A Guerra da Ucrânia e as sanções: o que a Rússia ‘isolada’ deverá fazer

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Nas últimas semanas, a mídia do chamado “Ocidente” tem afirmado que um verdadeiro “apocalipse” se abaterá sobre a Rússia a partir das sanções que lhe vem sendo impostas pelos Estados Unidos e seus aliados/satélites como a Grã-Bretanha, a União Europeia, a Suíça e o Japão, entre outros. De acordo com essa narrativa, em decorrência da sua invasão “ilegal” e “injustificada” da Ucrânia, em questão de dias a Rússia foi “isolada” do resto do mundo. Logo, estaria condenada a viver exclusivamente dos seus próprios recursos, sofrendo uma perda substancial e inevitável na sua riqueza e no seu poder, assim como nos padrões de vida da sua população.

Como de costume, porém, a realidade não é exatamente essa e pode mesmo estar bem longe disso. O primeiro ponto a observarmos é que sanções não constituem qualquer novidade para a Rússia, que já sofre com elas pelo menos desde 2014, quando anexou a Crimeia. Até a manhã do dia 15 de março de 2022, 5934 sanções haviam sido aplicadas contra o Estado, empresas e indivíduos russos, das quais “apenas” 2343 desde a invasão da Ucrânia em fevereiro.

Portanto, mais sanções vem sendo aplicadas desde 2014 do que as que foram anunciadas nas últimas semanas. Sem dúvidas, elas impuseram prejuízos à Rússia, mas não provocaram nada próximo de um “colapso”. De acordo com o Banco Mundial, o PIB russo em valores constantes cresceu 0,7% em 2014 e caiu quase 2% em 2015, mas recuperou as perdas em 2017 e expandiu nos dois anos seguintes até voltar a cair 2,9% em 2020, em função da pandemia. Já em valores nominais, houve uma queda acentuada: de quase 2,3 trilhões de dólares em 2013 para 1,277 trilhão em 2016. Desde então, no seu melhor ano, alcançou 1,687 trilhão em 2019. Mas essa contração é, essencialmente, efeito da desvalorização do rublo frente ao dólar nos últimos anos, não se devendo a nenhum encolhimento da produção física do país.

Por outro lado, as sanções impuseram grande redução nos volumes do comércio exterior russo, mas também uma clara reorientação. Em 2013, a Rússia exportou 527 bilhões de dólares em bens e importou 314 bilhões, obtendo um expressivo saldo positivo de 213 bilhões. Esses números despencaram para 343 bilhões em exportações e 185 bilhões em importações em 2015; e 301 bilhões em exportações e 207 bilhões em importações em 2016. Desde então, teve início uma recuperação e em 2019, a Rússia exportou 426 bilhões de dólares e importou 247 bilhões.

Portanto, em todo esse período e apesar das sanções, a Rússia manteve grandes saldos positivos na sua balança comercial. Além disso, discriminando os dados de 2019, podemos compreender melhor a estrutura desse comércio. Em matérias-primas, os russos exportaram naquele ano 164,8 bilhões de dólares e importaram apenas 19,5; em bens intermediários, respectivamente, 88 e 42 bilhões; em bens de consumo, 97 e 84 bilhões; e em bens de capital, 20 e 96 bilhões. Logo, apenas no setor de bens de capital, o “calcanhar de Aquiles” da sua estrutura produtiva, a Rússia se mostra dependente do comércio exterior para se abastecer. Tradicionalmente, os russos adquiriam esses bens da Alemanha, sua principal parceira comercial na Europa cuja indústria de máquinas e equipamentos é altamente sofisticada e competitiva. Com as sanções, as importações russas de bens alemães caíram de 50 para 25 bilhões de dólares entre 2012 e 2015 e, desde então, nunca se reaproximaram daquela marca.

Por outro lado, as importações de produtos chineses pela Rússia, também majoritariamente bens de capital, caíram de quase 55 bilhões de dólares em 2014 para 35 bilhões em 2015, mas se recuperaram e chegaram a quase 70 bilhões em 2021. Ou seja, a China ocupou o espaço deixado pela Alemanha nesse setor crucial para o aparelhamento produtivo russo. Já quanto aos bens necessários para a subsistência, como alimentos; e ao funcionamento básico da sociedade, como energia, combustíveis e minérios, não há indícios de que tenha ocorrido qualquer comprometimento significativo do abastecimento. A Rússia possui um território colossal, dotado de enorme estoque de recursos naturais e é consideravelmente autossuficiente para os seus atuais padrões de vida. Além do mais, os russos estão acostumados a viver dos seus próprios meios: durante décadas a fio, foi praticamente o que fez a União Soviética, o que não a impediu de se tornar a segunda potência mundial.

