, a inclusão em massa da mão de obra feminina no mercado de trabalho não acompanhou a participação do homem no trabalho reprodutivo. O trabalho reprodutivo é o trabalho do cuidado com as necessidades básicas, trabalhos doméstico, criação das crianças que, no cenário do capitalismo atual, se mantém uma atividade privada e, de maneira geral, não remunerada. Temos então, duas esferas do trabalho: o trabalho produtivo, remunerado, e o trabalho reprodutivo, não remunerado e, frequentemente, não reconhecido como trabalho. Embora o trabalho reprodutivo seja crucial para que a mão de obra seja produzida e possa manter-se ativa nas atividades produtivas, o capitalismo tende a minar as condições de possibilidade para a reprodução social, valorizando, apenas, as atividades produtivas. É uma dinâmica social que tende, inevitavelmente, à crise. Para amenizar o problema social do cuidado, em sociedades do capitalismo avançado, o Estado tornou-se responsável por garantir ao trabalhador um amparo à saúde, educação, previdência social, suprindo a necessidade social do trabalho reprodutivo e possibilitando que os sujeitos integrem os postos de trabalho produtivo. No Brasil atual, no entanto, temos um cenário de supressão de direitos e achatamento do papel do Estado em fornecer essas estruturas de cuidado. A reforma trabalhista e a reforma da previdência expõem essa tendência. Com a omissão do Estado, as atividades de cuidado estão, cada vez mais, relegadas ao âmbito do privado. O resultado é uma superexploração das mulheres.

O capitalismo atualmente funciona através da sobrecarga imposta às mulheres. Esse cenário desolador que nos mostra que o capitalismo não se resume ao âmbito das trocas materiais e constitui-se em um modo de vida abrangente, que supõe práticas sociais e valores instituídos, ancorados em um modo de produção. A economia é, frequentemente, tratada como um conhecimento especializado, que opera segundo dados e a expertise dos especialistas. Porém, desde Marx, sabemos que é necessário pensar a economia através da política. O modo como compreendemos propriedade, trabalho, produção, é histórico, e está fundamentado em uma série de ideologias que, com a contribuição da política, sustentam o modo de produção capitalista. Isto inclui a configuração de uma hierarquia dos papéis de gênero dentro deste processo de produção e reprodução social.

O que vivemos hoje – mais agravadamente no Brasil, mas também no mundo – não é resultado da conjunção de circunstâncias fortuitas, é parte de projeto político que inclui a economia e o modo como vivemos: na economia, a diminuição dos custos do Estado e a financeirização, no campo dos costumes, a valorização da família, em seu sentido “tradicional”, a heteronormatividade e a negação dos direitos reprodutivos às mulheres. Esse é um projeto que, ao mesmo tempo, reduz o papel do Estado no provimento de estruturas de cuidado e privatiza essas estruturas através do ideal da “família tradicional”. Conectar os debates sobre aborto, feminismo e sexualidade ao seu pano de fundo político-econômico produz uma compreensão mais ampla sobre esses temas, um olhar menos ingênuo, e pautas políticas mais assertivas. Afinal, se não quisermos que as conquistas das lutas emancipatórias sejam acomodadas a um sistema econômico que funciona em favor de poucos, devemos formular um discurso político capaz de pautar criticamente a economia. Assim, assumimos interesses comuns como alvo preferencial do debate, deslocando as pautas do âmbito das escolhas morais, para o social. Afinal, existem consequências sociais e econômicas, para além do interesse das mulheres, implicadas na continuidade de gestações indesejadas, como também, na não participação dos homens nos trabalhos domésticos e o cuidado com as crianças, na omissão do Estado em fornecer estruturas sociais de cuidado. Uma compreensão mais ampla da economia nos permite abandonar uma dicotomia, inevitavelmente redutora, entre economia e modos de vida. A forma econômica ao qual convivemos está ancorada em práticas sociais e políticas constitutivas da nossa formação social. Esse olhar permite que conciliemos economia e modos de vida como esferas intrinsecamente ligadas e gerar um horizonte igualmente mais amplos para as lutas sociais, comprometidas com o domínio do coletivo.

Por Laiz Fraga Dantas, doutora em Filosofia pela UFBA, integrante do GT Poética Pragmática e do Grupo de estudos independente mulheres e filosofia