Legalidade: Filme mostra como Brizola impediu um golpe mobilizando o povo

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Estreou nesta quinta-feira, 12, o filme Legalidade, sobre a campanha organizada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, em defesa da democracia após a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961.

Jânio, eleito pela UDN, renunciou desejando que o Congresso permitisse uma volta triunfal com poderes autoritários. Foi uma tentativa de golpe apostando no veto militar contra a posse do vice-presidente João Goulart, eleito pelo PTB, com mais votos do que o presidente. Jango era rejeitado pelos setores mais reacionários da sociedade brasileira e pelo governo dos EUA, por representar a volta do trabalhismo nacionalista e reformista de Getúlio Vargas.

Os militares e o Congresso, no entanto, aceitaram a renúncia do udenista. Os dias que se seguiram foram de sufocante tensão.  De um lado, militares e políticos golpistas contra a posse constitucional do vice eleito, que estava em viagem diplomática na China. De outro, o governador do Rio Grande do Sul, e o povo nas ruas de Porto Alegre.

É sobre esse conflito entre golpe e soberania popular que trata o filme Legalidade de Zeca Brito.

Imagens reais são intercaladas com a interpretação dramática de Leonardo Machado no papel de Leonel Brizola. O ator, tragicamente, sequer viu a estréia de sua atuação em homenagem ao líder trabalhista, tendo falecido pouco tempo depois das gravações. O sotaque gaúcho e cantado de Brizola parece propositalmente atenuado para tornar os discursos o mais claros possíveis para o grande público, o que gera certa frustração aos aficionados por vídeos do ex-governador no YouTube, tão acostumados com suas rompantes veementes e gestuais.

Além da dramatização fidedigna de eventos políticos, o filme conta uma história romântica ficcional entre uma jornalista-espiã e um guerrilheiro comunista brasileiro, treinado em Cuba e interlocutor do comandante Che Guevara. A bela e carismática atuação de Cléo Pires no papel de Cecilia, a jornalista enviada pelo Washington Post (e pela CIA) para entrevistar Brizola, adiciona relevância estética ao filme. Legalidade claramente referencia outras obras sobre a temática conflituosa do amor em tempos de Guerra Fria, como Topázio de 1969 do celebrado diretor Alfred Hitchcock, cujo conflito amoroso também envolve Cuba e as conspirações dos EUA contra a pequena e rebelde ilha caribenha.

Além disso, a trama ficcional não é gratuita e busca preencher os buracos secretos da história enterrados provavelmente em arquivos da CIA e na memória dos patriotas brasileiros da época. Uma dessas intersecções é a decisão de colocar João Goulart em um avião cheio de jornalistas do mundo inteiro para ir de Montevidéu à Porto Alegre, diante do temor de um avião apenas com a comitiva do vice-presidente ser derrubado pelos EUA.

Fatos econômicos e sociais importantes são lembrados, como a estatização realizada por Brizola da empresa norte-americana Golden Share que se recusava a fazer novos investimentos na produção de energia necessária ao estado, a construção de 6 mil escolas públicas, e até a reforma agrária feita pelo então governador. Mas o grande tema do filme é a capacidade de resistência do povo brasileiro, liderado por um líder corajoso, ousado e criativo.

Imediatamente após a renúncia de Jânio Quadros, o governador do Rio Grande do Sul oferece ajuda de forma republicana ao presidente udenista, mas a crise constitucional já havia eclodido. O Congresso rapidamente aceitou a renúncia e os militares dão declarações contra a posse do vice trabalhista. Leonel Brizola responde à escalada golpista com duro pronunciamento em defesa da democracia e do respeito à Constituição. O General José Machado Lopes, comandante do III Exército instalado em Porto Alegre, o maior contingente militar do Brasil, de início permanece inerte, aguardando o desenrolar da crise.

Os militares golpistas fecham as rádios que transmitem os pronunciamentos do governador, menos a Rádio Guaíba que se recusa a dar voz ao chefe do poder executivo do Rio Grande do Sul.

Brizola mobiliza as forças policiais estaduais e monta trincheiras no Palácio do Piratini. Sua primeira e mais importante ação é requisitar e levar o equipamento da Rádio Guaíba para o Palácio, montar transmissores por todo o estado e na medida do possível pelo resto do país. Estava montada a Rádio da Legalidade, para levar ao povo as mensagens de mobilização em defesa da democracia.