Por outro lado, não há dúvidas de que, ao menos em tese, as sanções mais recentes – prometendo “desconectar” o sistema financeiro russo do internacional são muito mais contundentes do que as anteriores. Assim, o que ocorreu desde 2014 pode não servir como parâmetro adequado para prospectar os próximos tempos. O problema, então, tem de ser investigado de forma mais detalhada.

Em primeiro lugar, dada a relativa autossuficiência da Rússia e a sua posição de grande exportadora de bens primários – energia, minérios e grãos –, outros países, consumidores e dependentes desses recursos estratégicos russos, terão muito mais a perder com a ruptura total das relações com a Rússia do que o contrário. Conforme já tratamos, esse é, sem dúvidas, o caso da Alemanha. Os alemães não demorarão a sofrer grandes prejuízos com as sanções e, possivelmente, a começar a demonstrar a sua insatisfação com elas.

Além disso, é preciso avaliar com seriedade o que exatamente representa esse suposto “isolamento” da Rússia. China e Índia, para citarmos os dois casos de maior relevância, não adotaram até o momento quaisquer sanções contra os russos nem fizeram qualquer menção a fazê-lo, apesar das ameaças dos Estados Unidos. Chineses e indianos representam, juntos, cerca de 36% da população mundial e apresentaram as maiores taxas de crescimento dos seus produtos nacionais nas últimas três ou quatro décadas. Que tipo de situação de “isolamento” pressupõe manter relações normais, ou próximas disso, com os dois países mais populosos e de maior potencial de consumo do planeta?

Todavia, a lista dos países que, até o momento, optou por ignorar as sanções “ocidentais” vai muito além. Tampouco tivemos registros de adesão significativa em regiões de grande importância estratégica como a Ásia Central, o Sudeste Asiático, o Oriente Médio e a África. A Indonésia, por exemplo, outro país dentre os mais populosos do mundo e uma potência produtiva e comercial em ascensão, rejeitou as sanções categoricamente. A África do Sul, tal qual outros 33 países africanos, se absteve de condenar a Rússia na ONU e não se manifestou quanto às sanções. Surpreendentemente, até mesmo no “quintal” dos Estados Unidos, México e Brasil – apesar do submisso Bolsonaro – não se comprometeram com o seu cumprimento.

Portanto, o mínimo que podemos dizer é que não há até aqui qualquer consenso “global” quanto às sanções, pois além dos muitos interesses divergentes, pairam também muitas dúvidas quanto à sua viabilidade e efetividade. Exemplo sintomático dessas dificuldades é o setor energético, justamente a principal fonte russa de divisas estrangeiras. Os Estados Unidos sancionaram o petróleo e o gás da Rússia. Porém, não foram seguidos pelos europeus, que se limitaram a impor restrições de transações às empresas energéticas russas. Em particular, alemães e húngaros foram taxativos na sua recusa em sancioná-las, alegando não estarem dispostos a “pagar os custos” dessa guerra. Os japoneses também decidiram não sancionar os recursos energéticos russos, dizendo-se incapazes de substituí-los no curto prazo. Ou seja, apesar de todo o alarde midiático, o complexo energético da Rússia, vital para as suas condições financeiras, só foi sancionado por um país que concorre internacionalmente com ele, não por aqueles que dele se abastecem; e permanece em plena atividade exportadora, muito embora haja dúvidas quanto a como os russos receberão os pagamentos devidos.

Em suma, podemos dizer que até aqui, um grande número de países não se comprometeu a romper, de forma integral ou mesmo parcial, as suas relações com a Rússia. Logo, se a Rússia está sendo “isolada”, em sentido estrito isso não parecer ir além dos Estados Unidos e algumas das suas dependências como a Grã-Bretanha, o Canadá e a Austrália. Todos esses são países muito ricos e importantes, sem dúvidas, mas passam longe de representarem um isolamento global e integral da Rússia. O que parece estar acontecendo, então, é a consolidação de um grande “bloco eurasiano” que se estende da Europa Central até o Extremo Oriente e o sul da Ásia e que permanecerá mais ou menos aberto às transações comerciais e financeiras com os russos, lhes oferecendo possibilidades de escoamento dos seus produtos e de abastecimento das suas (limitadas) necessidades.

