A ‘bomba dólar’ contra a Rússia será acionada; e agora?

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Por Daniel S. Kosinski e Fernando Silva Azevedo – Faz apenas três dias que perguntamos se a Rússia não era “grande demais” para ser atacada com a “bomba dólar”, a arma monetária de uso exclusivo dos Estados Unidos por eles empregada para expulsar seus inimigos – reais ou imaginários, governamentais ou não governamentais – do sistema financeiro internacional. Concluímos, então, o nosso texto da seguinte forma: “a Rússia é muito mais importante para o sistema internacional do que o Irã e mantém relações comerciais e financeiras muito mais intensas com o Ocidente – principalmente com a Alemanha, a principal potência da União Europeia. Tudo indica que não há como excluir de imediato a Rússia do sistema sem provocar danos significativos ao próprio Ocidente, por exemplo, causando uma explosão nos preços globais dos recursos energéticos”.

Tudo indica que, muito antes do que imaginávamos, teremos a oportunidade de testar a procedência do nosso vaticínio. Afinal, ontem, 28 de fevereiro de 2022, o governo dos Estados Unidos e algumas altas autoridades europeias anunciaram: o Banco Central da Rússia terá o seu acesso ao sistema SWIFT cortado. Trata-se da medida derradeira no que diz respeito às sanções financeiras contra a Rússia, pois virtualmente retira da própria autoridade monetária a capacidade de operar com o mundo exterior, ou pelo menos com as mais de 11 mil instituições financeiras, públicas e privadas, que regularmente utilizam aquele mecanismo.

Na prática, conforme dissemos, a adoção dessa medida significará a exclusão da Rússia do sistema financeiro internacional. Essa foi a medida adotada pelo Tesouro dos Estados Unidos contra o Irã alguns anos atrás, em seguida às desconexões de vários dos seus principais bancos comerciais. Somada às medidas anteriores, causou imensos prejuízos materiais aos iranianos, muito embora, ao que tudo indica, sem chegar a ameaçar de morte o regime dos aiatolás. Além disso, as autoridades ocidentais anunciaram também o “congelamento” (confisco) imediato dos ativos do BC russo localizados em instituições financeiras dos EUA e da Europa. Segundo estimativas, isso representará pouco mais da metade dos 630 bilhões de dólares em reservas acumuladas pela autoridade monetária russa nos últimos anos. Não há como negarmos: tudo isso representará, sem quaisquer dúvidas, um abalo muito significativo às condições financeiras da Rússia.

Antes mesmo do anúncio dessas medidas, o rublo sofreu uma desvalorização impactante. Na última sexta-feira, perdeu 25% do seu poder de comando frente ao dólar; em fevereiro, acumulou perdas de 38%. Ontem, dia 28 de fevereiro, as autoridades russas congelaram o funcionamento da Bolsa de Moscou – e provavelmente farão o mesmo nos próximos dias -, depois da queda de 33% também na última sexta-feira. Esses dados representam uma saída em massa de capitais da Rússia. Em resposta, o banco central do país anunciou um aumento imediato das taxas de juros para 9,5 para 20% e instituiu controles de capitais, bloqueando remessas para o exterior e limitando saques, visando impedir sangria ainda maior. “As condições externas para a economia russa mudaram drasticamente”, disse o banco em comunicado. “Isso é necessário para apoiar a estabilidade financeira e de preços e proteger as economias dos cidadãos da depreciação”, acrescentou.

Com efeito, tudo isso aponta para as primeiras duras consequências das sanções anunciadas pelos países ocidentais nos últimos dias. Mas será o suficiente para demover Putin dos seus planos? Em que medida essas decisões poderão, efetivamente, comprometer a estabilidade da Rússia e do seu governo no curto, no médio e no longo prazos, caso se mantenham vigentes até lá?

