A Intentona Fascista e o Governo da Ordem

Intentona Fascista. Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Botão Siga o Disparada no Google News

No último domingo (8/01/2022), o mundo assistiu boquiaberto a uma multidão enfurecida invadindo Brasília e quebrando tudo o que era possível quebrar. A cena já estava previamente desenhada: seguindo a doutrina militar de Steve Bannon, o “Capitólio Brasileiro” se desenrolou conforme o prometido: os palácios-sede dos três poderes foram arrasados com a descarada conivência do governador e da polícia do Distrito Federal, que simplesmente chegou a escoltar os criminosos até a Esplanada.

A coisa já vinha ocorrendo conforme o script, porque o poder atual é descarado: todos já sabiam que isso estava prestes a ocorrer. Os acampamentos nas portas dos quartéis das Forças Armadas foram incentivados pelo ex-presidente enquanto o generalato brasileiro, decrépito, carente e envaidecido, mantinha-se caladinho, excitando-se com as alvíssaras da multidão fascista implorando por um golpe de Estado. Enquanto os militares flertavam com o golpismo e o ex-presidente (um neofascista declarado) simplesmente abandonava seu posto depois das eleições – para debaixo dos panos inflamar seu bando a desrespeitar o processo eleitoral – os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) assumiam de fato o comando da República tentando desesperadamente recompor “a normalidade institucional”, isto é, o estado de exceção oligarca que sempre governou o Brasil.

Em meio ao furacão que arrasa o país desde 2013, as forças políticas encontram-se perdidas. As coordenadas de orientação se desfizeram, de modo que as reviravoltas tornaram-se parte do cotidiano. Talvez por isso, alguns importantes detalhes estejam passando desapercebidos.

Deixemos de lado os atos fáceis demais. Em homenagem ao Partido dos Trabalhadores (PT) que se arvora “o maior partido de esquerda da América Latina”, listo abaixo 13 (treze) detalhes inconvenientes para os que se dizem progressistas:

1. Primeiro, a Intentona Fascista[1] do último domingo saiu-se vitoriosa. Há quem diga que fracassou, porque não tomou o poder. O objetivo jamais foi esse. Há quem diga que fracassou porque mobilizou a opinião pública contra sua própria radicalidade. O objetivo jamais foi esse. No campo simbólico, venceu, tanto porque cumpriu o que prometeu (a radicalização há tempos anunciada) quanto porque passou dois recados à população, ou seja, de que o campo político contra a ordem estabelecida é a direita e que ela sobrevive mesmo sem Bolsonaro. É uma carta na manga para o futuro, caso os democratas não consigam entregar o que prometeram.

2. Segundo, a indignação que os obtusos especialistas demonstram contra a quebradeira nos palácios, a famosa “dilapidação do patrimônio público” não advém da justa perplexidade pela destruição de importantes obras de arte, mas pelo fato de que imponentes sedes de governo atacadas revelam que o poder já não reside mais lá. A defesa dos palácios já não equivale a defesa dos antigos palácios reais, onde a monarquia se escondia com medo da guilhotina. Se antes, reis e rainhas se “encastelavam” contra o povo, hoje, a defesa dos palácios se realiza para que o povo não saiba que o poder já não está mais lá. Nem mesmo na Bolsa de Valores: o poder virou gás e se realiza em nível molecular.

3. Terceiro, “XEQUE-MATE”: Eliane Catanhêde (quem diria!) publicou no Estadão (aquele jornal que odeia a democracia) que: “Quanto mais Bolsonaro e bolsonaristas radicalizam, mais cresce a união nacional pró-Lula”. Eis a sinuca de bico: Lula virou a salvaguarda… da ordem! Ou seja, a esperança que reúne os “democratas”, esse conceito suficientemente elástico para aglutinar inclusive ex-delatores, gente da Opus Dei e antigos cúmplices de tortura. Quanto mais o bolsonarismo radicaliza, mais Lula defenderá a ordem.

4. Quarto, na guerra semântica, outro dado curioso: enquanto a Rede Globo cobria ao vivo os eventos, a exemplo das Jornadas de Junho de 2013 alterou deliberadamente a nomenclatura utilizada. Se lá passou a usar o termo “vândalos” para se referir aos manifestantes, agora passou de “bolsonaristas radicais” e “golpistas” para “terroristas”. Veja só, muito embora isso afague nosso ego e nossa vontade secreta de aniquilar os fascistas, cria outro grave problema: o termo “terrorismo” têm sido aplicado para forçar um recrudescimento da legislação, especialmente no que tange ao chamado “terrorismo interno”. Não me assustaria o surgimento de novas leis que abranjam esse conceito. É a porta-aberta para uma versão tupiniquim do US Patriot Act ou aberrações similares. Os que hoje comemoram o uso dessa nomenclatura são os que ontem foram chamados de vândalos (a antessala do terrorismo). Esquecem-se os progressistas que se hoje os bolsonaristas são chamados de terroristas amanhã são os progressistas que ocuparão esse espaço – o problema é que historicamente os que são chamados de terroristas nesse país são justamente os movimentos sociais, os pretos, os pobres, os sindicalistas e favelados.