Ato contínuo, o líder gaúcho arma o povo com metralhadoras e revolveres obsoletos há muito tempo esquecidos nos porões do Palácio. A propaganda é essencial, a mobilização popular é moral antes de tornar-se bélica. Mas sem armas não é possível levar às últimas consequências a defesa da legalidade. Brizola avança para medidas mais drásticas, requisitando em consignação os estoques da fábrica de armamentos Taurus, e articula com outras forças políticas, inclusive guerrilheiros, uma efetiva guarda popular para resistir ao golpe inclusive no caso de uma guerra civil.

A população mobilizada em diversas organizações políticas, sociais e sindicais, realiza marchas em protesto contra o golpe, e cerca o Palácio do Piratini em apoio à Campanha da Legalidade. A força de Brizola é menos ancorada nas armas do que em sua interlocução direta com o povo, e na legitimidade de seu chamado em defesa do Brasil e da soberania popular.

Finalmente, o General Machado Lopes se dirigiu ao encontro do governador Brizola no Palácio do Piratini e declarou lealdade à Constituição reconhecendo a posse do vice-presidente João Goulart. As imagens dos dois na sacada saudando o povo são de tirar o fôlego. O povo ovacionando seus líderes, civil e militar, unidos em defesa da democracia.

Com o maior contingente do exército garantindo apoio à Campanha da Legalidade, os setores golpistas são obrigados a recuar. O Brigadeiro Aureliano Passos da Força Aérea havia recebido ordens dos golpistas para bombardear o Palácio do Piratini e matar Brizola, mas o plano foi sabotado pelos próprios operadores da Base Aérea de Canoa, que foi invadida pelo III Exército para destituir o brigadeiro golpista.

João Goulart é trazido de Montevidéu, voltando da China, e articula com Tancredo Neves um entendimento intermediário com o Congresso que aprova o parlamentarismo, contra a vontade de Brizola que queria marchar para Brasília para garantir a posse do presidente legítimo com plenos poderes. Em 1962, o governador e seu ímpeto mobilizador novamente serão cruciais no plebiscito para restabelecer a constitucionalidade plena do presidencialismo escolhido pela soberania popular.

Assim como em 1954, Getúlio Vargas mobilizou a população e sacrificou a própria vida pelo Brasil evitando o golpe, em 1961, Brizola organizou os brasileiros em defesa da legalidade, e a soberania popular se impôs, ainda que dilacerada pelo “grande acordo nacional” do parlamentarismo de ocasião.

Por fim, em 1964, as forças golpistas derrotadas em 1932, 1954 e 1961, são vitoriosas e impõe uma ditadura militar de 21 anos. Não obstante as políticas econômicas contraditórias que dão seguimento ao desenvolvimento de alguns importantes setores industriais, ainda que com profunda concentração de renda e explosivo endividamento externo, a principal tarefa do regime militar foi afastar o povo da política e do poder sob os mais paranoicos pretextos impostos pela Guerra Fria.

A força da relação direta entre um líder popular e a população é o que mais temem as oligarquias econômicas herdeiras da colonização e seus lacaios corporativos. A sinergia entre povo e líder é o que se chama de populismo, conceito que passou a ser maldito pelos intelectuais sicofantas para estigmatizar a participação dos pobres e trabalhadores na política como demagogia a ser combatida. Contra a suposta “manipulação” da vontade popular, “autoridades” universitárias e os donos oligopolistas dos meios de comunicação defendem mecanismos de representação mediados pelo dinheiro e por corporações não-eleitas, como militares ou juízes e procuradores. Para “proteger” o povo dos “populistas”, é preciso afastar o povo do poder e entregá-lo aos “especialistas”.

A derrota do populismo é a vitória das oligarquias associadas aos interesses estrangeiros. A participação do povo na política, a criação dos direitos sociais, e a inédita e meteórica industrialização de um país continental historicamente subjugado como colônia de exploração, só foi possível através de grandes líderes carismáticos e corajosos. A força dos líderes ditos populistas advém justamente de sua legitimidade como organizadores do interesse dos pobres e trabalhadores, e não de algum tipo de manipulação mesquinha como supõe a elite universitária forjada pelas oligarquias. Somente corporações não-eleitas são capazes de realizar até o fim os projetos concentradores de renda e de desindustrialização de um país cujo povo, através de seus líderes, decidiu que seu destino é romper o sentido da colonização e ser uma potência que busca melhorar a condição de vida de sua população.

O filme Legalidade é uma peça crucial na batalha por corações e mentes do Brasil em defesa de seus líderes, forjados por um povo que busca superar a dependência de poderes externos às suas fronteiras. Não há nação e nem povo nacional sem a história e a memória de seus heróis. Brizola vai voltar.