O garimpeiro na obra de Oswaldo França Júnior

O garimpeiro na obra de Oswaldo Franca Junior
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Nesses dias em que os garimpeiros da Amazônia voltam ao noticiário nacional, me lembrei de um livro que li há muito tempo e que já me levou ao ambiente do garimpo na floresta. Menos valorizado nos dias de hoje que a observação in loco, quando o viajante, a partir de uma curta experiência cuidadosamente montada, pode criar suas próprias teorias gerais sobre povos, países e costumes, por muitos séculos, o veículo literário foi o instrumento que deu ao ser humano a possibilidade de transportá-lo não apenas no espaço geográfico ou no tempo histórico, mas também no espaço psicológico com seus tempos particulares.

Contrariamente aos pressupostos das investigações de campo, com suas longas e sistemáticas pesquisas, a ideia geral de que é necessário apenas viajar para ampliar a visão de mundo e conhecer verdadeiramente outras realidades é um lugar-comum que só pôde ser massificado no século XX, quando agências de viagens passaram a vender experiências organizadas para turistas se acharem os novos Marcos Polo. Antes dos meios de transporte de massa se tornarem realidade, o vislumbre do outro só era possível, para a grande maioria, através dos causos, dos poucos relatos testemunhais e da literatura. E foi por meio deste instrumento de tempos remotos que eu me chamei Adailton e estive na Amazônia, senti cheiros e riscos, me sujei de barro na lavra, transpirei com as dores da malária, quase me afoguei garimpando no fundo do rio, achei ouro e diamantes depois de mil tentativas, fui roubado, ameaçado por traficantes, sobrevivi, fugi da polícia e retornei para os braços de Gerusa, para contrariedade de seus pais.

Adailton foi o último protagonista da obra do escritor mineiro Oswaldo França Júnior, em seu romance póstumo, De ouro e de Amazônia [1989]. A trágica morte prematura, aos 52 anos, num acidente de carro na ainda assassina estrada mineira conhecida, com justiça, por “Rodovia da Morte”, que interrompeu a vida de um dos mais importantes escritores de sua geração, deixou uma legião de leitores órfãos, com especial dor aos seus conterrâneos, como eu. Nascido em 1936, na cidade de Serro, “a terra do queijo”, onde cresci ouvindo as histórias do “Francinha”, como era conhecido lá, Oswaldo França Júnior teve uma vida atribulada e muito marcada pelos acontecimentos políticos do país dos anos 60.

Entusiasta da aviação, se mudou para o Rio de Janeiro após estudar na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena. No Rio, ingressou na Escola de Aeronáutica, sendo transferido para Fortaleza, onde se formou piloto de avião de combate. Do Ceará foi enviado para Porto Alegre, ficando lá por quatro anos, até ser expulso das Forças Armadas por ter participado da sabotagem dos aviões que iam bombardear o Palácio do Piratini, durante a Campanha da Legalidade.


Fora da Aeronáutica aos 28 anos, casado e com três filhos, teve que se dedicar a diversas atividades para sobreviver, que serviram de inspiração para muitas estórias e personagens de seus livros. Precisando de dinheiro, resolveu tentar a sorte também como escritor, pedindo ao amigo Rubem Braga para avaliar alguns escritos.

“Não sabe por que meteu na cabeça que escritor ganha dinheiro escrevendo. Escreveu uns contos, e da primeira vez que veio ao Rio foi levá-los ao Rubem Braga. Deixou os contos na casa dele, nem chegou a entrar. Um dia recebeu em Belo Horizonte uma carta do Rubem Braga, dizendo que os contos ‘não eram maus’, mas o melhor que ele tinha a fazer era escrever um romance, que era mais fácil de ser editado. E perguntava se ele tinha dinheiro para pagar a edição.” [1]

Dessa empreitada despretensiosa, pelo menos literariamente, saiu seu primeiro livro, O viúvo [1965], que conta a estória de um vendedor de queijos em Belo Horizonte reconstruindo a vida após a morte da esposa. Um livro maravilhoso, mas que não deu a fama e o retorno financeiro que o autor imaginava. Dois anos depois, conseguiu o que buscava com o lançamento de sua mais conhecida obra: Jorge, um brasileiro [1967].

