A guerra da Ucrânia e o renascimento geopolítico da Alemanha

guerra da ucrânia Olaf Scholz e Volodimir Zelenski
Sven Hoppe/Pool/Reuters
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Desde a sua derrota avassaladora na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha tem exercido uma soberania limitada e se resignado a desempenhar um papel subordinado, inferior ao das principais potências, na geopolítica global.

Praticamente desmilitarizada e reduzida a um protetorado pelos Estados Unidos, a Alemanha no pós-guerra tem usado a sua moeda – o outro meio preferencial, além das armas, de exercício dos poderes executivos – como principal instrumento de soberania e projeção de poder internacional. Foi através do Deutsche Mark, instituído ainda sob a ocupação aliada em 1948 e reputado como uma das moedas mais estáveis do mundo, que entre as décadas de 1960 e 1980 os alemães (ocidentais) começaram a impor os seus desígnios sobre os seus vizinhos, subordinando inclusive grandes potências militares e nucleares como a França e a Grã-Bretanha. Foi através dele, também, que conseguiram minar a legitimidade da Alemanha Oriental, promovendo – sem disparar um único tiro – a sua anexação monetária em antecipação à política e alcançando a reunificação do seu país.

Com a criação do euro no Tratado de Maastricht, em 1992, os alemães afinal consagraram o seu “paradigma monetário” na Europa. Ainda antes da sua assinatura, assim considerou, sem meias palavras, o então ministro das finanças Theodor Waigel:

Estamos trazendo o Deutsche Mark para a Europa… o tratado sobre a União Econômica e Monetária, acordado depois de negociações longas e intensas, carrega a marca alemã. A nossa política de estabilidade se tornou o Leitmotif para a futura ordem monetária europeia.

Dessa forma, em que pese a sua representação como a “moeda comum” europeia, o euro é, factualmente, uma moeda alemã no que diz respeito aos seus objetivos, instituições e métodos de administração. Não por acaso, durante a chamada “crise do euro” da década passada, sociólogos e cientistas políticos alemães como Ulrich Beck e Erhard Crome apontaram, com receios, o surgimento de uma “Europa alemã” e como o país havia se tornado uma espécie de “potência imperial”, “hegemônica”, na Europa, emitindo comandos cada vez mais explícitos e invasivos para os governos dos países em crise, como Grécia e Portugal.

Em rigor, isso significa que, por meios monetários, os alemães conseguiram um grau de domínio sobre a Europa que fracassaram em obter duas vezes pelas armas. A Alemanha tornou-se assim uma comandante “desarmada” da Europa, “resignada” a obter riqueza, prosperidade e estabilidade, sem mexer no seu status militar. Como consequência, possui forças armadas que, embora modernas, são bastante modestas, muito limitadas em comparação às suas capacidades produtivas, financeiras e tecnológicas. De acordo com os dados do Global Firepower 2022, a Alemanha é apenas a décima sexta potência militar global, bastante atrás da França (7ª), Grã-Bretanha (8ª) e Itália (11ª). Está atrás, também, de países bem mais pobres como a Turquia (13ª) e o Brasil (10ª).

Em suma, comparada às suas potências em outras áreas, a Alemanha é atualmente um “anão militar”. Tal qual no final de 1945, um protetorado militar dos Estados Unidos, que lá mantem entre 30 e 40 mil militares em caráter permanente. Enquanto presidiu esse país, Donald Trump fez duras críticas aos alemães, afirmando que gastavam muito aquém dos 2% do PIB em defesa recomendados pela OTAN e que não pagavam pela proteção que lhes era fornecida. De fato, a Alemanha tradicionalmente tem gasto pouco mais da metade disso, entre 1,1 e 1,4%, e projetava chegar aos 2% apenas em 2031. Essa política lhe tem sido conveniente, pois permite aos alemães priorizar outros gastos e “voar abaixo dos radares” dos seus vizinhos europeus, que suspeitariam de uma Alemanha militarmente poderosa.

