Por Roberto Dutra – Na semana do velório e sepultamento do maior jogador de futebol de todos os tempos e símbolo maior da grandeza nacional brasileira, o nosso mundo do futebol também encontrou espaço para um embate entre a colunista do UOL Milly Lacombe e o comentarista Pedrinho do Grupo Globo. Lacombe publicou uma coluna afirmando que a escolha de Pedrinho como melhor comentarista em uma pesquisa feita pelo UOL com jogadores do último campeonato brasileiro foi determinada pelo fato de Pedrinho representar a forma de vida do “macho alfa” e da “masculinidade tóxica” no futebol. Esta forma de vida, de acordo com a colunista, seria praticada e cultivada pelos atletas que participaram da pesquisa. Segundo ela, o fato de Walter Casagrande, na mesma pesquisa, ter sido eleito o pior comentarista comprova sua tese sobre a eleição de Pedrinho, já que Casagrande representaria o oposto do “macho alfa” e da “masculinidade tóxica”. O contraste entre Casagrande e Pedrinho representaria a oposição entre uma categoria de pessoas que convivem e tratam mulheres como sujeitos de igual valor, dedicando a elas o mesmo afeto e consideração que oferecem a seus colegas homens, e outro grupo formado por aqueles que tratam mulheres apenas como objeto sexual, e não como endereço de afeto e consideração profissional. Horas depois de Lacombe publicar sua análise, Pedrinho lançou um vídeo nas redes sociais respondendo a colunista. Na resposta, o comentarista se ocupa de 1) recusar o enquadramento de sua pessoa e de sua conduta na categoria do “macho alfa” e da “masculinidade tóxica” e 2) de destacar os critérios técnicos e profissionais que poderiam explicar sua eleição como melhor comentarista pelos jogadores, ressaltando a falta de atenção que estes critérios recebem no trabalho de Lacombe.
Lacombe é uma comentarista militante e intelectualizada, que mobiliza autores de humanas para formular seus argumentos. Pedrinho é um ex-jogador de origem popular que decidiu estudar depois que encerrou a carreira de jogador e começou a de comentarista. Na crítica sobre futebol, Pedrinho se destaca por suas análises sobre as dimensões próprias do jogo. Entre os boleiros que comentam futebol, é talvez o que mais valoriza a dimensão tática. Trata o futebol como uma esfera social própria, com complexidade e razões explicativas irredutíveis a fatores externos. Seu trabalho é de “crítica interna”. Lacombe é o oposto. Assim como Casagrande, praticamente não fala do jogo. Seu trabalho é de “crítica social” do futebol, com foco nos aspectos externos ao jogo, como as desigualdades sociais de gênero que abordou no texto que desencadeou o embate com Pedrinho. Neste embate podemos identificar um sentido pedagógico muito claro sobre o que está em jogo na disputa entre “crítica interna” e “crítica externa”: há um abismo cognitivo, moral e civilizatório entre o que representa Pedrinho e o que representa Lacombe.
Quem gosta e acompanha futebol, sabe que o jogo é uma esfera autônoma, com complexidade, estruturas e evolução próprias. Isso não significa negar a incontestável relevância de fatores externos como a política, o capitalismo e as desigualdades sociais. Significa apenas pontuar que estes fatores externos não explicam diretamente o jogo e nem as autodescrições que os críticos fazem sobre o jogo, como acredita Lacombe ao reduzir a preferência dos jogadores por Pedrinho ao culto do “macho alfa” e da “masculinidade tóxica”. O texto de Lacombe, assim como sua réplica à resposta de Pedrinho, representa uma visão unitária da vida social e cultural, segundo a qual uma determinada forma de identidade de gênero determinaria todas os acontecimentos e estruturas em qualquer contexto. Nesta visão de mundo unidimensional, as mesmas categorias se aplicam a todas as esferas, como se não houvesse desenvolvimento técnico e profissional próprios no futebol, nas artes, na ciência, no direito, na economia e na política. E as categorias absolutas mobilizadas por Lacombe são de natureza moral, pois classificam pessoas e grupos de modo totalizante e moralmente suspeito: como “machos alfas”, “homens brancos” e afins.
O aspecto decisivo para definir o identitarismo é a natureza totalizante, quase totalitária, deste enquadramento moral de pessoas e grupos. A complexidade das pessoas e de suas formas de inserção na vida social é simplesmente negada. Este totalitarismo moral é o que caracteriza o identitarismo como prática “intelectual” que busca classificar pessoas e grupos de modo unívoco, e impor esta classificação em todas as dimensões e esferas da vida. Identitarismo não tem nada a ver com defesa de causas sociais como igualdade e diversidade, mas sim como este totalitarismo moral que nega que as pessoas e o mundo são um pacote de complexidade e quase sempre também de contradições. Em sua resposta a Lacombe, Pedrinho reivindicou a individualidade pessoal, recusando ser enquadrado de forma absoluta nas categorias morais usadas pela colunista. Além disso, ele ainda atribuiu a Lacombe falta de conhecimento técnico sobre aspectos internos do jogo de futebol, especialmente em sua dimensão tática. Segundo ele, a colunista busca suprir esta incapacidade profissional com lacração. A ciência social verdadeira mostra que Pedrinho está certo.
Como nos ensina o grande sociólogo alemão Niklas Luhmann, negar a individualidade das pessoas e a autonomia das esferas sociais como faz o identitarismo é oferecer uma descrição falsa da realidade. No entanto, o mais grave desta posição é a regressão civilizatória que ela representa com aberrações cognitivas e morais muito sérias: ignorar a complexidade da vida social, expressa em sua diversidade de esferas, categorias, lógicas, normas, valores é abdicar dos principais ganhos socioculturais da vida moderna. Sem essa complexidade social não poderia existir autonomia individual e, portanto, tudo que entendemos por civilização. Indicador desta regressão civilizatória identitária é a prática da imputação moral coletivista segundo a qual o indivíduo é apenas uma réplica de uma coletividade boa ou má, a depender do julgamento arbitrário de alguém que se coloca como juiz da moral capaz de catalogar pessoas e grupos. O coletivismo tribal fragmentário e o individualismo narcísico se combinam perfeitamente.
Como fenômeno de regressão civilizatória, o identitarismo não começou no futebol. Ele nasceu nas universidades norte-americanas e foi adotado de forma colonizada pelas universidades brasileiras. Da universidade tenta se difundir por outras esferas sociais como a política, os meios de comunicação de massa e os esportes. Na universidade, infelizmente, quase não temos pessoas com a coragem civilizatória de Pedrinho. A maioria dos professores que discorda do totalitarismo moral identitário, prefere o silêncio ou a cumplicidade mal disfarçada com as aberrações cognitivas e morais praticada contra a liberdade e o profissionalismo acadêmico. Na política, felizmente temos uma grande arma: o voto das maiorias populares que rejeitam a regressão civilizatória identitária, embora políticos identitários, em razão de lobbies midiáticos, acabem ocupando mais espaços de poder do que aqueles conquistados nas eleições. No futebol, tentaram relativizar a grandeza insuperável do Pelé com julgamentos morais sobre aspectos de sua vida pessoal. Mas o tamanho do personagem, que encarna e promove a própria complexidade e realização humana do futebol, desencorajou a barbárie identitária. Que a grandeza incontestável de Pelé nos sirva de inspiração para combater esta ameaça civilizatória, esta aberração moral e cognitiva em nosso futebol e no país como um todo!
Por Roberto Dutra
Sociólogo e professor da UENF