Vencedor do Prêmio Walmap, o livro conta a epopeia de um motorista de caminhão em uma viagem pelo interior do país, de cuja boleia, nas palavras de Fernando Sabino, “pode-se sentir todo o pathos de uma civilização tumultuada e em pleno processo de desenvolvimento” [2]. O mais famoso livro de Oswaldo França Junior foi adaptado para o cinema em 1988, no conhecido filme protagonizado por Carlos Alberto Riccelli no papel de Jorge, além de ter inspirado a série de TV, Carga Pesada, produzida pela Rede Globo.

O motorista de caminhão, o comerciante de queijos, o dono da oficina mecânica do bairro de O homem de macacão [1971] e muitos outros batalhadores anônimos que, com muito suor, contribuem silenciosamente nos movimentos econômicos do país são figuras comuns nos livros de Oswaldo França Júnior, cuja obra representa um registro importante desses personagens muitas vezes invisibilizados pela historiografia e pela literatura nacional. E um desses batalhadores, o garimpeiro, que motiva este texto, foi tema de dois livros do escritor.

Atividade comum na cidade natal de Francinha, onde foi encontrado ouro e diamantes em abundância no século XVIII, o garimpo é algo que mudou muito ao longo dos séculos, passando do trabalho predominantemente artesanal do período colonial à mineração em grande escala feita por multinacionais, com sofisticado maquinário e equipes de engenheiros e geólogos. Contudo, no caótico (sub)desenvolvimento do capitalismo brasileiro, formas arcaicas e modernas – e muitas intermediárias – de todo tipo de atividade produtiva coexistem e se interpõem.

Por isso, o solitário garimpeiro tentando a sorte ao modo antigo, batendo sua bateia no leito dos rios, em busca de algumas pintas de ouro ou diamantes residuais que escaparam da sanha colonial, ainda é uma figura presente nos rincões do Brasil. Esse personagem anônimo que, como um jogador inveterado, segue a vida refém da esperança de encontrar uma pepita de ouro ou um diamante bitelo na próxima enxadada é o tema do livro Os dois irmãos [1976], que conta a estória do homem e seu irmão trabalhando de sol a sol na beira do rio. Em nenhum momento os nomes deles são mencionados, num interessante estilo narrativo que, ao invés de despessoalizar os protagonistas, os humaniza de um modo mais profundo ao integrá-los num todo de uma vida que flui continuamente, como em Aqui e em outros lugares [1980], outro excelente livro de Oswaldo França Júnior que segue essa mesma linha de diluir individualidades em estórias aparentemente impessoais que se entrelaçam no fluxo do cotidiano.

Já na outra obra do autor que tem no garimpeiro a temática principal, o já mencionado De ouro e de Amazônia, o protagonista é bem identificado e a atividade de garimpo muda de escala, técnica e local, apesar de guardar essa mesma dureza esperançosa que leva exércitos de pessoas a se embrenharem pelos mais inóspitos ambientes, seduzidos pela possibilidade remota de conseguirem mudar de vida. A região amazônica já havia aparecido na obra do escritor mineiro em passagens de seu ‘romance/acerto de contas’ com a Força Aérea, O Passo-Bandeira [1984], que conta a estória de um ex-piloto da FAB, “Paulo César”, que já no primeiro parágrafo apresenta seu currículo de aviador, coincidentemente muito similar ao do autor do livro.

Mas a Amazônia da última obra de Oswaldo França Júnior não é mostrada apenas da visão aérea de um piloto, ou da convivência com indígenas e soldados nos quartéis dos pelotões de fronteira. Acompanhar o garimpo nas profundezas da floresta dá outra dimensão da brutalidade da natureza intocada, totalmente contrária à visão idílica cultivada nos grandes centros.

