O fetiche dos 3% e a superação de 2022

O fetiche dos 3 e a superacao de 2022
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A adesão à militância política envolvendo um partido ou liderança envolve um nível de crença que, se não for tomada com cuidado, pode acabar resultando em fanatismo. Isso é algo que pode acontecer com todo mundo, mesmo aqueles que acham que estão blindados. Nas eleições de 2022, tivemos dois grandes campos dominados pelo fanatismo que alimentaram o processo de polarização política no Brasil e dominaram as intenções de votos no primeiro turno, o que acaba tornando natural uma associação do fanatismo com o lulismo ou o bolsonarismo. Esse é um alerta, inclusive, que deve ser feito para a militância que acompanhou Ciro Gomes até o fim.

Precisamos expandir esse alerta para levantar um debate honesto e sério sobre a militância em defesa do Projeto Nacional de Desenvolvimento que restou após a forte derrota nas eleições e os caminhos para uma possível futura construção política em torno da defesa desse projeto de desenvolvimento para garanta melhores condições de vida para os brasileiros e a redução consistente das históricas desigualdades da nossa sociedade. Não existe outra maneira de expandir essa reflexão sem dizer o seguinte: se 2022 não for superado, vai ser impossível a construção de qualquer coisa saudável ou qualquer corrente em defesa da soberania e do desenvolvimento brasileiro.

O enfrentamento em 2022 foi pesado, com muita desonestidade, muitas traições internas que deixaram as pessoas com bastante raiva, traumatizadas com a dinâmica política e tudo. Isso deixa rastros até hoje. É natural que as pessoas sintam frustração e raiva após se dedicarem emocionalmente a algo por anos e ver tudo isso ser destruído com a ajuda de pessoas que julgavam estar do seu lado, mas ficar alimentando essa frustração e raiva até agora não é saudável.

A bem da verdade, é preciso dizer que só existia uma candidatura dentre as principais que defendia abertamente o rompimento com o modelo econômico neoliberal que domina o Brasil hoje, a candidatura do Ciro Gomes, que defendia um modelo atualizado do nacional-desenvolvimentismo casado com a garantia de direitos sociais herdada das melhores tradições da social-democracia e do trabalhismo brasileiro. Entretanto, muitos que alegavam defender valores semelhantes não embarcaram nessa candidatura e preferiram, por diversas razões, a candidatura do Lula, que se sagrou vencedora.

Para avaliar essa dinâmica, acaba que uma confusão é feita: lideranças de outros partidos ou outras forças políticas que se construíram com discursos críticos ao modelo neoliberal não tinham a obrigação de apoiar a candidatura do Ciro Gomes nas eleições. Muitas dessas pessoas merecem enormes críticas por suas posições, mas não podem ser tratadas como traidoras por simplesmente não terem optado pelo mesmo caminho que nós. Essa postura, inevitavelmente, estreita qualquer capacidade de criação de um polo unificado contra o neoliberalismo atualmente aplicado pelo governo e a rendição da esquerda ao programa do mercado. Nesse momento, o sectarismo não pode ser a tônica da conversa.

Existiram traidores? Sem sombra de dúvida! Esses são os que estavam no partido, se usaram da estrutura, do dinheiro e de tudo o que o partido tinha para oferecer e simplesmente apoiaram candidaturas de outros partidos. Ou os que davam tapinha nas costas do Ciro, se diziam aliados e trabalhavam para os adversários na surdina em troca de uma futura benesse. Todos esses devem ser cobrados pela falta de caráter e pelo oportunismo eleitoreiro que troca a construção de um projeto para o país por qualquer migalha ou ganho pessoal.

O trauma de 2022 foi muito forte, mas ficar preso nele não é saudável. Sem uma dose de resiliência e superação, vai ficar difícil a construção de algo e as energias em defesa de um Brasil soberano, desenvolvido e com oportunidades para todos os excluídos, vai se dissipar rapidamente em faccionalismo sectário e voluntarista. Se o ressentimento tomar conta, a atividade política vira uma mera denúncia moral sobre os que estão “do lado certo” e os “do lado errado” e acaba qualquer possibilidade de defesa de algo maior para o país.

Outra forma perceptível que as pessoas lidam com o trauma de 2022 é se fechar na bolha do “3% com orgulho”. Isso é muito ruim e tem efeitos políticos profundamente destrutivos. É natural que a resposta à violência seja uma atitude defensiva, de reforçar o sentimento de união, mas isso precisa ser feito de forma excludente? Não é difícil ver gente reproduzindo certos pensamentos que dizem que só existem 3% de eleitores racionais no Brasil ou que só 3% se preocupam com projeto. Isso está errado em muitos níveis. Como você pretende dialogar com o Brasil e criar um projeto hegemônico demonizando 97% do eleitorado ativo? Ou será que o objetivo de construir algo para superar nossas mazelas foi abandonado e só resta agora uma postura de arrogância perante a sociedade brasileira?

A mesma crítica feita aos petistas que chamam todo mundo que votou no Bolsonaro de fascista se aplica aqui. Quando Bolsonaro venceu em 2018, muita gente digeriu a derrota tentando vender uma imagem de superioridade intelectual chamando o eleitorado bolsonarista de “gado” (e chamam até hoje). Essa postura foi feita, inclusive, durante a campanha, resultando em cenas elitistas como ir votar com livros debaixo do braço como se fossem uma “elite intelectual” da sociedade brasileira contra os “trogloditas”, os “bárbaros”. Se não devemos condenar o eleitor do Bolsonaro como essencialmente fascista na sua integralidade, nós podemos chamar quem não optou pelo Ciro Gomes de burro?

Uma reflexão precisa ser feita: qual a chance de dar certo uma linguagem política que se coloca em um pedestal de honestidade e integridade, e restringe isso aos “3% racionais da população brasileira”? Existe alguma chance dessa linguagem política alcançar um grande público? Preocupa certa linguagem política que descamba para um misto de arrogância e sectarismo que só afasta a sociedade brasileira como um todo. Afasta, inclusive, lideranças que passíveis de diálogo no período pós-eleição dada a agenda neoliberal do Lula.

O campo político nacional-desenvolvimentista, representado por Ciro, saiu com uma votação baixa na eleição em 2022 e praticamente sem estruturas políticas para enfrentar o debate de ideias em um cenário em que praticamente todas as estruturas críticas ao neoliberalismo anterior se renderam. Isso já coloca uma enorme dificuldade para enfrentar a hegemonia neoliberal no Brasil. Diante disso, como vai ser possível pautar uma crítica ampla ao que acontece? Como será possível uma crítica que denuncie a artificialidade econômica da disputa extrema-direita x centro-direita que está colocada na polarização política atual?

Na política, existe a dinâmica de construção e a dinâmica de afirmação. A dinâmica de afirmação exige lançar um discurso ideológico forte para alcançar a maior parte das pessoas com ele; a dinâmica de construção é pegar essas pessoas atraídas por esse discurso e transformar em estruturas sólidas que têm a capacidade de pautar o debate público e construir alternativas políticas viáveis para aplicar esse projeto. Apostar em uma dinâmica de afirmação do “orgulho 3%” pode fazer com que esse campo fique ainda menor. Todo cuidado é pouco para quem ainda nutre alguma esperança de fazer algo pelo Brasil que garanta dignidade e tranquilidade para quem mais precisa. Quem nasceu sem sorte, sem herança e abandonado pela selvageria do capitalismo neoliberal brasileiro aplicado religiosamente pela esquerda e pela direita, não pode se dar ao luxo de desistir do Brasil.