O PSOL volta para o PT, pois depende de Lula para sobreviver

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Ao que tudo indica, o PSOL vai aderir ao lulismo nessas eleições. O discurso oficial, representado pelo grupo que dirige o partido, é que essa união é “necessária para derrotar Bolsonaro”. Isso foi enunciado por Ivan Valente, representante desse grupo, em recente entrevista para o Uol.

De fato, a necessidade de derrotar Bolsonaro é evidente (deveria ser desde 2018, aliás), mas esse discurso é simplesmente uma forma de justificar um caminho que estava traçado há muito tempo, desde o tempo em que eu ainda estava no PSOL e lutava para construir o partido, mesmo na oposição a esquerda do PT.

Na minha vida política, estive no PSOL por um tempo. Já participei de Congressos, coordenei campanha majoritária, presidi o partido por um tempo e ajudei na construção aqui na minha cidade.

Mesmo com inúmeras dificuldades, conseguimos pegar um partido com poucos recursos e organização e transformá-lo em um partido organizado, vivo e atuante. Por isso, falo com tranquilidade que esse discurso de “união para derrotar Bolsonaro” é apenas uma justificativa para acomodar a transformação do partido nos últimos anos. Como explicar esse processo de transformação do partido?

Primeiro, precisamos entender como o PSOL é dividido. Quando nasce, o partido é uma confluência de dois setores: ex-petistas (os “radicais do PT”) desiludidos com o programa econômico de direita aplicado pelo petismo que foram expulsos por votar contra esse programa ou que saíram por conta própria e outras forças políticas socialistas oriundas de partidos como PCB e PSTU. O partido também recebeu figuras de outras agremiações de esquerda, mas em menor fluxo. Como resultado disso, o partido emergiu com dois grandes blocos, um reformista e um revolucionário, e um bloco menor, intermediário, que transitava entre os dois.

O primeiro bloco é o da atual direção, composto por neolulistas ou petistas críticos da excessiva conciliação do petismo. É o grupo onde estão Ivan Valente, Juliano Medeiros, Edmilson Rodrigues (atual prefeito de Belém). Era o bloco de Randolfe Rodrigues quando estava no partido. Assim que Boulos entra no partido, se junta a esse bloco com seu grupo, que posteriormente vira uma corrente interna, a Revolução Cidadã. Esse bloco tem um entendimento mais pragmático da política, com mais flexibilidade em termos de alianças.

O segundo bloco, chamado de “Bloco de Esquerda”, é composto por correntes mais socialistas/revolucionárias e outros grupos trotskistas. A corrente da Luciana Genro é a maior força desse bloco. Como exemplo dessa força, podemos observar a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados (antes da saída anunciada de David Miranda), onde esse bloco tem 5 dos 9 deputados do partido. Esse segundo bloco é muito mais crítico ao lulismo e muito mais rígido em relação à política de alianças. Até minha saída do partido, o Bloco de Esquerda dirigia importantes estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Em uma posição intermediária, ainda tinha um bloco menor do Freixo e Chico Alencar que era constituído por correntes menores e figuras mais independentes do partido. Era um bloco que defendia uma posição mais independente do PT, afirmando, inclusive, que o partido não poderia se constituir como “costela crítica do lulismo”. Por conta dessa posição intermediária, esse bloco oscilava entre um apoio aos reformistas ou revolucionários de acordo com cada realidade.

Desde o início da década passada, a ala neolulista assumiu a direção e não saiu mais. Nos congressos do partido, a disputa ficava quase meio a meio por conta da força de cada bloco. Com a entrada do Boulos, essa hegemonia do bloco dominante ficou ainda mais forte. A única crítica mais substancial que faziam ao lulismo era em relação às alianças e um ou outro aspecto de programático. Por ser um grupo mais flexível em termos ideológicos, tinha uma postura mais pragmática na disputa eleitoral, se aproximando ou se afastando do petismo de acordo com as possibilidades eleitorais. É justamente aí que começam os problemas, especialmente o pragmatismo disfarçado de ideológico.