Dito isso, passemos ao terceiro ponto. Apesar dos dados apresentados, seria prova de grande ingenuidade crermos que as sanções não causarão impactos e dificuldades significativas para a Rússia. Sem dúvidas, diversas cadeias de produção que abastecem os russos foram ou serão rompidas em breve. Nesse sentido, a questão-chave para a estabilidade do país nos próximos anos será, justamente, como assegurar a continuidade do seu abastecimento. A Rússia será capaz de se abastecer sem transacionar com os países que a sancionam? Continuará capaz de produzir, alimentar e empregar a sua população, fornecer os recursos materiais necessários para a sustentar a sua qualidade de vida?

Um texto que recebi por e-mail há poucos dias explicita as formas como a Rússia deverá enfrentar essas questões. Intitulado “Sanções e Soberania”, tem a sua autoria atribuída a Sergey Glazyev. Membro da Academia Russa de Ciências, Glazyev foi assessor presidencial de Vladimir Putin de 2012 a 2019 e, desde então, é ministro para integração e macroeconomia da União Econômica Eurasiática, órgão que além da Rússia reúne outras ex-repúblicas soviéticas como Cazaquistão, Belarus e Armênia. Glazyev foi considerado um dos “artífices” da anexação da Crimeia em 2014, razão pela qual é alvo de sanções dos Estados Unidos desde 2014 e, possivelmente, de novas sanções impostas em 2022, pelo menos, pela Grã-Bretanha e pela Austrália.

Vale ressaltar que tentei encontrar o texto original na internet, mas não tive sucesso. Em todo caso, a julgar pelo seu conteúdo, ele é digno de crédito e de nota. Segundo Glazyev, o conjunto de sanções adotado contra a Rússia em 2014 “não teve impacto perceptível” no país, afirmação no mínimo discutível. Porém, ele prossegue, as medidas de retaliação tomadas pelo governo russo contra os sancionadores incentivaram a produção local de certos bens, tornando a Rússia, por exemplo, quase autossuficiente em aves e carnes. Além disso, as sanções incentivaram as empresas russas a abandonarem o uso do dólar e dos bancos dos Estados Unidos “em favor de moedas nacionais e bancos de países parceiros”. Presume-se que seja uma referência, principalmente, à China e ao renminbi.

Por outro lado, segundo ele, as sanções reorientaram as relações exteriores da Rússia. A participação da União Europeia no comércio da União Eurasiática caiu de 46,2% em 2015 para 36,7% em 2020. Com o aumento dos custos da energia e a perda das exportações para a Rússia, o bloco teria tido prejuízos de 250 bilhões de dólares. Enquanto isso, a participação dos países da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (que inclui China, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos, Canadá e Austrália, entre outros) subiu de 29,6 para 36,4%; e a dos países da Organização para Cooperação de Xangai (que inclui a China e a Índia) de 16,3 para 24,1%. Ao mesmo tempo, os negócios russos com os Estados Unidos encolheram 18,1%, alcançando apenas 23,9 bilhões.

Assim, “o principal resultado das sanções […] foi uma mudança na estrutura geográfica das relações econômicas externas russas em favor da China, a expansão da cooperação que compensa totalmente a redução das relações comerciais e econômicas com a UE”. Não obstante:

“Outro resultado importante das sanções norte-americanas foi a queda da participação do dólar nos pagamentos internacionais. Para a Rússia, como para outros países que sofreram sanções dos EUA, o dólar se tornou uma moeda tóxica. Ao rastrear todas as transações em dólares, as autoridades punitivas nos Estados Unidos podem bloquear pagamentos, congelar ou até confiscar ativos a qualquer momento. Durante 8 anos após a introdução das sanções, a participação do dólar nos acordos internacionais diminuiu 13,5 pontos percentuais (de 60,2% em 2014 para 46,7% em 2020). As sanções tornaram-se um poderoso incentivo para mudar para pagamentos em moedas nacionais e desenvolver sistemas nacionais de pagamentos. Assim, no comércio mútuo dos estados membros da [União Econômica Eurasiática] a participação do dólar diminuiu mais de 6 pontos percentuais (de 26,3% em 2014 para 20,0% no final de 2020). Medidas, no entanto, tomadas pela administração do Banco Central – hoje a Rússia tem seu próprio sistema de transmissão de mensagens eletrônicas entre bancos – o Sistema de Transmissão de Mensagens Financeiras (SPFS) do Banco da Rússia, bem como seu próprio sistema de pagamento com cartão bancário Mir, que é interfaceado com o sistema chinês Union Pay e pode ser usado para pagamentos e transferências internacionais. Ambos estão abertos a parceiros estrangeiros e já são amplamente utilizados não apenas em transações domésticas, mas também internacionais. A desativação do SWIFT não é mais considerada uma ameaça em grande escala – ela beneficiará o desenvolvimento de nossos sistemas de informações financeiras e de pagamento.”

