Do Partido Fardado ao Sindicato Fardado

o partido fardado é um delírio tanto da esquerda como da direita silvio frota bolsonaro villas boas
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Os militares estavam fora do poder desde a década de 1980 com a eleição indireta do Presidente José Sarney pelo Congresso Nacional, após 21 anos da Ditadura Militar que durou de 1964 a 1985. Mas com a eleição de um ex-capitão do Exército para a Presidência da República, tem sido alardeado um suposto retorno do “Partido Fardado” à disputa pelo poder no Brasil. Essa tese ganha ainda mais apelo após os eventos violentos da invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, apenas 7 dias após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente pela terceira vez. Mas buscarei demonstrar como essa tese está errada diante dos fatos históricos, tratando-se de um delírio inconsciente, mas funcional para a identidade dos dois polos mais radicalizados do espectro político nacional.

Pela direita, o bolsonarismo tornou-se a vanguarda populista hegemônica sobre as massas insatisfeitas e ressentidas com o desastre econômico-social produzido pelos governos Dilma do PT, que clamam por um novo Regime Militar autoritário e antipetista. Pela esquerda, seja por oportunismo de chacoalhar o espantalho da chantagem do “mau menor”, seja por um fetiche esquerdista e nostálgico pela luta armada, as Forças Armadas tornaram-se o alvo principal como origem de todos os males.

Para a melhor compreensão de um tema tão complexo cheio de nuances teóricas e informações obscuras, sem sucumbir ao senso comum, vou realizar um trajeto longo desde o devir histórico do conceito de Partido Fardado até suas consequências na atualidade. Por isso peço um pouco de paciência ao leitor para começarmos do começo. Primeiro farei uma introdução do conceito de Partido Fardado de sua fundação até seu perecimento histórico, para em seguida testar a veracidade de sua volta adaptada à atualidade ou, na realidade, se houve a sua transmutação em outra coisa bastante distinta do que já foi.

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A relação entre o Poder Civil, ou seja, os Três Poderes (Executivo e Legislativo eleitos com Judiciário independente), e as Forças Armadas, é complexa pela própria natureza das relações de poder que dependem de um equilíbrio instável entre coerção e consenso.

O cientista social Oliveiros Ferreira, em sua obra seminal “Vida e Morte do Partido Fardado”, compreende o conceito de Partido Fardado como eixo aglutinador que surge nos momentos de crise dentro das Forças Armadas ou de conflito destas com o governo (civil ou militar). Diante da crise, o Partido Fardado se pretende intérprete da lei e da ordem, e se arroga a função de conduzir as transformações mais profundas na sociedade e/ou na própria corporação. Em oposição dialética ao Partido Fardado está o conceito de Estabelecimento Militar, eixo que estrutura permanentemente a organização das Forças Armadas por meio da disciplina e hierarquia com o compromisso de obediência à lei e à ordem, e não de interpretá-las de acordo com os interesses corporativos.

Em outras palavras, o Estabelecimento Militar é a ideologia perene nas Forças Armadas do respeito à lei e ao regulamento militar, portanto, avesso às mudanças, e defensor da manutenção do status quo e da legalidade posta. Já o Partido Fardado é a ideologia intermitente da transformação interna ou social, portanto, da subversão da disciplina e hierarquia, e, no limite, da tomada do poder por meio das tropas ou sendo um Poder Moderador pairando sobre o Poder Civil. Oliveiros Ferreira demonstra como essa dicotomia entre Estabelecimento/Partido, ou seja, disciplina/subversão cumpre a função de realizar projetos diversos ao longo da história do Brasil.

O Partido Fardado aparece pela primeira vez após a Independência contra os comandantes ainda portugueses do Imperador na luta pela primeira Constituição do Brasil, ou seja, atuando como elemento progressista e conectado ao interesse nacional em rebeldia contra o sentido da colonização e do absolutismo ainda fortes no início do Império. Dali para frente, ao longo do século XIX, o Partido Fardado se manifestou diversas vezes contra o Estabelecimento Militar conservador tanto por questões internas como as remunerações e as formas de disciplina e punição, como contra a elite escravocrata que desejava que as Forças Armadas fossem um bando de capitães do mato perseguindo escravos. A participação dos militares nos eventos da Abolição da Escravidão e da Proclamação da República são obra do Partido Fardado na crise do Império, porém a manutenção da unidade territorial e política do Brasil é devida ao apego do Estabelecimento Militar à lei e à ordem na repressão das diversas revoltas separatistas daquele período turbulento.

A República do Café com Leite que reorganiza a hegemonia das oligarquias rurais herdeiras da escravidão é consolidada pelo Estabelecimento Militar com a energia disciplinar do Presidente Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro, que pune violentamente as dissidências do Partido Fardado, inclusive protagonizando conflitos graves com o Congresso e o Judiciário, entre os quais, vale citar sua famosa frase sobre os habeas Corpus impetrados por Ruy Barbosa em favor de militares oposicionistas e concedidos pelo então Supremo Tribunal de Justiça: “Se os seus ministros concederem ordens de habeas Corpus contra os meus atos, eu não sei quem amanhã lhes dará habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão.”

O Partido Fardado volta a impactar fortemente o Estado e a sociedade civil no Brasil com o movimento tenentista, marcado pela insubordinação explícita contra a disciplina e hierarquia, que culmina nas Revoluções de 1922 e 1924, na Coluna Miguel Costa-Prestes, e por fim na Revolução de 1930. Nesse período de transição turbulenta, o Estabelecimento Militar não podia reinar. O Partido Fardado condensado no tenentismo não era nem de esquerda e nem de direita, mas é dividido em diversas facções que aderem aos projetos políticos aspirantes à hegemonia das nações em um mundo em convulsão nos anos 1930 marcados pela consolidação dos EUA rooseveltiano, da Alemanha nazista e da União Soviética.

O caleidoscópio do espectro político no Brasil dessa época é composto por figuras que se aliam, rompem, e disputam sucessivamente ao longo das décadas subsequentes, mas todos sob a influência da ideologia do Partido Fardado que dá a tônica da luta pelo poder por meio da imposição da força. Pela esquerda aparecem Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a Intentona Comunista de 1935. Pela direita, Eduardo Gomes, Severo Fournier, Plínio Salgado, a Ação Integralista Brasileira (AIB) e o Levante Integralista de 1938. Pelo nacionalismo reformista centrado na construção do Brasil moderno por meio da industrialização, dos direitos sociais e da administração pública, estavam Getúlio Vargas, Pedro Aurélio Góis Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, e o Estado Novo de 1937. Por fim, na contramão da história, as oligarquias rurais paulistas que perderam o poder em 1930 para os tenentistas e reagiram com a Contrarrevolução de 1932, seguida da criação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934 para sustentar a resistência ideológica contra o varguismo após a derrota de dois anos antes.

A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, e o início da Guerra Fria, altera profundamente o destino do Partido Fardado e do Estabelecimento Militar no Brasil. Getúlio Vargas foi retirado do Palácio do Catete em 1945 pelos mesmos tenentistas que o levaram ao poder em 1930 devido às pressões irresistíveis dos EUA como potência hegemônica emergente no Ocidente. Porém, apesar de conduzir o golpe de 29 de outubro, Góis Monteiro mantém os direitos políticos de Vargas e permite ao caudilho se exilar em sua própria estância em São Borja no Rio Grande do Sul, de onde pode fundar dois partidos políticos para prosseguir seu legado democraticamente; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de base sindical e urbana, e o Partido Social Democrático (PSD), ruralista e conservador; bem como se eleger senador e apoiar a eleição do General Eurico Gaspar Dutra pela aliança PSD/PTB, seu ex-ministro da Guerra (título do comandante do Exército à época), para Presidente da República em dezembro de 1945 contra o Brigadeiro Eduardo Gomes pela União Democrática Nacional (UDN). Neste momento, o projeto do Partido Fardado tenentista vitorioso em 1930 torna-se Estabelecimento Militar com a consolidação do Poder Civil baseado no Projeto Nacional de industrialização com direitos sociais e a democracia de massas do Brasil.