Nesse novo cenário, o trabalho solitário com bateias e enxadas dá lugar a equipes com dragas para sugar areia do fundo dos rios e bombas para lançar água nos barrancos. A partir do livro de Oswaldo França Júnior é possível ter uma boa visão da divisão do trabalho nesses locais, em que cozinheiras, barqueiros, mecânicos, e mesmo os garimpeiros, dividem tarefas na extração mineral.

Alguns garimpos funcionam 24 horas por dia, mantendo “duas frentes de trabalho, duas bocas de serviço, como eles diziam. Em cada frente trabalhavam dois grupos de quatro homens, um grupo de dia e outro à noite. O grupo que largava o trabalho tinha que entregar a boca de serviço desimpedida. Com os motores em condições de funcionamento, a caixa limpa, o escorredor e o feltro lavados e as taliscas soltas. Havia então, ali, dezesseis garimpeiros, fora Edinalda [que era a cozinheira da choupana], um velho que ajudava na cozinha de nome Toninho, e três homens que estavam esperando vagas para entrar nos grupos. Ficavam auxiliando as equipes mas não garimpavam, não tinha direito na divisão do ouro. Recebiam comida e ficavam esperando uma vaga nos grupos. Esperando que alguém adoecesse ou fosse a Abunã ou Porto Velho, e aí entravam no lugar.” [3]

Entre os garimpeiros há os que trabalham sobre a terra, “com as pernas mergulhadas na lama, desmanchando a terra da floresta com um jato d’água para que ela fosse puxada por um motor e passasse numa caixa de madeira com um escorredor, deixando depositado o pó do ouro” [4]. E há os que trabalham sob a água, com roupa de mergulho, respirando por um tubo ligado a um motor que flutua numa balsa bombeando o ar, enquanto sugam o fundo do rio. Atividade arriscada pelas baixas temperaturas, pelo perigo de desenvolver embolia gasosa na subida e pelo risco de o ajudante na superfície dormir ou não notar algum problema no motor ou na mangueira de ar. Na escuridão do fundo das águas, o mergulhador também pode perder a referência e sugar muito em um único ponto, formando ao seu redor, sem perceber, um buraco que ao desbarrancar pode engoli-lo, sepultando-o no fundo do rio.

Mas o romance de Oswaldo França Júnior se inicia longe dos rios amazônicos. Começa no interior de Minas Gerais, mostrando a dura vida de criança de Adailton que teve que trabalhar desde muito cedo para ajudar a mãe a criar os irmãos e, se mudando para a capital, acabou internado na Febem. Mais tarde ingressou no serviço militar, de onde saiu para trabalhar nas mais diversas atividades. Apaixonado por Gerusa, e enfrentando a oposição dos pais da moça ao relacionamento, resolveu seguir para o norte em busca de ouro para conseguir dinheiro e realizar o sonho de abrir sua própria empresa e poder se casar com sua amada. Mas o infortúnio amoroso, tão comum nas obras do autor, vai ficando em segundo plano diante da épica viagem de Adailton pelo interior da floresta amazônica. Talvez por isso, Gerusa não esteja no nome do livro, como ocorreu em A volta para Marilda [1974] e As lembranças de Eliana [1978], e nem o próprio amor tenha resistido no título, como em Recordações de amar em Cuba [1986].

Antes de seguir viagem, Adailton tomou informações com um ex-garimpeiro que tinha uma verduraria em Belo Horizonte, comprada com dinheiro do ouro tirado da Amazônia, que o advertiu dos riscos, mas afirmando que “se não fosse a família e a saúde, voltaria para o garimpo.Tinha conseguido o seu e era para estar folgado, tranquilo, mas foi se meter demais em negócios e perdeu muito dinheiro” [5]. Ouviu histórias das doenças, como a febre amarela, que o próprio ex-garimpeiro havia visto vitimar dois ingleses, picados pelo carapanã, “que não tinham se vacinado porque não acreditavam na vacina brasileira” [6], e da outra doença mais perigosa ainda:

“o mais difícil não era a pessoa tirar ouro, era segurar o dinheiro. A maioria dos que bamburravam gastavam em bobagens e na maior pressa. Muitos não estavam acostumados a ter muito dinheiro e quando acertavam a mão não tinham planos, não sabiam o que fazer. Ficavam até meio deslocados. E gastavam com farras, pondo dentes de ouro, pagando bebidas para os outros. Contratavam cinco, dez mulheres como se pudessem ficar com todas ao mesmo tempo. Depois voltavam para o garimpo, bamburravam de novo e outra vez gastavam tudo com as mesmas coisas.” [7]

De mais um conhecedor da região, com quem seguiria para o norte de caminhão em alguns dias, Adailton ouviu o alerta de outra ameaça comum por lá: “um dos problemas que acontecem na Amazônia eram as mineradoras chegarem no garimpo e botar todo mundo para fora, falando que a licença de exploração era delas. Sempre chegavam acompanhados de soldados da polícia. Uma vez ele e mais uns cem homens estavam trabalhando num lugar chamado Zé Vermelho, fazendo bom ouro, quando apareceu o representante de uma mineradora com trinta soldados comandados por um capitão e mandou todo o pessoal sair. Estavam trabalhando nos barrancos e o homem chegou falando grosso, dizendo que o alvará de exploração era da mineradora e o capitão não deu conversa. Cercou o lugar com os soldados apontando os fuzis e foi obrigando um por um a assinar um papel onde estava escrito que desistiam do garimpo.
– Quem não ia assinar? – Nacano comentou.
Depois pôs a turma para fora e foi tocando por uma picada.
– Tocando como se fosse boi.” [8]

Pela obra de Oswaldo França Júnior é possível ter uma visão nítida do ambiente, das pessoas, da cultura e dos valores que vão se formando num local repleto de migrantes trabalhando em condições de grande penúria, em acirrada disputa entre si pela lavra mais produtiva, explorados pelos donos dos maquinários e pelos ricos atravessadores, que se aproveitam da atividade desregulada para arrancar o sangue dos trabalhadores, numa terra onde as leis implacáveis que regem o convívio social não estão previstas na legislação. Pena de morte em julgamentos públicos sumários, por exemplo, em caso de furto ou de um balseiro que dormiu, deixando seu companheiro se afogar no fundo do rio, são comuns.

Latrocínios no meio da floresta durante o transporte do ouro encontrado obrigam todos a andarem armados e atentos. Às vezes o inimigo dorme na rede ao lado e, seja por má índole, seja por desespero de sair dali e voltar para casa, passa noites em claro planejando a tocaia do companheiro mais afortunado. Onças, insetos e outros animais peçonhentos, ficar o dia todo sujo de barro até o pescoço, malária, exaustão física e psicológica no trabalho sem folga, saudade de casa e a esperança de encontrar ouro ou alguma pedra preciosa que faça aquilo tudo valer a pena. Eis o garimpeiro da floresta, o sujeito que quando consegue juntar algum dinheiro se refugia no primeiro lugarejo que encontra e gasta suas economias velozmente, desesperado por qualquer prazer que o lembre da sua condição humana.

Podemos ver que os tipos de garimpo retratados pelo escritor em seus dois livros sobre o tema, apesar de terem o mesmo fim, são atividades completamente diferentes em quase tudo. Mas, nesse momento em que os garimpeiros voltam ao noticiário, quando descobrimos que há 600 mil deles ainda trabalhando na Amazônia em condições similares às que foram descritas por Oswaldo França Júnior nos anos 80, é possível perceber que, assim como os dois irmãos sem nome do primeiro livro do autor sobre o assunto, há um elemento comum a todos esses trabalhadores das lavras do Brasil: o mais absoluto e profundo anonimato.

 

Referências:
[1] “Oswaldo, o mineiro”. Entrevista feita por Fernando Sabino e publicada no Jornal do Brasil em 22 de nov. de 1974. In: FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. O viúvo. 4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.10.
[2] idem.
[3] FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. De ouro e de Amazônia. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.172.
[4] ibid. p.120.
[5] ibid. p.124.
[6] ibid. p. 125.
[7] ibid. p. 126.
[8] ibid. p. 127-128.