Claramente, o objetivo dessas iniciativas é comprometer as condições de vida no interior da própria Rússia ao eliminar as suas conexões com o mundo exterior. Soma-se a elas a interrupção, anunciada por 36 países (até o fim da noite de ontem, horário do Brasil), de quaisquer voos de e para a Rússia, além dos executados por companhias aéreas russas. Em suma, trata-se de alijar o país da “comunidade internacional”: privar os russos de viagens, compras, vendas, enfim, de manter relações com o exterior. Sem dúvidas, todas essas medidas provocarão diversas rupturas dentro da Rússia. As mais prováveis são desarticulação de cadeias de produção e distribuição, com consequentemente comprometimento do abastecimento e escalada inflacionária. Com isso, os ocidentais esperam causar prejuízos generalizados e deteriorar a vida no país a ponto de mobilizar a sua população – e principalmente as suas elites, os seus “oligarcas” – contra Putin, desestabilizando o seu governo de dentro para fora. Mas afinal, conseguirão o que pretendem?

A questão não é passível de resposta nesse momento. Porém, ao menos algumas questões cruciais têm que ser avaliadas. Supondo que os ocidentais realmente cumpram tudo o que anunciaram, em primeiro lugar, quais condições terá a Rússia de garantir a continuidade e a estabilidade do seu abastecimento daqui pra frente? O país possui dimensões verdadeiramente continentais e enorme abundância de recursos naturais. Em energia, elemento absolutamente crucial para o funcionamento e a segurança das sociedades industriais contemporâneas, os russos são autossuficientes, situando-se entre os principais produtores e exportadores mundiais de petróleo e gás natural. Não carecerão, portanto, de combustíveis para o seu consumo doméstico. Quanto aos alimentos, outro recurso estratégico indispensável e incontornável, a situação já não é tão confortável. A Rússia produz muitos grãos e está entre os principais exportadores mundiais de trigo, cevada e milho. Todavia, precisa importar diversos outros gêneros, como frutas e vegetais frescos, para garantir uma dieta balanceada à sua população.

Por outro lado, a Rússia possui um parque expressivo na indústria pesada, de máquinas e equipamentos, embora em geral seus produtos não se caracterizem por elevada sofisticação, mas pelos preços mais baixos que os ocidentais. Já em outros domínios, a indústria russa é sofrível: sua produção de bens de consumo é reduzida e de qualidade em geral considerada baixa, dependendo das compras no exterior. O mesmo ocorre, por exemplo, na indústria automobilística.

Assim, para que o padrão de vida no país não decline a olhos vistos, fontes alternativas de todos esses produtos terão que ser encontradas. A única possibilidade real, nesse caso, parece ser a China, que possui parque manufatureiro muito mais diversificado e, em setores de ponta, mais avançado que os russos. O quanto a China se comprometerá em garantir o abastecimento de tudo aquilo que a Rússia não produz e não conseguirá mais obter no Ocidente, será crucial para a viabilidade do país. Da mesma forma será o quanto a China se disponibilizará para adquirir os produtos, como os energéticos, que os russos não conseguirem mais vender para o Ocidente. A China poderá comercializar com a Rússia sem passar pelo SWIFT utilizando o seu próprio sistema, o CIPS. A China também poderá, em breve, começar a usar o renmimbi digital, criado, entre outras razões, com o fim de servir como alternativa ao SWIFT em caso de sanções dos Estados Unidos. Outra possibilidade, levantada pela atual presidente do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiullina, é a utilização do SPFS, o equivalente russo do SWIFT. Os bancos centrais da China, Índia, Irã, Alemanha e Suíça, além de outros 18 países, já estão conectados ao SPFS. Se aceiterão utilizá-lo é outra história; não deverá ser o caso, pelo menos, dos alemães e dos suíços.

De qualquer forma, ter a China na sua retaguarda será crucial para Putin. Até o momento, tudo indica que os chineses fornecerão essa retarguarda. Há poucas semanas, Putin e Xi Jinping anunciaram uma “aliança sem limites”, provavelmente uma das garantias que levaram o russo a decidir pela invasão da Ucrânia. A China possui complementaridade produtiva e comercial com a Rússia que lhe é favorável, exportando manufaturados e importando matérias-primas de que é carente e necessita urgentemente, como as energéticas. A China, como a Rússia, também está sob cerco permanente e crescente do Ocidente, isto é, dos Estados Unidos. Ameaças americanas de também excluir do SWIFT quem transacionar com autoridades, empresas e indivíduos russos têm chances reduzidas de serem implementadas no caso dos chineses, hoje inteiramente integrados – para não dizermos, centrais – nas cadeias de comércio e produção globais. Os chineses provavelmente “pagarão para ver” tais ameaças, embora, como é do seu feitio, sem alardear o que estão fazendo. Para os Estados Unidos, poderá ainda restar uma alternativa conveniente: manter as sanções mais duras possíveis contra os russos ao mesmo tempo em que fingem não ver os chineses os ajudando.

