A confissão de impotência do neoliberal Bolsonaro

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Por Daniel. S. Kosinski – É fato conhecido e bem documentado (por exemplo, por Pedro Cezar Dutra Fonseca no seu texto “Do progresso ao desenvolvimento: Vargas na Primeira República”) que, ainda nos seus tempos de estudante na Faculdade de Direito de Porto Alegre, Getúlio Vargas, numa prova de Economia Política, desferiu contundente crítica ao liberalismo e ao que chamou de “individualismo puramente doutrinário”. Os considerando incapazes de resolver as “profundas agitações em que se debate a sociedade atual, o evidente desequilíbrio econômico, o deplorável estado em que se acham as classes”, chamou então o laissez-faire de “uma confissão tácita de impotência por parte desta pseudo-ciência que se chama Economia Política” e defendeu a necessidade de “o quanto possível desfazermo-nos de nossos preconceitos burgueses”.

Décadas mais tarde, ao longo de quase 20 anos de governo divididos em distintas configurações institucionais, Getúlio agiu contra a impotência liberal da República Velha que mantinha o Brasil exclusivamente agroexportador e entre os países mais pobres, atrasados e dependentes do mundo. Então, livrando-se daqueles “preconceitos burgueses” e aproveitando-se de incomum período de maior liberdade nas nossas relações internacionais, governou ativamente. Entre muitas outras decisões e iniciativas, centralizou os poderes executivos na União contra os interesses das oligarquias regionais; criou enorme aparato administrativo – DASP, IBGE, BNDE, SUMOC, dezenas de códigos e institutos; e estabeleceu, também, as bases fundamentais da infraestrutura produtiva nacional através de estatais como CSN, Vale do Rio Doce e Petrobras, elaborando ainda o projeto da Eletrobras, que só seria aprovado quase dez anos após a sua morte. Deu início, assim, à construção de um Brasil que se pretendia industrializado, moderno, autônomo e soberano.

Depois disso, todavia, vieram o golpe civil-militar de 1964; o desenvolvimentismo profundamente antissocial, internacionalizado e endividado dos militares; a crise da dívida externa na década de 1980; e finalmente, a chegada, a partir da eleição de Fernando Collor, do chamado “Consenso de Washington” ao Brasil. Não por acaso, Fernando Henrique Cardoso, o “príncipe dos sociólogos” transformado em comandante da implantação daquele “consenso” neoliberal entre nós, no seu discurso de despedida do Senado Federal em dezembro de 1994, semanas antes de assumir a Presidência da República, declarou o seu intuito de pôr um fim ao que chamou de “legado da Era Vargas” e “seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista”, segundo ele, “um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade”.

Depois de vinte e sete anos desse suposto “avanço”, eis que, então, chegamos ao dia 25 de outubro de 2021. Foi quando Jair Bolsonaro, numa entrevista a uma rádio do Mato Grosso do Sul, disse:

“Alguns me criticam, o preço do combustível, o preço do gás. Eu não sou malvadão, eu não quero aumentar o preço de nada. Mas não posso interferir no mercado. Se pudesse, iriam dizer que eu queria interferir no preço da carne que vocês produzem no Mato Grosso do Sul.”

Numa única sentença, Bolsonaro atualizou, com admirável e involuntária precisão, a “confissão tácita de impotência” do liberalismo identificada há quase um século por Getúlio Vargas. Simplesmente, o presidente da República acabou de se declarar desprovido de poderes para regular o abastecimento de três itens centrais para a subsistência e o funcionamento da sociedade brasileira: um alimento básico da nossa dieta; o gás necessário para tornar esse e muitos outros alimentos comestíveis; e os combustíveis indispensáveis para transportar todos eles, os demais bens e pessoas por esse nosso vasto, e ainda mal integrado, território.

Em suma, como outros 200 milhões de brasileiros, meros consumidores, Bolsonaro, segundo ele próprio, apenas acompanha o que faz esse suposto “mercado” sem nada poder fazer a respeito. Nesse caso, resta a dúvida. Se não é o presidente da República, quem, então, está governando o Brasil?

A resposta é simples e a frase lapidar de Bolsonaro, que tem tudo para se tornar histórica, é inequívoca. Ela é a prova cabal de que o projeto de “superação” da “Era Vargas” de FHC se impôs. Herdeiro direto desse projeto de demolição nacional, titular de um “governo” subordinado à ideia de supremacia do “mercado” e ignorante, rude e franco como de costume, Bolsonaro confessou de público a sua sensação de ser mero espectador de decisões alheias.

Dessa forma, não importam as empulhações que têm dito os ideólogos do neoliberalismo e seus porta-vozes nos grandes veículos midiáticos, que agora se apressam para dissociar o seu programa desse desastre que estamos vivendo. Indubitavelmente, Bolsonaro preside o governo mais liberal da nossa história. E o faz por uma razão essencial: bem de acordo com esse ideário e conforme ele próprio, com a maior imprudência, confessou, Bolsonaro simplesmente não governa, deixando que esse tal “mercado” o faça em seu lugar.

Se isso não for um “governo” neoliberal, o que mais será?

Por Daniel S. Kosinski, Doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e membro do Instituto da Brasilidade.