A partir de então, o Partido Fardado antigetulista toma a vanguarda da agitação dos quartéis com a quebra da disciplina e hierarquia diante do novo contexto ideológico que divide o país como espelho interno da Guerra Fria. O Partido Fardado passa a atuar principalmente na UDN com um discurso liberal e moralista que confunde o planejamento estatal e os direitos trabalhistas do nacional-desenvolvimentismo getulista com comunismo e corrupção. Getúlio volta ao poder pelo voto popular em 1950 em nova vitória da aliança PTB/PSD sobre Eduardo Gomes, e atrasa o golpe militar em 10 anos com um tiro no próprio peito e a Carta Testamento de 1954.

Em seguida é eleito Juscelino Kubitschek, mais uma vez pela aliança PSD/PTB, que só toma posse devido ao contragolpe legalista de 11 de novembro de 1955 do Marechal Henrique Teixeira Lott atuando como Estabelecimento Militar. Juscelino governou como um equilibrista, anistiando golpistas que tentaram derrubá-lo diversas vezes, para conseguir levar a cabo o seu Plano de Metas e a construção de Brasília. Na sucessão de 1960, finalmente o antigetulismo conseguiu vencer uma eleição presidencial com Jânio Quadros apoiado pela UDN contra o Marechal Lott como candidato da coligação getulista PTB/PSD. No entanto, as eleições para vice-presidente eram separadas naquela época, e o vice eleito foi o ex-ministro do Trabalho de Getúlio, João Goulart, o Jango. Sabendo da rejeição de Jango entre os militares, Jânio Quadros tentou um autogolpe ao renunciar esperando que fosse recolocado no poder pelo Partido Fardado com poderes de ditador. Mas nem as Forças Armadas quiseram sua volta, nem a esquerda abriu mão de assumir o poder com a posse constitucional do vice-presidente eleito. Em 1961, o país viveu momentos de tensão com uma nova tentativa de golpe para impedir a posse do presidente legítimo, que foi garantida dessa vez pelo jovem e valente governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que armou o povo gaúcho e mobilizou o país inteiro pelo rádio com a Campanha da Legalidade.

Somente depois de três anos de um governo João Goulart sitiado politicamente, com seus poderes retirados pelo parlamentarismo e reconquistados pelo plebiscito popular do presidencialismo, com a economia desorganizada, e uma ofensiva do imperialismo norte-americano na América Latina em reação à Revolução Cubana, é que, em 1964, as Forças Armadas chegam ao poder, mas não ainda o Partido Fardado. A dicotomia entre Estabelecimento Militar e Partido Fardado não desaparece no Regime Militar, pelo contrário, se acentua e reconfigura os diversos grupos que disputam o comando do governo.

A unidade das Forças Armadas pelo Golpe de 1964 se dava pela rejeição ao avanço do Trabalhismo como ideologia de massas que crescia em torno da memória de Getúlio Vargas e seu ato heroico de 1954, da popularidade de João Goulart e Leonel Brizola entre as bases sindicais urbanas do PTB, e a ascensão das Ligas Camponesas na luta pela Reforma Agrária liderada por Gregório Bezerra do Partido Comunista do Brasil (PCB) e Francisco Julião do Partido Socialista Brasileiro (PSB). O antitrabalhismo e anticomunismo unia militares e de concepções bastante distintas do Partido Fardado no período 1945/1964, como Silvio Frota e Golbery do Couto e Silva que participaram das tentativas de golpe contra os governos nacionalistas de Getúlio e Juscelino, os quais, por sua vez, eram protegidos pelo legalismo do Estabelecimento Militar do Marechal Lott. Apesar terem estado do mesmo lado antigetulista até o movimento vitorioso de 31 de março 1964, Frota e Golbery tornar-se-iam figuras profundamente emblemáticas e antagônicas durante a Ditadura, o primeiro seria o último líder do Partido Fardado e o segundo se transformaria na maior eminência parda do Estabelecimento Militar que moldaria a transição da redemocratização.

Desde o início, o que mantinha a unidade das Forças Armadas, o antitrabalhismo e o anticomunismo, não impediu a intensificação da luta interna, de um lado pelo ímpeto corporativista do Partido Fardado, que agora queria acessar as benesses do poder, e de outro, a reorganização da própria corporação por parte do Estabelecimento Militar contra a indisciplina sindicalizante nos quartéis. Ao assumir a Presidência, o Marechal Castello Branco promove uma reforma estrutural nas Forças Armadas para impedir a perpetuação dos chamados “Generais-Políticos”, chamados de “totens” por Oliveiros Ferreira, que eram oficiais que passavam décadas no comando de tropas e as utilizavam como verdadeiras organizações partidárias de politização e agitação dos quartéis. Após 1964, os generais passaram a ter um limite de idade ou de tempo no cargo, e depois, eram obrigatoriamente removidos para a reserva, ou seja, para a aposentadoria onde poderiam vestir seus pijamas e marchar de pantufas do lado de fora dos quartéis, mas não mais poderiam ser totens do Partido Fardado. Trata-se de uma reforma modernizadora positivista das Forças Armadas no sentido de afastar a politização personalista e consolidar a impessoalidade disciplinadora da hierarquia nas cadeias de comando.

Mas além das questões coporativo-sindicais, existiam as divisões político-ideológicas dentro das Forças Armadas sobre a própria democracia e à repressão, bem como os problemas econômicos e geopolíticos do país. O Presidente-Marechal Castello Branco, e os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, eram ligados ao um grupo de oficiais oriundos da Escola Superior de Guerra (ESG), conhecido como “Grupo Sorbonne”, que sustentava uma política “Linha-Branda” para o Regime Militar em diálogo com as lideranças civis do Congresso Nacional. Exemplo mais paradigmático e trágico desse diálogo civil-militar durante o golpe é o do senador Juscelino Kubistchek que apoiou a posse de Castello Branco na ilusão de que haveria eleições em 1965 para o ex-presidente que construiu Brasília vencer.

Hoje está claro que mesmo esse grupo moderado da Linha-Branda não pretendia apenas retirar o “subversivo” João Goulart e devolver o poder rapidamente para os políticos civis eleitos, mas o fato é que sem dúvida representavam a ideologia do Estabelecimento Militar que resistia ao aprofundamento autoritário na política e liberal na economia do Partido Fardado liderado pelos defensores da chamada “Linha-Dura” que eram formados na Escola de Guerra de Fort Leavenworth no Kansas, escola esta que foi um antigo Forte do Exército dos EUA utilizado para o extermínio das tribos indígenas americanas, como os Apaches, Cheyennes, Comanches, entre outras, na colonização do Oeste após a Guerra Civil, tendo se tornado uma academia militar ainda no século XIX.

O próprio Golbery estudou em Fort Leavenworth antes de servir na Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial como oficial de inteligência, mas ao retornar ao Brasil torna-se adjunto da seção de informações do Estado-Maior do Exército e membro da Divisão Executiva da ESG, sob o comando do general Juarez Távora, onde formulou sua doutrina da segurança nacional baseada na associação da iniciativa privada com um Estado forte e uma elite civil e militar tecnocrática comprometida com objetivos nacionais permanentes. Essa concepção de elite nacional público-privada de Golbery é a base de sua atuação tanto no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), think tank golpista criado em 1961 e financiado pela burguesia dependente brasileira, como na criação do órgão estatal de espionagem interna, o Serviço Nacional de Informações (SNI), logo após o golpe de 1964, do qual foi o primeiro chefe. A doutrina da segurança nacional de Golbery, que tornou-se hegemônica na ESG, também alinhava o Brasil aos EUA em oposição ao Bloco Soviético, mas não passava nem perto da americanofilia liberal e do anticomunismo paranoico contra qualquer forma de estatismo ensinados em Fort Leavenworth.