Assim, as sanções também contribuíram para “desdolarizar” as relações exteriores russas. Porém, também a de outros países que se veem como alvos em potencial das sanções dos Estados Unidos e que passaram a evitar o dólar e o seu sistema financeiro com o objetivo de reduzir a sua exposição e a sua vulnerabilidade às ações estadunidenses. Além disso, também levou os russos a construírem – associados à China, outro país que vem engendrando uma série de esforços para “escapar” do dólar  – novos sistemas de transações financeiras internacionais, não dominados pelos Estados Unidos e seus aliados. Ou seja, na visão de Glazyev, as sanções deram início a um processo de corrosão da hegemonia internacional do dólar e da centralidade do sistema financeiro dominado pelo “Ocidente”, incentivando a ascensão dos seus rivais.

Onde a Rússia foi pega “desprevenida” pelas sanções, segundo ele, foi na administração da sua moeda. Isso porque, em função das crenças e práticas “neoliberais” vigentes no banco central russo, a determinação da sua taxa de câmbio foi deixada a cargo do dito “mercado”, isto é, das iniciativas privadas. Para Glazyev:

“Somente pessoas muito ingênuas podem acreditar na formação de uma taxa de câmbio de equilíbrio do rublo no modo de flutuação livre. A autoexclusão do Banco da Rússia de regular a taxa de câmbio do rublo significa que os especuladores internacionais de moeda estão fazendo isso. À medida que o rublo, que se tornou uma das moedas mais voláteis do mundo, com uma oferta 3 vezes maior em reservas cambiais, está oscilando, os especuladores internacionais estão obtendo lucros multibilionários em dólares, enquanto os russos estão vendo suas economias e rendas de rublo se depreciarem com os aumentos da inflação. Ao mesmo tempo, o clima de investimento deteriora-se irremediavelmente – a instabilidade da taxa de câmbio do rublo gera incerteza nos principais parâmetros dos projetos de investimento que usam equipamentos importados e estão focados na exportação de produtos. Assim, os danos causados pelas sanções financeiras dos EUA estão inextricavelmente ligados à política monetária ideal do Banco da Rússia. Sua essência se resume a uma vinculação estrita da emissão do rublo às receitas de exportação e da taxa de câmbio do rublo ao dólar. De fato, cria-se uma escassez artificial de dinheiro na economia, e a política rígida do Banco Central leva a um aumento no custo dos empréstimos, o que mata a atividade empresarial e dificulta o desenvolvimento da infraestrutura no país.”

Essa política, segundo ele, abriu um “flanco” que pôde ser explorado para retaliar a Rússia através de uma saída maciça de capitais para o exterior, provocando uma desvalorização profunda do rublo frente ao dólar – ou seja, a corrosão do poder de comando internacional da moeda russa. Para Glazyev, a maior parte das perdas com as sanções impostas desde 2014 deveu-se às políticas monetárias que permitiram ao rublo flutuar, não ao impacto das sanções em si. Ou seja, embora o abastecimento da Rússia não tenha sido comprometido, a sua moeda foi minada, comprometendo as suas condições financeiras e o seu poder. Assim, urge corrigir essa vulnerabilidade retomando agora o controle nacional da moeda russa, dissociando a sua administração dos fluxos – manipulados e, agora, interrompidos – de moedas estrangeiras:

Se o Banco Central cumprisse seu dever constitucional de garantir a estabilidade do rublo – e tem todas as oportunidades para fazê-lo devido ao excesso de 3 vezes das reservas cambiais da base monetária – então as sanções financeiras seriam inofensivas para nós. Elas poderiam até ser revertidas, como em outros setores da economia, em benefício do setor bancário, se o Banco Central substituísse os empréstimos sacados pelos parceiros ocidentais por suas próprias ferramentas especiais de refinanciamento. Isso aumentaria a capacidade do sistema bancário e de crédito russo em mais de 10 trilhões de rublos e compensaria totalmente a saída de financiamento de investimentos estrangeiros, evitando uma queda no investimento e na atividade econômica sem consequências inflacionárias.