Pois bem, tudo isso parece estar com seus dias contados a partir da guerra da Ucrânia. No último dia 27 de fevereiro, em discurso no Parlamento, o chanceler Olaf Scholz anunciou um investimento extra de 100 bilhões de euros para modernizar as Forças Armadas alemãs, além de se comprometer com gastos militares anuais superiores a 2% do PIB. Isso colocará a Alemanha, facilmente, entre os maiores orçamentos militares do mundo. Ou seja, o novo governo “progressista” do Partido Social-Democrata, contrariando sete décadas de orientação na política externa, decidiu buscar a recomposição do poderio bélico alemão. Porém, Scholz e a sua ministra das relações exteriores, a “verde” Annalena Baerbock, têm simplesmente se limitado a condenar os russos pelo que consideram uma agressão, sem atribuir à política ocidental qualquer responsabilidade pela crise. Embora desejosos de reduzir a vulnerabilidade militar da Alemanha, não indicaram até o momento qualquer desejo de sair debaixo do “guarda-chuva” militar dos Estados Unidos, a OTAN.

Outra perspectiva sobre a guerra, muito mais contundente, vem sendo apresentada do outro lado do espectro político por membros do Alternativ für Deutschland (AfD), hoje o principal partido alemão de (extrema-)direita e a quinta maior força parlamentar, com 82 deputados num universo de 736.

Um vídeo que teve ampla circulação nas redes sociais nos últimos dias mostra Alice Weidel, uma das principais expoentes do partido, fazendo uma análise cujos principais pontos são: 1) foi um “erro fatal” fazer “promessas impossíveis” à Ucrânia, como a sua adesão à União Europeia e à OTAN; 2) essa política levou à Ucrânia a uma “confrontação perigosa” com a Rússia, que já havia explicitado diversas vezes nos últimos anos que não aceitaria a cooptação da sua vizinha; 3) o “Ocidente” deveria ter seguido as recomendações de Henry Kissinger em artigo de 2014. A Europa deveria ter trabalhado por uma Ucrânia militarmente neutra, que servisse como uma “ponte” entre leste e oeste; 4) em vez disso, o “Ocidente” menosprezou a Rússia e procurou humilhá-la; enfrentando a questão com uma mentalidade ultrapassada, oriunda da Guerra Fria; 5) a invasão da Ucrânia pela Rússia é um equívoco; porém, a Alemanha só pode ameaçar os russos “em vão”, pois não tem meios reais para isso; 6) as sanções não impedirão a continuidade da guerra e ainda prejudicarão a Alemanha mais do que a própria Rússia, uma vez que ao abandonar a energia nuclear, a Alemanha construiu para si uma “dependência fatal” do gás russo; 7) para compensar o corte desse gás – se puder fazê-lo -, a Alemanha pagará preços “astronômicos”; 8) a Alemanha permanecerá no mesmo continente que a Rússia depois da guerra – ao contrário dos Estados Unidos -, o que sugere que deve procurar manter boas relações com ela; 9) não se deve perder a oportunidade para criar uma “arquitetura de segurança europeia” que não esteja baseada numa visão de rivalidade entre leste e oeste; e 10) a Alemanha deve desempenhar papel “mediador” nesse processo e, para isso, deve “se tornar um país soberano novamente”.

Outro deputado do mesmo partido, que não fui capaz de identificar, em linhas gerais criticou a política de avanço da OTAN na direção da Rússia, ignorando todas as advertências feitas por Putin nos últimos anos; e afirmou que essa política “jogou” a Rússia “no colo” da China, contribuindo para fortalecer a posição desse país e, ao mesmo tempo, enfraquecer a do “Ocidente”.

Vemos aqui duas mensagens mais ou menos claras. A primeira, a condenação à política de expansão da OTAN que acuou a Rússia e produziu o atual impasse. Portanto, uma rejeição explícita da política externa dos Estados Unidos, que é quem manda na organização. Os discursos indicam a percepção de parte expressiva da opinião pública alemã de que os estadunidenses manobram as relações internacionais de acordo com os seus interesses e envolvem a Europa numa crise que afeta muito mais os interesses europeus e alemães do que os seus próprios. Os parlamentares da AfD parecem desejar desvencilhar a Alemanha da política externa dos Estados Unidos, objetivo exposto com clareza na sugestão de Weidel de construção de um aparato europeu de segurança que não se oponha, por princípios, à Rússia. Ou seja, uma organização militar que, ao contrário da OTAN, não esteja sob o controle dos Estados Unidos e dos seus objetivos antirussos.