Portanto, é somente em 1967 que o Partido Fardado realmente chega ao poder na sucessão de Castello Branco que é obrigado a passar a faixa presidencial para o General Artur da Costa e Silva da Linha-Dura, devido à radicalização ideológica crescente na sociedade e nos quartéis. Já o fechamento radical do regime só ocorre efetivamente dois anos depois da posse de Costa e Silva, e cinco anos depois do golpe, com a promulgação do Ato Institucional número cinco (A.I. 5) para fechar o Congresso Nacional e esmagar a crescente oposição ao Regime, com o consentimento do Estabelecimento Militar que, uma vez no poder e pressionado pela força do Partido Fardado na conjuntura geopolítica pró-EUA, não tolera oposição.

A intensificação internacional da Guerra Fria e o auge do enfrentamento interno com a esquerda armada nas décadas de 1960 e 1970 levou o Partido Fardado à identificação integral entre a defesa dos interesses da corporação no poder com a repressão violenta à sociedade civil e o anticomunismo hipertrofiado com o alinhamento total aos EUA e ao liberalismo econômico. O endurecimento da repressão realizado pelo General Costa e Silva e consolidado pela Junta Militar até a chegada do General Emílio Garrastazu Médici é o auge da ideologia do Partido Fardado como demiurgo da nação no controle do governo, e como fração hegemônica dentro das Forças Armadas na unidade contra o Trabalhismo e o Comunismo no contexto polarizado da Guerra Fria.

Foi nos governos da Linha-Dura (Costa e Silva, Junta Militar e Médici) que o Brasil viveu o “milagre econômico” com altos índices de crescimento baseados em um brutal endividamento externo; ou seja, pela torrente de dólares fornecidos pela burguesia financeira internacional e a consequente inflação gerada pela correção monetária dos preços e ativos em moeda nacional que não atingia os ricos detentores de divisas estrangeiras; bem como nos investimentos públicos e privados induzidos pela expansão das empresas estatais financiadas pela dívida externa; e, principalmente, no arrocho da política salarial possibilitado pela repressão ao movimento sindical para garantir as altas taxas de lucro da burguesia industrial nacional endividada.

Mas em 1974, volta ao poder da Linha Branda ligada à ESG com a indicação do General Geisel para Presidência da República. A trajetória política de Geisel simboliza bastante bem a dialética contraditória das ideologias das Forças Armadas que; apesar das tensões antagônicas internas entre Estabelecimento Militar/Partido Fardado, ESG/Fort Leavenworth, Linha-Branda/Linha-Dura, Nacionalismo/Liberalismo; buscava manter a unidade da corporação. Gaúcho de Bento Gonçalves, Geisel fez parte do movimento tenentista da Revolução de 1930 e lutou pelas tropas federais contra a oligarquia paulista na Contrarrevolução de 1932. Após o golpe de 1964, no governo de Castello Branco, foi ministro-chefe do Gabinete Militar (em outros momentos chamado de Casa Militar e atual Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e depois indicado a ministro do Superior Tribunal Militar (STM). Já no governo Médici, apesar de ser um “castellista” da Linha Branda, foi presidente da Petrobras, e seu irmão, Orlando Geisel, foi ministro do Exército (chamado ministro da Guerra até 1967, e denominado atualmente comandante do Exército sem status de ministério após a criação da pasta da Defesa em 1999).

O governo Geisel é marcado pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), uma política externa independente e terceiro-mundista e o início da Abertura Política “lenta, gradual e segura” conduzida pelo General Golbery do Couto e Silva nomeado ministro-chefe da Casa Civil.

General Golbery do Couto e Silva e General Ernesto Geisel do Partido Fardado ao Sindicato Fardado
O General Golbery do Couto e Silva, ministro-chefe da Casa Civil (1974-1981); e o General Ernesto Geisel, Presidente da República (1974-1979)

O II PND enfrentou a crise do regime de acumulação fordista no mundo após o fim do padrão ouro-dólar em 1971 com a desvalorização unilateral do dólar realizada pelo presidente norte-americano Richard Nixon, que desestabilizou as taxas de câmbio internacionais; o choque do petróleo em 1973 realizado pelos países produtores, que inflacionou brutalmente os preços de insumos e combustíveis; e, por fim, o choque das taxas de juros levado a cabo pelo presidente do Federal Reserve System (FED), o banco central dos EUA, Paul Volcker, que levaria à crise das dívidas externas dos países subdesenvolvidos nos anos 1980. Ainda assim, diante do endividamento explosivo iniciado nos governos anteriores e a consequente hiperinflação gerada pela destruição da soberania monetária do Brasil, o governo Geisel logrou terminar o parque industrial brasileiro e consolidar o lugar do Brasil no mundo como nação emergente.

Entre suas principais realizações estão o início da construção da hidroelétrica de Itaipu em 1975 que viria a ser concluída em 1982; o Acordo Nuclear com a Alemanha com transferência de tecnologia para construção das usinas nucleares em Angra dos Reis, ainda que, no entanto, os EUA tenham impedido a transferência da tecnologia alemã para enriquecimento de urânio que, não obstante, o Brasil desenvolveu sozinho com sucesso; a criação de diversas estatais estratégicas como a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (DATAPREV), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), a Cobra – Computadores e Sistemas Brasileiros (atualmente BB Tecnologia e Serviços), a Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A. (NUCLEP); além do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia federal que viria ser base do Sistema Único de Saúde (SUS).

Além dos avanços na industrialização do Brasil, são fundamentais as realizações de Geisel nas relações internacionais seguindo a tradição brasileira desde o Barão do Rio Branco que consolidou as fronteiras nacionais pela diplomacia, passando por Oswaldo Aranha na criação da Organização das Nações Unidas (ONU), até a Política Externa Independente de San Tiago Dantas. Geisel rompeu o Acordo Militar do Brasil com os EUA adotando uma política externa terceiro-mundista focando no diálogo com países da América Latina, África e Ásia e afastando-se do alinhamento automático com os norte-americanos ao manter relações com os países do Bloco Soviético, reatar as relações diplomáticas com a República Popular da China e reconhecer imediatamente o governo socialista de Portugal, após a queda do regime fascista de António Salázar, bem como de Angola após a guerra revolucionária de independência colonial.

Mas evidentemente o feito mais importante do Presidente-General Geisel foi ter iniciado a Abertura Política e submetido o Partido Fardado da Linha-Dura à disciplina e à hierarquia do Estabelecimento Militar. Seu mandato começa com o famoso discurso da “abertura lenta, gradual e segura”, mas o processo de transição foi turbulento e cheio de idas e vindas. Os problemas econômicos herdados do governo anterior e agravados pela crise internacional, somados à pressão dos EUA e da burguesia dependente interna contra a política nacional-desenvolvimentista de Geisel, impuseram uma tolerância cada vez maior com a oposição na imprensa e no Congresso Nacional por meio do relaxamento da censura. A tensão aumentou entre o Estabelecimento Militar e o Partido Fardado diante das denúncias sobre a tortura nos porões da Ditadura, o que gerou movimentos contraditórios por parte do governo para reagir ao fogo cruzado tanto da oposição liberal-democrática como da Linha-Dura.

