O programa Roda viva, da TV Cultura, apresentado por Vera Magalhães, recebeu em 14 de junho de 2021, Chimamanda Ngozi Adiche, mulher negra, nigeriana, mãe, escritora, ativista e feminista, que escreveu os livros traduzidos para o português “Americanah”, “Meio sol amarelo” e “Hibisco roxo”. Além disso, é autora de duas conferências Ted Talk mais visualizadas pelo mundo: “O perigo de uma única história” (2009) e “Todos nós deveríamos ser feministas” (2012).
A entrevista foi conduzida pelas convidadas Carla Akotirene, Djamila Ribeiro, Marcella Franco, Carol Pires e Adriana Ferreira, que trouxeram temas importantes como feminismo, política, economia e literatura.
Chimamanda é uma mulher que se permite sentir todas as sensações do mundo, de modo que evidenciou em suas falas que ser livre é ter a oportunidade de falhar, mas também de consertar, porque todas os seres humanos são passíveis de erros. Todavia, isso não deve ser utilizado como desculpa para manter a estratificação social. Ela também apontou que é normal sentir a dor da perda e que não é justo exigir que as mulheres negras sejam apenas fortes.
Dentre tantos temas tratados na entrevista, Chimamanda reforçou que as mulheres são discriminadas de forma normalizada e naturalizada, ainda que por homens negros, que apesar de sofrerem os horrores do racismo, reproduzem o machismo contra às mulheres negras. bell hooks e Angela Davis também apontaram essa dupla discriminação que as mulheres negras estão submetidas, e que os homens negros do movimento antirracista reproduziam a opressão machista.
Chimamanda afirmou que “qualquer um que entenda o que é o feminismo, sabe que ele não é divisão, e sim justiça. Ninguém que conhece a história do mundo pode dizer que as mulheres não foram excluídas. As mulheres foram excluídas porque eram mulheres”.
As desculpas utilizadas para negar as disparidades de gênero são semelhantes a utilizadas para negar o racismo, a ponto de parte da sociedade questionar quando uma mulher é estuprada “qual é a roupa que ela estava vestida?”, e se um homem negro leva um tiro à noite, questiona-se “por que ele estava andando na rua à noite?” ou “por que ele tirou as mãos do volante?”. Chimamanda afirmou como essas concepções servem para culpabilizar as vítimas e que isso é inaceitável, visto que a sociedade deveria combater os comportamentos que levam a reprodução do sexismo e racismo.
A discriminação acontece em pequenos gestos, quando as mulheres são invisibilizadas. Chimamanda contou que saiu com seu marido em Lagos, Nigéria, e que passou por sete pessoas que o cumprimentaram dizendo “Bom dia, senhor!”, porém ninguém a cumprimentou. Na Nigéria, muitas mulheres são questionadas no mercado de trabalho sobre quem vai cuidar dos seus filhos, do marido e de sua casa caso ela seja contratada. Esta é a realidade da maioria das mulheres no mundo, visto que apesar da existência de tratados internacionais que prescrevem a igualdade de gênero e sociedades includentes, esses compromissos ainda carecem de efetividade.
A constatação das disparidades sociais e raciais gera raiva, porque parece que as mudanças sociais acontecem a conta-gotas (quando acontecem), de modo que Chimamanda afirma que mesmo sentido raiva, ela a canaliza para tentar apontar e convencer as pessoas sobre a necessidade de mudança de comportamento.
Eu guardo a raiva no bolso, e tento me ater aos fatos e contar histórias, porque na verdade, o feminismo é necessário para todo mundo, todos precisamos abraçar o feminismo. A função do feminismo é chegar ao ponto de que não mais precisamos dele, chegar ao ponto de que as mulheres possam ser seres humanos completos. Isso parece óbvio em toda parte do mundo. Permitir que as mulheres tenham direitos, permitir que elas tenham autonomia total sobre seus corpos, sobre suas escolhas, não julgar mulheres pelas coisas sobre as quais os homens não são julgados. A mulher muitas vezes é chamada de arrogante. Ela só é confiante (CHIMAMANDA, 2021).
A entrevista também nos direciona na posição de que o feminismo é para todo mundo não porque somos todas(os) ativistas, mas pelo motivo de que entendemos a possibilidade de libertação das amarras da discriminação. Chimamanda trouxe o exemplo de uma feirante que decidiu sair de um lar em que era abusada pelo marido, e que construiu um novo lar para ela e seus filhos, ensinando-os a partilhar as tarefas domésticas de forma igual, tendo consciência de sua autonomia. Nesse sentido, é perceptível que a feirante é tão feminista quanto a ativista universitária, pois ela rompeu com a construção convencional de que a mulher deve suportar a opressão para manter o casamento, ainda mais em uma sociedade como a nigeriana, em que o casamento é visto como um prêmio à mulher.
