Crise na Ucrânia: O trágico destino dos ucranianos

Crise na Ucrânia O trágico destino dos ucranianos
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Por Daniel S. Kosinski e Danilo S. Rodriguez – A iminência de uma possível guerra entre a Rússia e os Estados Unidos (justamente com seus aliados ocidentais) está naturalmente atraindo todas as atenções neste momento. Na mídia, na academia, nas conversas privadas, o que mais se fala é sobre a disputa colocada entre eles em torno do controle sobre a Ucrânia. Afinal, quem tem razão?

Nós brasileiros, como bons latino-americanos há muito acostumados com as “interferências” –  mais ou menos diretas, muitas vezes ostensivas, mas sempre presentes – dos Estados Unidos nos nossos assuntos, frequentemente nos inclinamos a dar razão à Rússia. Nos principais telejornais, por outro lado, em geral são apresentados argumentos convergentes com os interesses estadunidenses, representando os russos e seu presidente Vladimir Putin como “agressores”. O que menos se vê, porém, são posições que procurem ver a situação sob a perspectiva da própria Ucrânia. Quase ninguém parece se preocupar com o próprio objeto da disputa em curso, somente com seus agentes. Mas afinal, o que pensam os ucranianos sobre essa crise? O que eles querem, que rumos desejam dar ao seu país?

Para começo de conversa, o mais provável é que não haja qualquer ataque russo à Ucrânia. Conforme vemos, Putin parece mais interessado em demonstrar que, se em algum momento julgar “necessário”, é capaz de invadir e eventualmente tomar o país vizinho do que, de fato, fazê-lo nesse momento. Não é difícil entender o porquê: essa iniciativa seria extremamente custosa para a Rússia. Não exatamente em termos militares – pois não importa o que digam, os estadunidenses não entrarão em guerra aberta contra os russos pela posse da Ucrânia, muito menos os europeus -, mas certamente em termos financeiros. A riqueza da Rússia hoje está praticamente toda assentada na exploração dos seus vastos recursos energéticos, petróleo e gás natural. Essa é a sua principal indústria e, de longe, a sua maior fonte de moedas estrangeiras. Embora percentuais bastante expressivos da produção russa de petróleo e gás seja vendida para a China, por ora sua firme aliada, boa parte desses dois produtos, principalmente do gás, são exportados para os europeus. Ainda que os europeus encontrem dificuldades para substituir o gás russo no caso de um bloqueio ou embargo contra a Rússia, o que certamente impactaria significativamente nos custos de produção e aquecimento em toda a Europa, muito mais problemático seria para os russos encontrarem compradores que substituíssem a demanda europeia. Além disso, a perspectiva de sanções financeiras dos Estados Unidos seria péssima para um país que já enfrenta dificuldades consideráveis. Putin, portanto, provavelmente teria muito mais a perder do que a ganhar autorizando uma invasão. Como o principal estadista mundial nessas primeiras décadas do século XXI, ele, mais do que ninguém, sabe disso.

Por outro lado, para os russos, faz todo sentido impedir que a Ucrânia entre na OTAN. Há razões históricas para isso: a nação russa reivindica – com boas razões – as suas origens históricas na Rus de Kiev, entidade medieval que organizou tribos eslavas até então dispersas em torno do que hoje é a capital ucraniana. A cristianização da Rússia, dado elementar da sua identidade nacional,  também encontra as suas raízes no atual território ucraniano, pois foi por ele que adentraram os primeiros missionários bizantinos. Assim, não há exagero algum em afirmar que, para os russos, o que hoje é a Ucrânia é o próprio “berço” do seu país.

Além disso, há também sérias razões geopolíticas. Partindo das bordas orientais da Europa Central, nas fronteiras com Polônia, Hungria e Romênia, o território ucraniano se “projeta” de oeste para leste na direção da Rússia. A partir da Ucrânia, alcança-se rapidamente as estepes do Cáucaso russo e do Volga, territórios planos que dão acesso direto, praticamente livre de obstáculos naturais, ao “coração” da nação russa, a grande planície que tem Moscou no seu centro. Portanto, ter esse território ocupado por soldados, tanques, mísseis e outros equipamentos militares ocidentais seria visto pelos russos, justificadamente, como uma ameaça direta, imediata e existencial ao seu país.

Por sua vez, a pretensão da Ucrânia de entrar na OTAN também é perfeitamente compreensível à luz da sua história. Por longos séculos, os ucranianos (ou os rutenos, seus “ancestrais”) foram dominados pelo seu vizinho: primeiro pela Rússia czarista; depois, pela soviética. Conhecida como a “Pequena Rússia”, o “celeiro” do Império Russo em função da enorme produtividade dos seus solos de “terra negra” na produção de grãos, na época soviética a Ucrânia foi palco de episódios trágicos. Um bom exemplo ocorreu na década de 1930, o Holodomor, de causas ainda hoje disputadas, mas que seguramente resultou na morte de alguns milhões de ucranianos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o território ucraniano foi totalmente ocupado pelos nazistas, que lá perpetraram vários dos seus maiores massacres contra civis. Em seguida, foi devastado por várias das principais batalhas da guerra, quando da sua retomada pelos soviéticos.