Nesse contexto confuso de transição, a Linha-Dura preparava a candidatura presidencial do então ministro do Exército, Silvio Frota, apoiado pelo General Jaime Portela de Melo, que havia sido ministro-chefe do Gabinete Militar (atual GSI) de Costa e Silva e da Junta Militar no auge do Partido Fardado no poder, tendo sido o principal articulador do golpe que barrou a ascensão do vice-presidente Pedro Aleixo, um civil eleito pelo Congresso, quando o presidente Costa e Silva foi afastado por invalidez após uma grave crise de isquemia em 1969.

Os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog em 1975 e do operário Manuel Fiel Filho em 1976 pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) fez com que Geisel demitisse o General Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, responsável pelo DOI-CODI e aliado do ministro Linha-Dura, Silvio Frota. Por outro lado, o aumento das denúncias internacionais sobre as violações de direitos humanos no Brasil e as manifestações da oposição nas ruas e no Congresso Nacional, motivaram o chamado “Pacote de Abril”, conjunto de leis outorgadas unilateralmente pelo “Constituinte do Alvorada” (referência ao Palácio da Alvorada, residência presidencial), que fechou o Congresso temporariamente e criou os “Senadores Biônicos”, ou seja, indicados pelo próprio presidente para garantir maioria no Legislativo.

General Silvio Frota do Partido Fardado ao Sindicato Fardado
O General Silvio Frota, ministro do Exército (1974-1977), representante da Linha Dura que tentou suceder o Presidente Ernesto Geisel e foi demitido.

No entanto, sob o controle dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a Abertura era irreversível. O sucessor escolhido pelo Estabelecimento Militar era o General João Baptista de Oliveira Figueiredo, que apesar de ter ocupado o Gabinete Militar no governo Médici, era ligado a Golbery desde o tempo em trabalharam juntos no Estado-Maior do Exército, e foi o chefe do SNI sob Geisel. Diante da movimentação do Partido Fardado “frotista”, Geisel interfere na Ordem do Dia de comemoração ao Dia do Soldado e exige aprovar o texto redigido por Frota como ministro do Exército em um ato simbólico de imposição da soberania do presidente sobre seu subordinado. Em outubro de 1977, Geisel finalmente demite Silvio Frota do comando do Exército e encerra a disputa pela sucessão.

O General Figueiredo assume a presidência em março de 1979 e promete reinstituir a democracia no Brasil, e em agosto do mesmo ano sanciona a Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita. Porém, apesar da vitória do Estabelecimento Militar de Geisel, Golbery e Figueiredo sobre Frota e Portela de Melo, o governo Figueiredo é marcado pelos últimos estertores do Partido Fardado que radicaliza a insubordinação por meio do terrorismo.

No início dos anos 1980, além da profunda crise econômica causada pela estagnação e o colapso da moeda com o esgotamento do fordismo dependente associado aos EUA, o Partido Fardado passou a cometer atentados à bomba a exemplo do artefato desativado no Hotel Everest onde estava hospedado Leonel Brizola que havia voltado do exílio após a anistia, e o mais famoso, o Atentado do Riocentro. No dia 30 de abril de 1981, às vésperas do Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador, um sargento e um capitão ligados ao DOI-CODI tentavam plantar três bombas no Centro de Convenções do Riocentro, onde 20 mil pessoas assistiam a um show de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elba Ramalho, Gonzaguinha, Alceu Valença e Gal Costa, entre outros artistas em oposição à Ditadura. Mas, ainda no estacionamento, uma das bombas explodiu literalmente no colo deles, matando o sargento Guilherme Ferreira do Rosário e ferindo o capitão Wilson Luís Chaves Machado. Diversos outros atentados à bomba foram realizados contra as organizações políticas que estavam reconstruindo o sistema partidário plural brasileiro, parlamentares civis, e órgãos da imprensa livre. O General-Presidente Figueiredo defendeu firmemente o processo de Abertura contra o terrorismo do Partido Fardado e declarou: “É pra abrir mesmo. Quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento!”.

O que setores da esquerda brasileira ainda não compreendem é justamente que a dialética permanente da luta contra o Partido Fardado dentro do próprio Regime Militar é que foi decisiva para o fim da Ditadura, além da crise do regime de acumulação fordista, enquanto a luta armada nas ruas nunca chegou nem perto de ameaçar o bloco no poder composto pelas Forças Armadas, a burguesia dependente e o imperialismo.

Após 21 anos de Ditadura Militar, a transição democrática no Brasil de fato é realizada de forma lenta, segura e gradual pelo Estabelecimento Militar Linha-Branda e Nacionalista liderado pelos Generais Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e João Figueiredo, e encerra o regime de exceção com anistia ampla geral e irrestrita, eleição indireta para Presidente da República e abre o caminho para a Assembleia Nacional Constituinte e as Eleições Diretas sem os riscos para a burguesia e o imperialismo como a volta do Trabalhismo ou do Comunismo como forças aspirantes à hegemonia. A transição golberiana cria o sistema partidário da Nova República com o retorno da hegemonia da oligarquia paulista derrotada em 1932, que é antitrabalhista e anticomunista, e culmina no revezamento do poder pelas duas pernas, direita e esquerda, do neoliberalismo sediado em São Paulo, o PSDB e o PT, os dois em aliança com o MDB.

Assim sendo, na Nova República, as Forças Armadas voltam a ser hegemonizadas firmemente pela ideologia do Estabelecimento Militar e a submissão à soberania da lei e da ordem do Poder Civil, inclusive negociando os problemas orçamentários corporativos por meio do diálogo institucional e transparente com Executivo por meio do ministério da Defesa e com o Legislativo pelas assessorias parlamentares.

Já o Partido Fardado Linha-Dura e Liberal é enterrado definitivamente e convertido em Sindicato Corporativista e Reacionário, cujo maior símbolo passa a ser o insubordinado capitão Jair Messias Bolsonaro, que em 1986 é preso por escrever um artigo contra a cúpula do Exército e em defesa do baixo oficialato: “O salário está baixo”. Em seguida, em 1987, a imprensa divulga o mapa de um plano de Bolsonaro para instalar bombas na Vila Militar da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em Resende e em outros quartéis no Rio de Janeiro para protestar contra o baixo valor dos soldos. O capitão indisciplinado foi condenado pelo Conselho de Justificação Militar (CJM) em 1988, mas conseguiu ser absolvido após recurso ao STM, apesar do laudo da Polícia do Exército (PE), confirmado pela Polícia Federal (PF), de que a caligrafia era dele mesmo, e em seguida se aposentou com 33 anos de idade.

Pois bem, este é o maior representante atual da ideologia de transformação da sociedade e defesa da corporação por meio da rebeldia do Partido Fardado. Mas com o fim da Guerra Fria e a consolidação das instituições de poder civis, inclusive com notório fortalecimento das corporações judiciais que passam a se arrogar elas o Poder Moderador que poderia tutelar os Poderes Eleitos, o Partido Fardado não tem mais razão de ser em termos de projeto para a nação e a sociedade. Pelo contrário, o Partido Fardado converteu-se integralmente em Sindicato Fardado, voltado exclusivamente às questões corporativas internas, e sem nenhum tipo de ambição ou reflexão relevante sobre o Brasil e o mundo como nos tempos do tenentismo ou da doutrina da segurança nacional.

Feita esta longa introdução histórico-conceitual, passemos ao debate contemporâneo sobre a relação das Forças Armadas com o Poder Civil.

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Desde a crise do governo da ex-guerrilheira de esquerda Dilma Rousseff, iniciada em junho de 2013, e a ascensão do capitão Jair Bolsonaro como líder de massas da direita, a sociedade brasileira foi arrastada de volta no tempo para a Guerra Fria. Os conservadores enxergam comunismo em todos os cantos, e os progressistas veem tentativas de golpe militar o tempo inteiro. Essa paranoia ideológica universal tornou-se o estado de espírito permanente dos atores políticos desde os extratos mais altos, passando pelas camadas médias, até as massas mobilizadas por seus líderes carismáticos de ambos os lados.