A segunda mensagem é explicitada por Weidel na reivindicação da recuperação da soberania plena da Alemanha, o que evidentemente pressupõe o aumento do seu poderio militar. A Alemanha não tem meios reais para “ameaçar” a Rússia porque não possui força para isso; a Alemanha só poderá assumir a responsabilidade de “mediar” a construção de uma nova “arquitetura de segurança europeia” se dispor de poder e autonomia no campo militar. Neste caso, a ideia já não é mais permanecer no sistema euro-atlântico de defesa, mas se retirar dele em prol da constituição de um exclusivamente europeu, fora da influência “perturbadora” dos Estados Unidos. Há uma reivindicação muito mais profunda, de retomada da soberania plena da Alemanha, construindo as suas relações internacionais livre dos constrangimentos impostos pela política externa estadunidense, no máximo em associação com os seus parceiros europeus. Ou seja, uma Alemanha que não fique a reboque das ações e dos interesses de países localizados no outro lado do mundo.

Ainda estamos por ver quais efeitos essa guerra e as suas consequências, incluindo o prometido isolamento da Rússia do sistema financeiro internacional, produzirão sobre a vida dos alemães comuns. Mas é provável que sejam bastante significativos. Além das inúmeras perturbações no comércio internacional, como a volatilidade dos preços de recursos estratégicos que precisa importar, são profundos os laços, construídos desde o fim da União Soviética, entre a Alemanha e a Rússia. De saída, podemos citar a questão energética. A Alemanha importou, em 2021, cerca de 1/3 do gás que consome da Rússia, essencial para o aquecimento residencial e para uso industrial. Além disso, também importou dos russos 34% do petróleo e 53% do carvão utilizados naquele mesmo ano. São percentuais muito elevados e insubstituíveis no curto prazo. Altas nos preços e escassez desses recursos impactarão todas as cadeias de produção e abastecimento, inevitavelmente produzindo inflação num país, por razões históricas, altamente hostil ao fenômeno.

Além da dependência energética, há um enorme estoque de investimentos alemães na Rússia, cerca de 25 bilhões de euros. Em torno de 3.650 empresas alemãs operavam, até há pouco, na Rússia; em 2019, elas empregavam 277 mil pessoas. O comércio alemão com a Rússia também é significativo. As exportações são um poderoso motor da riqueza alemã, correspondendo a quase metade do seu PIB. A Alemanha exportou 27 bilhões de dólares para a Rússia em 2020, principalmente bens de capital, veículos e equipamentos de precisão, embora isso represente pouco mais da metade dos 50 bilhões exportados em 2012 e 2013, antes da anexação da Crimeia em 2014. Porém, em 2021, o comércio entre os dois países cresceu mais de 34%, dando mostras de rápida recuperação.

A quem, então, interessa essa crise e o alijamento da Rússia? Pode interessar aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha, que mantém relações comerciais e financeiras bem menos relevantes com ela e ainda podem colher boas oportunidades da ruptura das relações entre russos e europeus. Mas certamente não interessa aos alemães, que inevitavelmente sofrerão grandes prejuízos: os empresários, com a perda de lucros e investimentos; os trabalhadores, com a perda de empregos; e os consumidores, com a elevação dos preços.

Assim, é provável que a guerra produza grande insatisfação na opinião pública alemã. E tendo uma crise que, de um lado, vem sendo denunciada pelo partido extremista de direita como fabricada pelas iniciativas estadunidenses, à revelia das alemãs; e de outro, vem sendo atribuída pelo governo “progressista” exclusivamente às ações russas, não deixa de ser uma sorte da Alemanha, da Europa e mesmo do mundo que as eleições alemãs acabaram de acontecer. Pois se ocorressem daqui a seis meses ou um ano, não deveríamos nos surpreender se a AfD obtivesse um resultado muito superior ao atual.

Em todo caso, já temos, nos dois lados do espectro partidário alemão, o prenúncio de que a Alemanha buscará se rearmar. Tudo indica que emergirá dessa crise uma Alemanha que não se contenta mais apenas com prosperidade, estabilidade e comandos indiretos, mas que também não tem mais receios de ostentar poder militar, pois se percebe num mundo cada vez mais perigoso, instável. A depender do que aconteça na sua política interna, poderá emergir nos próximos anos uma Alemanha menos disposta a ser dependente da “proteção” dos Estados Unidos, porém pagando como preço ser arrastada para o centro de crises produzidas pela política externa estadunidense.

Nada disso, é claro, será construído de um dia para o outro, tampouco sem resistências internas e externas. Mas já parecem claros os caminhos: os dirigentes alemães, “progressistas” ou “reacionários”, desejam ter maior controle sobre os destinos do seu país. Sem dúvidas, a remilitarização e o ressurgimento geopolítico da Alemanha estarão na ordem do dia dos próximos tempos.