Com efeito, a atual Ucrânia, independente desde o fim da União Soviética em 1991, basicamente representa a primeira vez na história que os ucranianos dispõem de um Estado nacional. Em rigor, há até certa dificuldade em estabelecer as próprias fronteiras de fato do país, tal a profundidade dos seus laços históricos com a Rússia e a sua proximidade não apenas geográfica, mas também demográfica, cultural e linguística com esse país. Se os ucranianos almejam não serem russos – e esse parece ser o caso de, ao menos, parte considerável deles -, desafiar a histórica hegemonia russa sobre o seu país soa imperativo. E neste caso, quem mais possui meios para proteger os ucranianos de eventuais interferências e ameaças de emprego de poderio militar pelos russos do que a OTAN? Há, portanto, racionalidade na defesa dos seus interesses nacionais na pretensão ucraniana de ingressar na aliança militar ocidental. Não se pode ignorar o quão inquietante pode ser ser vizinho da Rússia, país de dimensões mais do que continentais e vocação imperial. Havendo dúvidas, pergunte a um polonês, um húngaro, um romeno ou mesmo um antigo alemão oriental, na faixa dos seus 60 ou 70 anos de idade, o que pensam dessa afirmação.

Diante disso, há apenas um agente inteiramente fora do lugar nessa história: os Estados Unidos. Desde o fim da União Soviética, a OTAN – inteiramente controlada por eles e cuja alegada razão de existência era a própria existência do Estado soviético – não apenas não foi desfeita, mas avançou de forma decisiva e profunda na direção da Rússia. Ainda na década de 1990, começou a incorporar à sua jurisdição antigos satélites soviéticos, a Polônia, a República Tcheca e a Hungria. Depois vieram a Eslováquia, a Romênia, a Bulgária; mais recentemente, a Croácia, a Albânia e até Montenegro. Não apenas isso, a OTAN também incorporou os Estados bálticos Lituânia, Letônia e Estônia, eles próprios partes da antiga União Soviética. A fronteira nordeste da organização está a poucos quilômetros de São Petersburgo, a segunda maior e mais importante cidade russa.

Portanto, resta muito claro que o fim da URSS nada significou para os Estados Unidos em termos de distensão das relações com a Rússia. Ao contrário, seus governos, democratas ou republicanos, se aproveitaram da “prostração” da Rússia pós-soviética – principalmente nos 10 anos sob o governo de Boris Ieltsin, absolutamente submisso aos interesses ocidentais em todas as áreas – para acirrar de forma contundente o cerco sobre a Rússia. Dessa forma, não há como nos surpreendermos com a postura “agressiva” de Putin a respeito da tentativa de incorporação da Ucrânia á aliança militar ocidental, tal qual a que teve em relação à Geórgia em 2008 quando essa foi convidada pelo então presidente estadunidense George W. Bush a ingressar na organização. Os russos se sentem, com razão, enganados. A OTAN se revelou, ao cabo, não um instrumento de contenção da União Soviética como se dizia, mas um de cerco e “estrangulamento”, promovido pelos Estados Unidos, contra a Rússia.

Dessa forma, são os longínquos Estados Unidos os principais provocadores da crise ucraniana. A expansão agressiva do seu aparato militar na direção do território russo nas últimas duas décadas provoca uma reação da Rússia, com ameaça de emprego da força militar no seu entorno estratégico imediato. Além disso, a sucessão de “revoluções coloridas” ocorridas em ex-repúblicas soviéticas já no século XXI, entre elas a própria Ucrânia, movimentos que os russos acusam os Estados Unidos de terem fomentado e financiado, ajudaram a consolidar a sua desconfiança em relação aos ocidentais.

Tampouco são os europeus os causadores dessa crise. Pelo contrário; eles não desejam qualquer guerra na Ucrânia e nem mesmo vêem vantagens em escalar a tensão com os russos. O que os europeus – principalmente os alemães – querem é, essencialmente, fazer negócios com eles. Querem continuar comprando seu gás e vendendo seus bens de consumo para eles. Não possuem o poderio militar necessário nem quaisquer pretensões de enfrentar os russos nesse campo. Tampouco querem incorporar a Ucrânia às organizações do Ocidente a qualquer preço. Para os europeus, bem serviria “finlandizar” a Ucrânia, isto é, fazer dela o equivalente à Finlândia durante a Guerra Fria. Localizada na fronteira imediata com a União Soviética e também com um histórico longo de domínio russo, a Finlândia não se alinhou com nenhum dos dois lados, permaneceu neutra em termos diplomáticos e militares e pôde, assim, trilhar o seu caminho com relativa independência, tornando-se um país industrializado e moderno depois de ter sido um dos mais pobres do continente.

Em suma, para os ucranianos, o que se afigura mais razoável diante das circunstâncias também seria buscar essa “finlandização”. Isso implicaria em se aproximar progressivamente da Europa em termos produtivos, comerciais e financeiros, mas sem se opor à Rússia, com a qual possui laços intensos e necessários em todos os aspectos. Resta saber se a Ucrânia teria capacidade para executar uma política externa suficientemente independente e sofisticada capaz de avançar seus interesses ocidentais ao mesmo tempo em que acomoda preocupações russas legítimas. Sem dúvidas, tratar-se-ia de um equilíbrio delicado, muitas vezes precário, numa Ucrânia muito heterogênea, dividida entre leste e oeste e que ainda está por encontrar o seu projeto autônomo de país entre duas proposições extremas: ser apenas um “apêndice” russo – conforme expressa o seu próprio nome oriundo de “Okraina“, isto é, “periferia” (do ponto de vista de Moscou); ou servir como linha de frente da política estadunidense de cerco e contenção da Rússia.

Assim, a “finlandização” talvez pudesse se revelar uma saída aceitável para a terrível situação em que hoje os ucranianos se encontram: o trágico destino de, imprensados entre os jogos das grandes potências, não terem como decidir os seus destinos.

Por Daniel S. Kosinski, doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ), membro do Instituto da Brasilidade e escritor; e Danilo S. Rodriguez, mestre em Economia Política Internacional (IE-UFRJ), doutorando em Economia (IE-UFRJ) e membro do Instituto da Brasilidade.