Os antecedentes dessa nostalgia ambidestra da Ditadura são marcados pela crise do regime de acumulação e do modo de regulação vigentes dos anos 1980 aos anos 2010. Ou seja, o marasmo econômico do pós-fordismo neoliberal, a unipolaridade geopolítica da hegemonia dos EUA na globalização, o imobilismo do sistema político brasileiro dominado pelo Centrão e a ascensão das corporações públicas civis com a Constituição de 1988.

Durante as décadas de 1990 e 2000, as Forças Armadas ficaram praticamente fora do debate público, com baixos orçamentos para investimentos estratégicos como a construção do submarino nuclear para proteger as costas brasileiras, ou o desenvolvimento de armas de dissuasão para garantir a soberania nacional em situações de tensionamento geopolítico-militar. Pelo contrário, apesar de qualquer retórica pomposa dos cerimoniais de Estado, a interação entre o alto escalão militar e os governos tucanos ou petistas tratou somente de salários, auxílios indenizatórios, pensões, aposentadorias, e outros tipos de demandas corporativas.

É nesse ambiente que ascende um capitão indisciplinado, e processado pelo Exército por planejar atentados à bomba, como líder sindical da base de baixa patente no meio militar.

As Jornadas de Junho de 2013 são o ponto de virada que retira a sociedade brasileira do imobilismo político e radicaliza as massas conservadoras sob a liderança de vanguardas reacionárias como Bolsonaro e os chefes da Lava Jato, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, na luta pelo poder, enquanto a classe média cosmopolita forja líderes como Guilherme Boulos, Sônia Guajajara, Djamilla Ribeiro e outras figuras ligadas à agenda identitária e ambiental do Partido Democrata norte-americano.

Pela esquerda, a hegemonia de Lula sobre todas essas lideranças emergentes é incontestável devido sua capacidade de comunicação com as massas e habilidade política de composição entre os setores mais radicais dos movimentos sociais, a classe média progressista nos costumes, a elite financeira e o agronegócio no Brasil profundo do interior que é representado difusamente no sistema partidário pelo Centrão. Mesmo nas corporações judiciais e nas altas cúpulas do Judiciário, Lula possui muito trânsito por meio de aliados como Flávio Dino, e outros interlocutores como o próprio ministro do STF, Ricardo Lewandowski.

Pela direita, ao contrário, há uma mudança brutal. O PSDB é dissolvido no sistema partidário, e a fração mais reacionária do espectro político conservador assume o liderança da mobilização de massas, e, portanto, eleitoral, ainda que não controle as burocracias partidárias. A aliança entre Bolsonaro, carismático dono de um caminhão de votos, e Valdemar da Costa Neto, habilidoso dono de máquina partidária, é a síntese histórica da direita brasileira na transição para um novo regime de acumulação e modo de regulação ainda em construção após a crise do pós-fordismo.

Neste novo cenário, qual o papel do generalato? Se o capitão indisciplinado e sindicalista, os dois maiores pecados possíveis para um militar, é o novo líder das massas e dos votos, como se dá sua relação com seus superiores hierárquicos no Exército, mas que passam a ser seus subordinados após a vitória eleitoral de 2018?

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Segundo os defensores da tese da “volta do Partido Fardado”, generais maquiavélicos usam Bolsonaro para que eles voltem ao poder por meio dos votos dele. Uma vez dentro da cúpula da máquina pública do Poder Executivo, o Partido Fardado praticaria uma guerra de posições gramsciana ocupando espaços por meio de avanços e recuos táticos, visando o objetivo estratégico de retomar o poder total no longo prazo para implementar o seu projeto de poder autoritário saudoso dos Anos de Chumbo quando conduziram os destinos da nação.

Essa tese seria supostamente confirmada pela nomeação de mais de 6 mil militares em cargos civis durante o governo Bolsonaro, mas principalmente em cargos estratégicos a exemplo da Vice-Presidência da República ocupada pelo General Hamilton Mourão, famoso por discursos paranoicos anticomunistas, antinacionalistas, inclusive contra o governo Geisel, e golpistas no Clube Militar. Além do general na linha de sucessão imediata do Presidente, estavam em posições centrais, o General Augusto Heleno, primeiro comandante das tropas da missão brasileira da ONU no Haiti e ajudante de ordens do General Silvio Frota nos anos 1970, como chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); os sucessivos ministros da Defesa militares, General Fernando Azevedo e Silva, General Walter Braga Netto, e o General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, bem como o General Luiz Eduardo Ramos que foi ministro-chefe da Casa Civil e Secretário-Geral da Presidência, ou o Almirante Bento Albuquerque que foi ministro de Minas e Energia. Além deles, a crise da pandemia de covid-19 expurgou todos os ministros da Saúde civis devido aos conflitos com a política negacionista de Bolsonaro, até a nomeação do incrivelmente incompetente, mas caninamente obediente, General Eduardo Pazuello.

Por fim, pairando por cima de todos eles estava o General Eduardo Villas Boas, considerado a maior eminência parda do suposto Partido Fardado atualmente, principalmente por ter sido o comandante do Exército durante o processo de chegada ao poder de todos eles por meio dos votos de Bolsonaro em 2018.

General Villas Boas e Bolsonaro do Partido Fardado ao Sindicato Fardado
General Villas Boas, comandante do Exército (2011-2015) e o Capitão Jair Bolsonaro, Presidente da República (2019-2022)

O General Villas Boas foi nomeado comandante do Exército por Dilma Rousseff em 2015, quebrando a tradição de indicação do mais antigo no Alto Comando, porque a presidente petista, e seu braço direito, Aloízio Mercadante, já o conheciam desde quando era assessor parlamentar do Exército perante o Congresso Nacional. Portanto, Villas Boas sempre foi visto como um homem de grande habilidade política para dialogar com os governos do PT sobre os interesses corporativos dos militares, e também era tido pelos petistas como uma voz de moderação contra as facções mais reacionárias e cada vez mais politizadas das Forças Armadas que se expressavam por meio do Clube Militar, o clube dos generais de pijama aposentados, local onde, por exemplo, o General Mourão, que viria a ser vice-presidente, fazia discursos abertamente golpistas.

A história mostrou que Villas Boas era de fato muito habilidoso, mas não para apaziguar os cães raivosos do Clube Militar e evitar a politização das Forças Armadas, pelo contrário, ele sim era muito capaz em enganar os petistas que o bajulavam, a exemplo do então ministro-chefe da Casa Civil nos piores momentos do governo Dilma, Aloízio Mercadante, que foi um dos responsáveis por sua nomeação.

Ao invés de manter distância das disputas políticas entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o General Villas Boas atuava não apenas pelos interesses corporativistas dos militares, mas pelo aumento da influência das Forças Armadas nos rumos políticos do país. Momento emblemático foi o famoso tuite do então comandante do Exército ameaçando veladamente o STF durante o julgamento que decidiria sobre a prisão de Lula nos processos da Lava-Jato.

Evidentemente um tuite não seria capaz de intimidar os poderosos ministros da mais alta cúpula do Judiciário brasileiro que vivia o auge de seu poder na história da República. Mas não era essa a função da mensagem pública de Villas Boas, escrita não apenas pelo comandante, mas a várias mãos dos diversos generais envolvidos na politização das Três Forças. A ameaça exigindo a prisão de Lula servia para marcar posição perante toda a sociedade de que, a partir dali, os militares fariam campanha contra a candidatura petista para a sucessão presidencial de 2018, pois era disso que se tratava a prisão do líder nas pesquisas eleitorais. Dito e feito. Lula foi preso, impedido de participar das eleições, e Bolsonaro foi eleito Presidente da República com o apoio emocionado do comandante do Exército que deveria ser uma instituição de Estado e não de governo.