Em suma, os chineses parecem ter ótimos motivos para solidificar a sua aliança eurasiana com a Rússia. Para furar o bloqueio ocidental ao seu abastecimento, talvez a Rússia possa contar ainda com outra grande potência, a Índia, que até o momento não condenou a invasão da Ucrânia, não se alinhou com o Ocidente e indica desejar manter posição independente, equidistante, no conflito.

Vimos até aqui o “lado russo” dessa equação. Mas há o outro lado. As repercussões de uma expulsão da Rússia do SWIFT serão generalizadas no próprio Ocidente. A Rússia é – ou pelo era, até há poucos dias – um país altamente integrado, comercial e financeiramente, com o Ocidente. No caso, principalmente com a Europa e, ainda mais especialmente, com a Alemanha, a “comandante-em-chefe” do euro e grande parceira comercial e de investimentos da Rússia.

Bem, em primeiro lugar, a não ser que algo em sentido contrário seja arbitrado e acertado com os russos, seus credores ocidentais não receberão os pagamentos devidos. Quem, no Ocidente, tiver vendido produtos ou serviços para a Rússia e ainda não recebeu por eles, provavelmente ficará sem ver esse dinheiro. Quem, no Ocidente, investiu dinheiro na Rússia e de lá ainda não retirou seus fundos e lucros, provavelmente ficará sem recuperá-los. Quem, no Ocidente, tiver comprado títulos da dívida pública russa, sofrerá um calote. Como reagirão esses agentes, cujos interesses serão lesados, diante dos seus governos?

Além disso, espera-se séria desestabilização no comércio internacional de uma gama de produtos estratégicos como petróleo, gás natural, commodities agrícolas como grãos e até fertilizantes, dos quais a Rússia está entre os maiores produtores e exportadores mundiais (a propósito, é a maior fornecedora deles para o agronegócio brasileiro; portanto, indiretamente, fundamental para a nossa atual balança comercial, primário-exportadora). Logo, a guerra da Ucrânia e a eliminação das transações financeiras internacionais da Rússia deverão impactar severamente os preços da energia, dos combustíveis e dos alimentos em todo o mundo, num momento no qual o Ocidente, em função da pandemia, já vem convivendo com abastecimento irregular de uma série de produtos e índices de inflação recordes em décadas.

Portanto, os prejuízos da expulsão da Rússia do SWIFT serão gerais – não apenas para a Rússia, o objeto da ação, mas para todo o mundo. Estarão os ocidentais dispostos a bancar esses prejuízos? Até que ponto? Terão os governos europeus apoio irrestrito das suas burguesias, como a alemã, com grandes negócios e interesses na Rússia? Terão as autoridades dos Estados Unidos, país bem menos envolvido comercial e financeiriamente com a Rússia, apoio indefinido dos governos europeus para levar adiante essas sanções, indefinidamente? Por outro lado, essas sanções conseguirão os seus objetivos? Se não conseguiram derrubar o regime iraniano, porque conseguiriam derrubar Putin, comandante (até hoje) inconteste da imensa Rússia, que dirá em situação de aliança “sem limites” e complementaridade com a também imensa China?

Em suma, nesse momento, o que podemos afirmar é que desconectar o Irã do sistema financeiro internacional é uma coisa; desconectar a Rússia, será outra. Nesse caso, a arma monetária dos Estados Unidos poderá ser desestabilizadora, mas para todos os lados em disputa. Terá a “bomba dólar”, afinal, a sua eficácia contestada? Seu emprego contra os russos levará à aceleração dos planos chineses, russos e de outras potências “contra-hegemônicas” para lançar as suas moedas digitais governamentais, teoricamente capazes de contornar o sistema SWIFT? Estará o mundo prestes a se dividir novamente em dois blocos antagônicos?

Mais do que nunca – e repetindo o que dissemos há poucos dias -, os próximos serão tempos realmente imprevisíveis.

Por Daniel S. Kosinski e Fernando Silva Azevedo