A ala neolulista nunca apoiou diretamente o PT por saber que isso arranharia a identidade socialista do PSOL, mas nunca teve coragem de bater de frente com o lulismo em uma construção independente em termos de estratégia e programa. Isso explode a partir de 2016. Enquanto o PT era governo, era fácil fazer uma oposição pela esquerda, já que o partido só precisava se contrapor aos desvios à direita dos governos petistas e marcar posição ideológica. Assim que Temer assume, as diferenças entre PT e a ala que dirige o PSOL praticamente desaparecem. Por conta dessa situação e vendo uma oportunidade de ganhar eleitoralmente com isso, a direção do PSOL decide se aproximar de vez do PT para tentar aumentar bancada e ganhar mais votos. Isso a custo de uma perda de identidade cada vez mais evidente. Já que os dois partidos estavam juntos na oposição a Temer, era mais fácil penetrar no meio lulista e ganhar cadeiras importantes no legislativo com esses votos. O problema é que esse pragmatismo deixou o PSOL refém.

Por ter dependido dos votos lulistas para ampliar a bancada, o PSOL passa a ficar dependente desses votos cada vez mais. Os dois exemplos mais marcantes disso envolvem as duas candidaturas de Boulos, em 2018 e 2020. Em 2018, seu primeiro ato na TV foi dar boa noite a Lula, em um claro aceno ao público petista. Por toda a campanha, Boulos evitou fazer críticas mais diretas ao PT, preservando pontes com os lulistas em troca de dividendos eleitorais. Em 2020, Boulos, provavelmente em consequência dessa postura, vai para o segundo turno das eleições municipais em São Paulo muito por conta do voto petista. A votação do segundo turno foi simbólica para essa aproximação: Boulos perde a eleição tendo praticamente o mesmo número de votos que Haddad no segundo turno da eleição presidencial e vencendo em praticamente as mesmas seções onde o candidato petista venceu em 2018.

Por conta desse cálculo eleitoral, o apoio ao lulismo agora é o caminho natural de uma decisão desenhada lá atrás, não uma mera imposição da conjuntura. Os setores mais revolucionários, críticos mais contundentes do lulismo e que defendem a candidatura do Glauber, não decidem mais nada dentro do PSOL. A capitulação ao PT já está sacramentada e, cedo ou tarde, a extinção do PSOL e volta ao PT. Sendo bem honesto, o melhor para o PSOL é voltar para o PT. Se for para seguir a linha política do petismo, é preferível voltar às origens e disputar o poder dentro do PT e não em uma organização pretensamente independente. A falta de um caminho independente coloca a direção do PSOL a serviço da narrativa e da estratégia do lulismo. Por um mero cálculo eleitoral, a direção do PSOL aceita isso e não tem como mais voltar. Romper com o lulismo agora é perder os lucros eleitorais dessa aproximação.

O que o PSOL deveria ter feito? Tinha saída? Sim, mas isso envolvia uma construção muito mais forte e independente. A Frente Povo Sem Medo podia ser o embrião disso, mas foi capturada pelo lulismo. Um polo independente de esquerda radical era necessário, mas não existe nem mais o embrião disso, já que ele foi engolido pelo lulismo com a justificativa de combater o bolsonarismo. A direção do PSOL nega esse processo e justifica sua posição falando que pretende disputar o programa do Lula à esquerda, mas a verdade é que a forma como o partido se entregou ao lulismo desde 2016 não permite essa disputa. Se abandonar Lula agora, perde os dividendos eleitorais que ganharam com isso.

O que sobra agora? A esquerda radical perde força e representação enquanto entrega toda a sua energia para mais um acordo com as elites financeiras desse país, dessa vez com a “nobre necessidade” de derrotar Bolsonaro, como se apenas isso fosse o problema. Falar que aceita Alckmin de vice desde que o programa seja de esquerda é, ao mesmo tempo, uma ilusão e uma justificação para algo que contraria a origem pretensamente socialista do partido. É uma ilusão, já que o PSOL não tem força para pautar uma guinada à esquerda no programa de Lula e uma justificação, pois serve mais como uma tentativa de explicar, para si mesmo, a contradição em subir no palanque daquele que, até ontem, era “fascista” e um dos “cinquenta tons de Temer” da campanha de 2018.

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