Pois bem. Até aqui a sequência dos fatos narrados parece corroborar a volta do Partido Fardado ao poder. Mas ainda se trata de narrativa superficial.

É certo que Villas Boas, como personificação do sentimento corporativista e politizador das Forças Armadas, efetivamente articula um grupo de generais que desejam ocupar espaços no Poder Executivo. Também é certo que esse grupo de generais despreza Bolsonaro por sua origem sindical e insubordinada, e somente aceitam sua liderança devida ao fato de que é ele que detém a popularidade e os votos necessários para disputar o poder na democracia de massas irreversível no Brasil do século XXI.

Ninguém mais tem dúvidas de que simplesmente não é mais possível tomar o poder por meio de golpes militares como os ocorridos na América Latina ao longo do século XX, que tinham como projeto o alinhamento da região como zona exportadora e consumidora dependente ao capitalismo liberal-industrial vitorioso na Segunda Guerra Mundial. Não existem mais as condições históricas e ideológicas que permitiam uma aliança entre burguesias dependentes, imprensa tradicional, o imperialismo e as Forças Armadas. Hoje, as formas de dominação burguesa evoluíram para o fortalecimento de instituições não-eleitas civis como o Judiciário e o Ministério Público, o controle massivo de dados e informações por meio das novas tecnologias digitais, e imposições institucionais/econômicas/ambientais internacionais por meio de organismos multilaterais pós-Consenso de Washington.

Assim sendo, o único “projeto” possível de um fantasmagórico “Partido Fardado” sem apoio da burguesia, dos meios de comunicação, e dos órgãos de inteligência e diplomacia dos EUA, só pode ser cuidar dos próprios salários e aposentadorias, ainda que por meio da ameaça de uma fantasiosa volta a um passado enterrado pelo fim do fordismo, da União Soviética, e da luta armada.

Durante o século XX, nas revoluções de libertação nacional na periferia do capitalismo, o imperialismo apoiava as Forças Armadas para impedir a ascensão de nações rebeldes à hegemonia das potências ocidentais. Os militares, cuja própria razão de ser é a defesa do território e, portanto, da própria soberania nacional, tiveram sua tarefa fundante subvertida pelo espírito do tempo da Guerra Fria que dividiu o mundo entre “capitalismo e comunismo” ou entre “ocidente e oriente”, exigindo alinhamentos automáticos de um lado ou de outro. As Forças Armadas foram tomadas por um anticomunismo atávico que subjugou toda defesa da questão nacional ao interesse do imperialismo norte-americano.

Agora, o que imperialismo deseja aos antigos aliados militares durante a Guerra Fria é o seu rebaixamento a segundo plano em prol do fortalecimento de poderes civis de repressão e controle da sociedade; os juízes, procuradores, policiais e profissionais de tecnologia da informação; todos treinados no constitucionalismo que consolida a dominação da tecnocracia neoliberal contra a soberania do voto popular. Nesse novo estado de coisas, os militares de países subdesenvolvidos como o Brasil devem ser relegados a contingentes armados irrelevantes do ponto de vista da soberania nacional, e utilizados apenas como fantasmas de uma chantagem autoritária anacrônica contra qualquer projeto político rebelde à hegemonia neoliberal em crise. É exatamente isso que se tornaram as Forças Armadas brasileiras conforme a realidade dos fatos do governo Bolsonaro demonstraram.

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De fato, os generais liderados por Villas Boas tentaram tutelar Bolsonaro após sua vitória eleitoral, mas o intento do generalato de usar o capitão insubordinado para voltar ao poder fracassou miseravelmente.

Primeiro é preciso olhar para a questão do projeto econômico colocado em prática após a “volta” dos militares ao poder em 2018.

No Regime Militar, além do alinhamento geopolítico aos EUA, ainda que com certa autonomia como nas relações diplomáticas com países socialistas e em parcerias estratégicas como o programa nuclear importado da Alemanha, os militares basicamente mantiveram uma política econômica nacional-desenvolvimentista baseada em endividamento externo, investimento público e arrocho salarial. Era um projeto coerente, instruído pela doutrina de segurança nacional de Golbery do Couto e Silva, com o alinhamento ao imperialismo norte-americano, mas com interesses nacionais próprios possibilitados pelo regime de acumulação fordista.

A política econômica do governo Bolsonaro levada cabo pelo todo poderoso superministro da Economia, Paulo Guedes (treinado em Chicago e na Ditadura de Augusto Pinochet no Chile), que acumulava os Ministérios da Fazenda, Planejamento, Emprego e Previdência, não tinha absolutamente nada a ver com os militares. Pelo contrário, quando algum general do núcleo político do governo tentava se meter em assuntos econômicos, era humilhado publicamente por Paulo Guedes. Exemplo conhecido foi a tentativa de lançamento do projeto desenvolvimentista Mais Brasil, quando Guedes tripudiou de Braga Netto quando ele confundiu o Plano Marshall com o New Deal. Todas as iniciativas ou ideias econômicas advindas do núcleo militar do governo eram sumariamente descartadas.

Na diplomacia, a mesma coisa. Os militares brasileiros mantém relações institucionais sólidas com os militares dos países vizinhos, e também com os países mais importantes do mundo como EUA, China e Rússia. Desde a Ditadura Militar, mesmo no contexto da Guerra Fria, os militares tratam relações internacionais com profissionalismo e seriedade de uma instituição de Estado. Muito ao contrário de Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo, que geraram graves crises diplomáticas com a China e com a Venezuela. Neste último caso, os militares brasileiros na fronteira chegaram a se encontrar secretamente com militares venezuelanos para reforçar que não havia a menor possibilidade de ocorrerem atos hostis das Forças Armadas do Brasil contra a soberania da Venezuela.

Em termos de posições realmente estratégicas nas decisões nacionais, poderia-se citar o Almirante Bento Albuquerque da Marinha que foi ministro de Minas e Energia, cuja biografia ficará marcada pela vergonhosa privatização da Eletrobrás, a mando de Paulo Guedes. E ainda a nomeação do General Joaquim Luna e Silva como presidente da Petrobras, que durante o Regime Militar teve em sua presidência o General Ernesto Geisel que expandiu a empresa, ao contrário do governo Bolsonaro que fatiou a petroleira privatizando diversas partes importantes como suas refinarias e transportadoras, e praticando uma política de preços dos combustíveis totalmente antinacional baseada em lucros de especuladores estrangeiros.

Como se vê, o suposto Partido Fardado passou quatro anos no governo com Bolsonaro sem protagonizar nenhum aspecto relevante do exercício do poder de fato sobre os rumos do Estado nacional.

Além disso, é a própria relação com Bolsonaro que demonstra o fracasso dos generais próximos aos centros decisórios do poder. O capitão não é um ingênuo manipulável, pelo contrário, ele possui uma verdadeira organização político/familiar/empresarial mais parecida com uma família mafiosa do que com um partido militarizado. O chefe delega funções para os filhos e para os capo-regimes de alta confiança que nunca violariam a Omertà, o código de silêncio da máfia, como o policial militar Fabrício Queiróz e o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, que operavam as transações financeiras da família Bolsonaro. Portanto, o bolsonarismo como movimento de massas não estava à disposição do suposto Partido Fardado dos generais, e sim do líder populista e o seu próprio partido, a sua família e suas ramificações financeiras, inclusive nos laços com as milícias cariocas, reduto eleitoral dos Bolsonaros.

Na verdade, muito ao contrário de ser tutelado por eles, Bolsonaro é que queria ir à forra e submeter seus antigos superiores que o puniram no passado e agora deviam bater continência a ele como Comandante em Chefe das Forças Armadas. Bolsonaro é que pretendia, e possuía a força política para isso, submeter o Alto Comando ao seu projeto político pessoal/familiar/mafioso.