Além disso, Glazyev afirmou que se com as novas sanções os títulos da dívida pública da Rússia no exterior forem banidos, as autoridades deverão encontrar no próprio país oportunidades para investir os seus excedentes monetários; e economizarão “bilhões de dólares” ao deixarem de remunerar os compradores estrangeiros desses títulos. Por outro lado, se as empresas russas tiverem cortado o seu acesso aos ativos denominados em dólares, seu risco de inadimplência recairá sobre os seus credores, os próprios bancos europeus e estadunidenses. Já a ameaça de confisco de ativos de propriedade russa no exterior, privados ou governamentais, serve como um incentivo para a sua repatriação, ampliando o estoque monetário russo. Se aqueles forem de fato confiscados, o governo russo pode responder suspendendo o serviço das suas dívidas com credores ocidentais e nacionalizando os ativos ocidentais em território russo, segundo ele, “de alguma forma ‘compensando’ a alienação dos ativos russos no exterior” e produzindo “perdas das partes […] aproximadamente iguais”.

Por fim, Glazyev conclui:

“Decorre do exposto que são necessárias medidas eficazes para descentralizar eficazmente a economia, bem como para alinhar a política do Banco da Rússia com as suas responsabilidades constitucionais. As medidas para apertar a regulação cambial a fim de impedir a exportação de capital e expandir os empréstimos direcionados a empresas que precisam de financiamento de investimentos e capital de giro também não serão prejudicadas. É aconselhável introduzir a tributação da especulação cambial e das transações em dólares e euros no mercado interno. Precisamos de investimentos sérios em P&D [Pesquisa e Desenvolvimento – nota dos tradutores] para acelerar o desenvolvimento de nossa própria base tecnológica nas áreas afetadas pelas sanções — em primeiro lugar, a indústria de defesa, energia, transporte e comunicações. Precisamos concluir a desdolarização de nossas reservas cambiais, substituindo o dólar, euro e libra com ouro. No contexto atual do crescimento explosivo esperado no preço do ouro, sua exportação em massa para o exterior é semelhante a alta traição e é hora de o regulador pará-la.

[…]

Precisamos introduzir um rublo digital o mais rápido possível, que possa ser usado para operações de pagamento e liquidação transfronteiriças, contornando o sistema bancário que está sujeito à pressão das sanções. Devemos nos apressar com a criação de nosso próprio espaço de troca e mecanismos de precificação em rublos para as matérias-primas produzidas em nosso país em excesso. Convide parceiros na Ásia para introduzir uma moeda global de pagamento e liquidação com base no índice de moedas nacionais e commodities negociadas em bolsa.”

Há alguns exageros e simplificações no texto de Glazyev. Porém, em resumo, ele indica as iniciativas que a Rússia vem tomando desde 2014 e os caminhos que deverá seguir a partir das novas sanções. Podemos sintetizá-los em alguns pontos principais:

  • Investir no aumento da sua autossuficiência produtiva, principalmente em recursos estratégicos como alimentos, garantindo o abastecimento pelos seus próprios meios;
  • Encontrar, nos países que não aderirem às sanções, novas fontes de abastecimento das suas necessidades de importação em substituição às perdidas;
  • Pagar pelas suas importações em outras moedas que não o dólar, prescindindo do uso dessa moeda para se abastecer;
  • Adotar meios de pagamentos transfronteiriços alternativos ao sistema financeiro internacional controlado pelos EUA e seus aliados como o SPFS e o CIPS chinês. Por exemplo, uma possibilidade é acelerar o desenvolvimento do rublo digital e torna-lo interoperável com o renminbi digital;
  • Finalmente, retomar o controle integral do rublo e restabelecer seu poder de comando internacional, isto é, taxas de câmbio favoráveis em relação às demais moedas, assim tornando a moeda russa atraente para outros países e possibilitando a sua adoção nas suas relações internacionais.

Em rigor, algumas dessas medidas já foram adotadas como a limitação dos saques e transferências em moeda estrangeira, a proibição de exportação de equipamentos e recursos naturais considerados estratégicos e a nacionalização de empresas estrangeiras. As sações do “Ocidente” estão empurrando a Rússia na direção da autossuficiência e da concentração dos seus interesses e das suas relações no espaço eurasiano. É claro, tudo isso vem exingindo e continuará exigindo a cooperação dos demais países, o atendimento dos seus interesses. Quem deverá se beneficiar disso, acima de tudo, é a China, a quem caberá cada vez mais absorver as exportações de matérias-primas da Rússia e abastecê-la de bens de capital. Apesar das suas divergências históricas e de interesses geopolíticos até hoje não solucionadas, russos e chineses estão estreitando cada vez mais os seus laços e organizando uma complementaridade produtiva significativa, assim como um espaço eurasiano cada vez mais integrado.

Em suma, já resta claro que a Rússia não está, absolutamente, “isolada” como dizem; e nem carente de opções para se abastecer, muito pelo contrário. Se tiver êxito nas suas iniciativas, sairá fortalecida no longo prazo. E se assim for, não será pela primeira vez.