5. Quinto, o governo têm sido incentivado a formar uma amplíssima rede de policiamento, inclusive com a participação de organizações ditas de esquerda. Um grupo intitulado “Contragolpe”, por exemplo, em menos de 24 horas criou um perfil no Instagram que já conta com mais de 1,1 milhão de seguidores, todos ordenados a “caçar” e denunciar “terroristas”. Milhares de rostos estão estampados na página da rede social. A questão é: essa estrutura não cria um precedente para a utilização das mesmas práticas pela direita? O governo têm sido incentivado a criar meios de reconhecimento facial, usar drones, e colocar em marcha um gigantesco aparato de investigação.

6. Sexto, o governo Lula 3 será o teste definitivo da nossa democracia. Ops! Só uma correção: o governo Lula 3 será o teste definitivo da nossa conciliação de classes. O novo governo Lula constituiu uma grande mesa de negociações, arrastando para sua órbita as “forças democráticas”. É um grande feito! De Simone Tebet a Sônia Guajajara, passando por Geraldo Alckmin, Múcio Monteiro e a milícia de Belford Roxo. De Marina Silva ao agro, passando pelo já batido fisiologista Carlos Lupi. Todos estão com Lula, e o slogan do governo é “união e reconstrução [do lulismo]”. E, claro, já que o lulismo opera afastando o dissenso, há de se esperar seu fortalecimento.

7. Sétimo, com a mesa posta e Lula na cabeceira dela, Lewandovski, Rosa Weber, Barroso, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Pacheco e Arthur Lira (veja só, quem diria!) olham para ele com os olhinhos brilhando. Ao que tudo indica, essa “coalizão” tem tudo para dar certo. Nas páginas de nossa história, já existem inúmeras fotografias de Alexandre de Moraes, o fiador da democracia, carinhosamente saudado pelos petistas e por parte considerável da esquerda como “Xandão”. O mesmo Supremo que espetacularizou o Mensalão, tornou possível a escalada da judicialização da política, aquiesceu com a infame Lava-Jato, prendeu Lula (!!!!) agora virou a tábula rasa de salvação. Não tem algo estranho nessa equação?

8. Oitavo, sim, eu sei. Muitos de vocês dirão: mas Paulo, não há saída. Ou é isso ou as trevas do bolsonarismo. Outros argumentarão: Lula 3 é só uma transição, é só a saída do buraco, depois a gente vê o que faz. Ok! Ok! Aceito todos os argumentos, desde que me respondam: em que pese tudo isso, a estratégia empregada não retroalimenta o quadro político atual? Ou vocês realmente acreditam que a satanização da esquerda entre os evangélicos, por exemplo, será revertida com o “governo da união e da reconstrução”?

9. Nono, o estado de exceção bolsonarista é um estado de exceção virado contra o estado de exceção anterior, isto é, contra o arranjo Sarney (a Aliança Democrática de 1985, lastro da Constituição de 1988). A resposta ao estado de exceção bolsonarista têm sido (pela esquerda) a defesa desse arranjo Sarney. O nono ponto é só isso mesmo…

10. Décimo, no campo da economia temos Fernando Haddad, o novo Marcos Lisboa do lulismo. Bem, desculpe a falta de argumento, mas eu acho que nem precisa argumentar, não é mesmo?

11. Décimo primeiro, José Múcio Monteiro, o ministro da defesa de Lula 3 declarou em alto e bom som que os acampamentos nos quarteis eram movimentos democráticos e que tinha até mesmo pessoas de sua família entre os acampados pedindo golpe militar! Some-se a isso o fato de que o Almirante Garnier Santos simplesmente faltou à cerimônia de passagem de comando, onde deveria entregar o cargo ao novo comandante indicado por Lula. A Marinha, para quem não sabe, é a mais bolsonarista das Forças. Ato de insubordinação! Assim como os policiais militares e os agentes de segurança que cruzaram os braços na infame Intentona Fascista dessa semana. Quem punirá os militares?

12. Décimo segundo, como diz meu amigo Fabiano Ramos Torres “o Brasil se tornou o barril de pólvora do mundo”. Lula só não tomou um golpe de Estado porque a conjuntura internacional têm segurado. A turba grita: “Sem Anistia”, mas a anistia é uma das ferramentas de trabalho do lulismo.

13. Décimo terceiro, 13. “Nos quieren obligar a governar. No vamos acaer em esa provocación” [pixação de muro em Oaxaca, 2006].

Referências

Referências
1 Devo a expressão “Intentona Fascista” ao meu amigo historiador Edson Douglas de Oliveira. Embora discorde em parte com sua argumentação, faço uso do mesmo termo. Ele argumenta que no vernáculo, Intentona é: 1) cometimento temerário; plano insensato. 2) ataque imprevisto. (Dicionário Oxford). Ou ainda: 1) Intento ou empresa insensata. 2) Conluio de motim ou revolta (Dicionário Priberam). Já tivemos na História do Brasil uma Intentona, a dos comunistas de 1935. A dessa semana, segundo ele, protagonizada por “vândalos da mais extrema e bestial direita que esse país já viu”, mostra que essa gente não estuda, não sabe nada da História. Pois fizeram exatamente como no passado, uma baderna para tentar empalmar um poder que já haviam perdido por meio de uma eleição cujos resultados esses tais se recusaram a aceitar.

Deixe uma resposta