Tanto é assim que, em março de 2021, Bolsonaro entrou em conflito direto com seu próprio ministro da Defesa, o General Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes das Três Forças, Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Moretti Bermudez (Aeronáutica), e caíram os 4 de uma vez só. Esta foi a primeira vez desde 1985 que os comandantes das Três Forças Armadas deixaram o cargo ao mesmo tempo sem ser em período de troca de governo. Este é um dos eventos mais emblemáticos que demonstra o tamanho do delírio que é a tese da “volta do Partido Fardado”.

Na época, o então Capitão-Presidente exigia do Alto Comando o mesmo tipo de participação política do General Villas Boas quando como comandante do Exército, em 2018, se manifestou publicamente para pressionar o STF no julgamento sobre a prisão de Lula. Em 2021, Bolsonaro cobrou dos comandantes uma posição crítica à restauração dos direitos políticos de Lula que, a partir daquele momento, poderia disputar as eleições do ano seguinte contra ele. Além disso, Bolsonaro se irritava com a atuação das Forças Armadas na pandemia no apoio à vacinação e as medidas de distanciamento social, que o presidente não concordava. Ficou famosa uma foto do General Pujol recusando dar a mão para Bolsonaro enquanto oferecia o cotovelo seguindo os protocolos sanitários da Organização Mundial da Saúde (OMS) que o presidente se negava a respeitar.

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O Presidente da República Jair Bolsonaro (2019-2022) e o comandante do Exército Edson Pujol (2019-2021) antes de ser demitido

O ministro da Defesa e os comandantes das Três Forças caíram em março de 2021 justamente porque se recusaram a politizar e partidarizar as Forças Armadas, a despeito da autoridade do Presidente da República, e da vontade dos generais veteranos que o apoiavam na tentativa de tutelá-lo, como Villas Boas e Heleno. Após esse episódio, o General Braga Netto assume o Ministério da Defesa, e torna-se braço direito e eventualmente candidato a vice de Bolsonaro na eleição de 2022.

Aliás, é justamente na gestão da pandemia de Covid-19 que o tal “Partido Fardado”, entendido como um grupo de generais que buscam espaço na política eleitoral, assume algum protagonismo em uma política pública relevante no governo Bolsonaro, e é um desastre absoluto. Diante do conflito aberto entre o presidente com posições negacionistas e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que defendia seguir as recomendações da comunidade médica internacional, após um breve período do médico/lobista Nelson Teich, Bolsonaro nomeia o General Pazuello, supostamente um “especialista em logística”, para o ministério responsável por enfrentar a maior crise sanitária desde a gripe espanhola durante a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão. Não é preciso lembrar detalhadamente a catástrofe causada na saúde pública pela interferência da politização bolsonarista dos militares no governo.

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O que se extraí das evidências fáticas da participação das Forças Armadas na política nos últimos anos é a tentativa de alguns grupos corporativistas, inclusive concorrentes entre eles, de ocupar espaços nos Poderes Civis eleitos pelo sufrágio universal, mas não de substituí-los ou tutelá-los diretamente sem a mediação das demais instituições civis e dos calendários eleitorais consolidados no regime constitucional pós-redemocratização. A própria ausência de um projeto político-econômico de poder e da discussão de grandes temas por parte dos militares no debate público demonstram o papel subordinado das Forças Armadas no arranjo institucional dos centros decisórios do Brasil e sua relação com o mundo, inclusive com as potências imperialistas. Os militares atuais não discutem, como os do passado, se o país deve se relacionar mais com a China ou EUA, ter reforma agrária ou não, sindicatos fortes ou não, industrialização ou não, etc. Concretamente, a pauta única é o orçamento corporativo, e abstratamente, o debate militar é dominado ou por um moralismo difuso e hipócrita anticorrupção saudoso do udenismo liberal frotista, ou pela fumaça ideológica do bolsonarismo sobre “marxismo cultural”, “ideologia de gênero”, etc. Ou seja, trata-se de uma reciclagem da agenda da Guerra Fria para dividir o país. Não se discute a questão nacional e os interesses mais candentes do Estado perante um mundo altamente complexo na geopolítica e geoeconomia.

Por óbvio, não há inocentes do outro lado da cerca. A esquerda brasileira não foi capaz de acertar contas com o passado, portanto, deixou contaminar o respeito e reconhecimento das Forças Armadas como instituição de Estado para a soberania e a identidade nacional com sua agenda revanchista por meio de uma Comissão da Verdade destrambelhada e diversos outros conflitos concretamente inúteis com os militares somente para disseminar a desconfiança e paranoia mútuas. Algumas das pautas mais agressivas de setores sectários da esquerda contra as Forças Armadas são a intromissão nos currículos militares para impor a agenda identitária importada dos EUA ao invés de propor o aprofundamento na compreensão da questão nacional liberada da influência norte-americana oriunda de Fort Leavenworth, e também o revisionismo simbólico de tentar apagar a história dos militares brasileiros das ruas, praças e monumentos públicos Brasil afora.

No fundo, as duas pontas ideológicas do divisionismo do país se retrolimentam por meio de espantalhos artificiais que a esmagadora maioria do povo no Brasil profundo e real nunca nem ouviu falar. Mas são as vanguardas altamente mobilizadas que movimentam a política e levam o resto do país à reboque. É o que demonstram os fatos neste início do terceiro governo Lula em janeiro de 2023.

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Esse ambiente fértil para guerra híbrida explica algumas dimensões dos acontecimentos traumáticos da transição de governo de Bolsonaro para Lula no meio militar. As pautas diversionistas do bolsonarismo reinaram absolutas nos últimos anos não apenas nos quartéis, mas em volta deles, fisicamente simbolizadas pelos acampamentos de golpistas que não reconhecem o resultado das eleições nas áreas de segurança nacional adjacentes aos Comandos Militares. Portanto, Lula foi cauteloso em seus primeiros movimentos nessa área do governo e nomeou um político civil de bom trânsito com os militares, o ex-deputado e ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio, e também nomeou para o Comando do Exército, o General Júlio César de Arruda, utilizando o critério de antiguidade indicando boa vontade para com a autonomia da corporação. Não adiantou. Na primeira semana de governo, Lula enfrentou talvez uma das maiores crises militares da história recente do país.

No domingo do dia 8 de janeiro de 2023, milhares de militantes bolsonaristas transportados em centenas de ônibus financiados por empresários somaram-se ao grupo de golpistas acampados em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília e atacaram as sedes dos Três Poderes da República. Invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e depredaram os prédios praticamente inteiros. Destruíram obras de arte e diversos patrimônios históricos da nação brasileira. Só não conseguiram entrar na sala pessoal do Presidente da República porque era protegida por uma porta de ferro reforçada. Um verdadeiro ato de guerra contra todos os principais símbolos nacionais.

O Atentado Bolsonarista de 8 de Janeiro contra a Praça dos Três Poderes e suas consequências ainda precisam ser investigados e analisados em muitas dimensões por muito tempo, mas o principal fato político-institucional que emerge desse evento é a crise instalada entre a Presidência da República e as Forças Armadas. Nessa operação violenta existe o elemento de mobilização de massas, mas também de inteligência e sabotagem, bem como de decisão política na omissão da repressão. Assim, é necessário dizer categoricamente o óbvio. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o Comandante em Chefe das Forças Armadas, porém, ficou claro no fatídico dia 8, que muitos oficiais, inclusive do Alto Comando, não respeitam a autoridade do homem empossado no dia 1º de janeiro como Chefe de Estado.