“Algumas mulheres não podem se dar ao luxo de serem ativistas e digo isso não apenas em termos materiais. Para algumas mulheres, o ativismo é emocional e mentalmente difícil. Mas acho que mesmo assim elas são feministas”. Não precisa de um livro para dizer o que é feminismo, pois ao observar o mundo se constata que as mulheres não recebem a mesma dignidade destinada aos homens. Ainda, é essencial que a academia, literatura e os movimentos sociais também atuem construindo e constatando a importância das lutas contra às desigualdades, e assim que sejam formuladas políticas públicas e ações afirmativas capazes de combater essa estrutura social desigual e que atenda a singularidade de cada país.
A escritora também afirma que a responsabilidade pela educação das crianças deve atender as necessidades de compreensão da realidade de mundo, motivo pelo qual tanto os pais quanto a escola devem estar engajados nas pautas do feminismo e combate ao racismo com a mesma importância que é destinada à matemática e à gramática, pois estamos falando da construção dos futuros profissionais e líderes do mundo. “Se sua filha volta da escola dizendo que bonecas é para meninas e carrinhos para meninos, isso é um problema” (CHIMAMANDA, 2021).
Chimamanda também constatou que o Brasil é racista porque em sua visita ao país para um festival literário em 2008, sabia que havia muitos negros aqui, porém ela não os viu nas palestras, restaurantes e em nenhum espaço que frequentou, e tampouco nos comerciais da televisão. E mesmo apontando essa desigualdade às pessoas que teve contato, recebia a resposta negacionista de que “no Brasil todos somos iguais, pois somos todos misturados”, de modo que insistiam em negar a existência do racismo. Chimamanda questionava: “Onde estão os negros? (…)Eles não estavam presentes. Eu acho que se você tem um país que tem uma grande população negra e essa população não está representada de nenhuma forma, especialmente, quanto mais alto você vai, então isso é um problema” (CHIMAMANDA, 2021)
Dois dias antes da transmissão da entrevista da autora, destacou-se nas redes sociais como o racismo no Brasil ainda é tão normalizado, a ponto de Tomás Oliveira e Mariana Spinielli, ambos brancos, sentirem-se com a liberdade de acusar injustamente Matheus Ribeiro, jovem negro, de ter roubado a própria bicicleta elétrica no Leblon, Rio de Janeiro. Por causa do racismo, os negros brasileiros são constrangidos a apresentarem a nota fiscal dos seus bens, sob pena de já serem condenados por algum crime, porque destituídos do reconhecimento de verdade, já que o padrão universal da estrutural social vê os brancos como honestos, belos, íntegros, trabalhadores e o negro o seu oposto. Também é contra essas desigualdades que as narrativas da escritora são elaboradas.
A partir da concepção de descolonizar a construção da religião que demoniza tudo que é ligado à África, e que as imagens de Jesus, Virgem Maria e os demais personagens bíblicos passaram pelo processo de branqueamento do colonialismo, Chimamanda afirma que “o que me interessa cada vez mais é como africanizar o cristianismo (…)Por que nunca pensamos em tentar africanizar essas imagens que refletem a nossa fé? Certo?”. E isso é historicamente mais correto. Os estudos de Teologia Negra apresentam esse debate também no sentido de que o cristianismo é a libertação de todas as pessoas, e não deve servir para retroalimentação das opressões raciais.
Chimamanda também foi questionada sobre sua percepção do governo brasileiro, e afirmou que “acho que o Brasil é um país que merece lideranças melhores”, já que o país ainda sofre com os casos de morte decorrente do coronavírus. Segundos os dados oficiais, até 15 de junho de 2021, o Brasil teve 488 mil mortes por COVID-19, com a vacinação ainda muito abaixo do esperado para garantir a imunidade da população.
E sobre a chegada de Kamala Harris como vice-presidenta dos Estados Unidos da América, Chimamanda afirma que ela é muito inteligente e competente, e espera que ela seja a futura presidenta. Mas não espera grandes feitos, pois, normalmente, as pessoas apresentam expectativas difíceis de serem alcançadas quando alguém do grupo das minorias se destaca, especificamente, mulheres negras, como se elas tivessem que provar que são merecedoras da confiança. Isso é desonesto, já que não se aplica para todos.
Ao final. Djamila Ribeiro perguntou “O que Chimamanda diria as jovens negras que estão começando a escrever?”, a mensagem da Chimamanda foi de manter os sonhos e aspirações vivos.
Não desistam. Precisam saber que vai ser difícil, mais difícil para você do que para um escritor não-negro, essa é a realidade, mas não é motivo para parar. Precisam continuar escrevendo e sobretudo fazer o seu melhor. Acredito que toda história pode ser universal. Precisa ser bem escrita. E outra coisa que eu diria: nunca, nunca peçam desculpas por serem negras ou por serem mulheres. E não tentem atenuar suas histórias de qualquer maneira. (…)Contem a história que querem contar (CHIMAMANDA, 2021).
A entrevista da Chimamanda Ngozi Adiche para o Roda viva é uma oportunidade de reflexão sobre a estrutura social que reproduz o racismo e o sexismo, bem como acesso à cultura e produção intelectual nigeriana. Para além disso, direciona um horizonte de desmonte da apartação existente nas relações sociais.