De um lado, houve omissão dos militares não apenas durante a invasão Palácio do Planalto, do Congresso e do STF, mas principalmente na permissividade da utilização de áreas de segurança nacional no entorno de Quartéis-Generais em diversas cidades para acampamentos golpistas das chamadas “vivandeiras de quartel” no termo cunhado pelo Presidente-Marechal Castello Branco para designar os setores civis que demandavam atuação política das Forças Armadas. Os acampamentos tornaram-se terreno de agitação e conspiração, e foram tolerados pois estavam recheados de familiares e amigos de militares. Isso é o que motivou a insubordinação do então comandante do Exército, Julio César de Arruda, que bateu boca com o ministro da Justiça, Flávio Dino, e impediu o cumprimento ainda no dia 8 da ordem de prisão emitida pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, para todos os acampados na área militar. O acampamento somente foi desmontado e os militantes bolsonaristas presos na manhã seguinte, e suspeita-se que o Exército tenha permitido a fuga de familiares e organizadores de maior responsabilidade no atentado.

O fato fica ainda mais grave porque setores do governo acreditam que quem organizava o acampamento do Quartel-General de Brasília era a esposa do General Villas Boas. A senhora Maria Aparecida Villas Boas, a “Cida”, como é conhecida, chegou a desfilar no meio do acampamento em uma van com o marido. Ela sorria e apontava para o compartimento de trás do veículo adaptado para cadeirantes indicando a presença do General, que é tetraplégico, na manifestação golpista.

Após o acontecimento desruptivo, houve um movimento de união nacional inédito na história do Brasil. O presidente unificou em torno de si a solidariedade de absolutamente toda a alta cúpula do Poder Civil da República. Todos os governadores de Estado, bem como todas as lideranças do Congresso Nacional e do STF, reuniram-se em defesa da institucionalidade constitucional do país, e toda a sociedade civil organizada seguiu o gesto dos representantes do sistema político e jurídico. O bolsonarismo ficou completamente isolado e à mercê da força avassaladora do STF, na figura do ministro Alexandre de Moraes, para perseguir todos os envolvidos no Atentado de 8 de Janeiro.

Em meio à crise, as facções aproveitam para disputar espaços. Setores esquerdistas do PT pressionam pela queda de José Múcio do ministério da Defesa para ocupar mais cargos na divisão interna do partido no governo, o que estimulou a especulação de quem poderia assumir. Devido à sensibilidade da área, foram cogitados ex-ministros com experiência e boa relação com militares. Porém, diante da seriedade da crise, os ex-ministros Aldo Rebelo, Fernando Azevedo, Nelson Jobim e Raul Jungmann, reuniram-se com o líder do governo no Senado, o petista e também ex-ministro da Defesa, Jaques Wagner, para articular um apoio público ao ministro José Múcio. Além de demonstração de respeito ao atual ocupante do cargo, os ex-ministros mostraram-se preocupados com a desmoralização da própria instituição que não pode ser tratada como mero objeto de disputa partidária de espaços.

Até o momento, Múcio mantém-se no cargo e já organizou uma reunião entre os comandantes das Três Forças e o Presidente da República que abaixou a temperatura da crise e iniciou uma transição para aparar arestas e resolver problemas de confiança entre as instituições. Em seu discurso na reunião do dia 20 de janeiro, ou seja, 12 dias após a invasão da Praça dos Três Poderes, Lula foi firme ao exigir a punição dos militares envolvidos ou omissos nos atos de vandalismo, mas garantiu que, após isso, não haverá qualquer retaliação às Forças Armadas por parte do governo. Para demonstrar essa boa vontade de pacificação, Lula sinalizou que o governo irá buscar investimentos privados para os projetos militares que estão sem orçamento público.

Do lado dos militares, ainda no dia 18 de janeiro, o General Tomás Ribeiro Paiva, chefe do Comando Militar do Sudeste, discursou à sua tropa e mandou um recado contra o golpismo dos bolsonaristas e em defesa da legitimidade do governo eleito: “Alternância de poder é o voto, e quando a gente vota tem que respeitar o resultado das urnas.” No dia 21 de janeiro, dia seguinte à reunião com os comandantes, Lula demitiu o comandante do Exército, Julio César de Arruda, e nomeou o General Tomás Paiva para o Comando. Além da insubordinação em relação à desmobilização do acampamento de vivandeiras organizado pela esposa do General Villas Boas em Brasília, Lula também cobrou o General Arruda pelo cancelamento da nomeação para o 1º Batalhão de Ações de Comandos (BAC) do braço direito de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid que era ajudante de ordens do ex-presidente, o que foi negado pelo então comandante do Exército. O novo comandante já iniciou as tratativas para encaminhar as investigações e punições dos infratores do dia 8, e cancelou a nomeação do Coronel Cid, desanuviando o ambiente denso e iniciando a distensão entre o governo e as Forças Armadas.

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Na verdade, o que fica claro, é que desde o fim da Ditadura nunca ocorreu uma “politização” institucionalizada e generalizada das Forças Armadas comandadas por um tétrico e conspirador “Partido Fardado” com o projeto de marchar com tanques e coturnos sobre a capital com fuzis em riste para implantar um novo regime político e econômico. A politização atual nada mais é do que disputa eleitoral travada por corporações militares sindicalizadas, não só das Forças Armadas, mas das polícias em todos os estados, e que se espalham difusamente pelo espectro partidário conservador em busca de votos nos alojamentos dos quartéis, nas vilas militares, nos clubes de aposentados, com o financiamento de campanha de lúmpen-empresários reacionários, e a estrutura de cargos, verbas de gabinete e cartões corporativos.

Se no passado, o Partido Fardado tomou o poder para criar o Banco Central alinhado a política monetária dos EUA, intervir nos sindicatos e arrochar a política salarial da classe trabalhadora, mas também para terminar o parque industrial de segunda geração e para acelerar a acumulação do capital no contexto dos “milagres econômicos” da periferia do capitalismo, dessa fez, foi para levar o esquema de rachadinhas municipais e estaduais para o Palácio do Planalto, implementar o negacionismo sanitário que matou 600 mil brasileiros de “gripezinha”, e levar a população pobre de volta a níveis insuportáveis de miséria. Este é o legal do tal “Partido Fardado”, que tem nome e sobrenome: Eduardo Villas Boas, Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos, Eduardo Pazuello, entre outros generais, e diversos outros oficiais que aderiram a um movimento político que também tem nome e sobrenome chamado bolsonarismo, protagonizado por um líder populista muito carismático e desonesto chamado Jair Messias Bolsonaro.

Esse Partido Fardado, feito de homens concretos que apoiaram o governo federal de 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022, não pode ser confundindo com as instituições de Estado que participaram da Independência do Brasil, da Abolição da Escravidão, da Proclamação da República, da Revolução de 1930 que iniciou a industrialização do Brasil e a criação dos direitos sociais do povo brasileiro. O que resta realmente comprovado é que o Partido Fardado atualmente é um delírio, tanto da esquerda como da direita. Neste momento, o que realmente contamina a honra das Forças Armadas é o Sindicato Fardado.

Oliveiros Ferreira descreveu o trajeto de “Vida e Morte do Partido Fardado” desde o Império até o fim da Ditadura Militar por meio de seu brilhante ensaio histórico-sociológico. Mas como Hegel nos ensinou, a repetição da história sempre é uma farsa. Logo, a segunda tentativa de alguns setores corporativistas e reacionários de capturar as Forças Armadas novamente para ressuscitar um projeto político que divide o Brasil, como nos tempos da Guerra Fria, apenas para garantir sua agenda sindical, fracassou de forma tão vexaminosa, que o Partido Fardado não apenas não voltou, mas, assim como Quincas Berro D’água, morreu uma segunda vez, e sua história recente só poderá ser contada por meio de uma comédia parafraseada na obra de Jorge Amado, “A Morte e a Morte do Partido Fardado”.