De ‘A Última Tentação de Cristo’ ao ‘Chosen’: a tendência recente em retratar Jesus com nossa natureza decaída

De A ultima Tentacao de Cristo ao Chosen a tendencia recente em retratar Jesus com nossa natureza decaida
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Assisti a série “Chosen”, que narra a história de Cristo de modo leve, bem adequado ao público jovem atual. Minha mulher detestou a caracterização dos personagens, considerou tudo muito ”emo”. Eu achei bom entretenimento, e vou acompanhar a quarta temporada, que estreia mês que vem.

Mas há algo que se nota de imediato em produções como essa: a escolha por retratar Cristo com nossa natureza decaída. Lembro do escândalo que foi “A Última Tentação de Cristo”, que chegou bem longe nesse ponto ao mostrar até conflitos internos e luxúria em Jesus Cristo. Mas aí é que está, mesmo os cristãos que se sentem desconfortáveis com o filme se acostumaram a imaginar o Senhor com nossas limitações e restrições.

Em linguagem teológica, o imaginário das pessoas foi conquistado por um Cristo ”póslapsariano”, ou seja, com uma natureza humana tal como ela é depois da Queda de Adão. É uma noção que se consolidou em pensadores protestantes modernos, e de lá se espalhou por católico-romanos no século XX, e que, ainda que bem minoritário, pode ser visto até em alguns cristãos ortodoxos [como em obras do Metropolita Kallistos Ware, que foi criticado por monge do Monte Athos por causa disso].

Mas nem sempre foi assim: mesmo nas edições críticas dos evangelhos católico-romanos que eu lia na minha infância [lá nos anos 1980] se deixava claro que a natureza humana de Cristo era ”pré-lapsariana”, embora não se usasse o termo. Ou seja, era aquela que Adão tinha antes da Queda. Mais do que isso, se falava da perfeição da natureza humana de Cristo dada a ”communicatio idiomatum” gerada pela união hipostática com a natureza divina na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Na Igreja Ortodoxa, esse ensinamento é ainda mais explícito dado o conceito de ‘theosis’, de deificação pelas energias divinas. Voltarei a esse ponto depois. Vamos começar pela natureza adâmica, ou seja, a natureza humana tal como saída das mãos de Deus, antes de ser corrompida pelo pecado original.

Adão não estava submetido às desordens das paixões que nos trouxeram a tendência ao pecado. Mais ainda: sua mente era límpida e capaz de conhecer as realidades tais como elas são, e portanto ele discernia de modo límpido o que era bom. Seu corpo estava vestido com as ”roupas da glória”, era resplandecente, luminoso, imune a qualquer perigo e desconforto ambiental [segundo os Santos Padres, Adão não sentia nem calor nem frio]. Ele também não sentia dor, sofrimento, doença, sono, envelhecimento e não precisava passar pela morte.

Esta é a natureza humana assumida pelo Verbo. A natureza que nós carregamos é doente. A dele é sadia. E é por isso que Ele é nosso médico e redentor.

Na Igreja Ortodoxa, esse ensinamento é ainda mais nítido, já que acreditamos que a natureza humana de Cristo é ainda superior ao do primeiro Adão. No momento da Concepção no seio da Toda Santa e Pura Virgem Maria, o corpo de Cristo foi deificado. Estava pleno pelas energias divinas, não apenas imagem de Deus como Adão, mas semelhante a Deus. Este é um ponto muito importante: Cristo não é um homem passando por um ”processo de deificação”, como os santos que passaram pela theosis. Ele é deificado desde a concepção, e Seu Corpo é FONTE DE SANTIDADE E DE DEIFICAÇÃO. Sua vida foi a destruição dos obstáculos que nos impediam de partilhar essa fonte de santidade e deificação.

Sendo ainda mais explícito: Cristo nunca se sentiu tentado pelo diabo. O capiroto ousou tentá-lo, sem dúvida. Mas o Senhor não se sentiu tentado. Ele não tem conflito interno. Cristo tampouco se sentiu frustrado ou apartado de Deus na Cruz. O grito “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” não é expressão de alienação da Divindade: Cristo é Deus, ara! Ele está sempre em pericorese com o Pai e o Espírito Santo, e dada a união hipostática e a deificação é impossível que sua mente humana seja obscurecida! Cristo estava citando um salmo messiânico, apontando para todos o cumprimento da Profecia [leiam o salmo inteiro!].

Mais ainda: Cristo não estava sujeito ao reino da necessidade. Não, Ele não estava agrilhoado à fome, à sede, não ficava doente, não sentia perigo vindo do ambiente, não precisava sofrer ou sentir dor. Os Santos Padres deixam claro que Ele só passou por estas coisas por ação de sua própria vontade [tanto da divina quanto da humana]. Ele permitiu que estas tendências agissem sobre Ele na medida e na extensão em que eram necessárias para a Redenção e a libertação das consequências do pecado original.

Há diversas hagiografias, diversos santos que superaram as necessidades impostas pela fome e pela sede, pela dor e sofrimento. Diversos santos que não comiam na quaresma, só comungavam uma vez por semana, ou então eram ”alimentados pelos anjos”. Que eram jogados em caldeiras ferventes ou eram torturados e nada sentiam. Que eram atirados às feras e elas se deitavam a seus pés. Pois bem, Cristo era assim desde a concepção, e é por meio da deificação cuja fonte é Cristo que estes santos eram tão cheios da Graça. É o que os Santos Pedro, Tiago e João viram no Monte Tabor: a Transfiguração. Como ensina São Gregório Palamas, não houve alteração em Cristo na ocasião. Foram os Apóstolos que vivenciaram, momentaneamente, elementos da deificação, e com isso puderam perceber Cristo como Ele verdadeiramente é em Sua natureza humana.

Assim como Cristo se permitia sentir fome, sede, cansaço, sono, Ele também se permitiu sentir medo da morte [ainda mais intenso Nele, já que a morte era completamente estranha à Sua natureza], se permitiu sentir dor, e se permitiu morrer. Este é outro ensinamento que foi se perdendo com o tempo: Cristo era livre em relação à morte. Ele morre em completa liberdade. Não é que a morte o capture por necessidade, como acontece com nós, homens decaídos e doentes. Ele deixa, em completa liberdade, que ocorra a separação entre alma e corpo com o escopo de destruir o Hades.

O alto brado que o Senhor deu antes da morte é o sinal de que se manteve vivo até o instante em que quis. Esse era um ensinamento comum entre católico-romanos até praticamente ontem, e no entanto boa parte deles se surpreende com isso. Quando dizemos que Cristo morreu por nós, não é que Ele tenha se entregado de mãos amarradas ao Sinédrio e a Pilatos. Não é só isso. É que Ele NÃO PRECISAVA morrer. A morte não tinha qualquer poder sobre Ele. Nenhum. Zero. Ele não entra no Hades como cativo, mas como Conquistador!

A Igreja tem exemplos e exemplos de corpos de santos que se tornam incorruptos. Que são fontes de milagres. Os corpos dos santos estão unidos a suas almas, que, santificadas, transmitem a santidade a seus corpos mesmo depois da morte. Em alguns, essa transmissão é tão evidente que a incorrupção nos os alcança. Alguns destes, além de incorruptos, ainda vertem mirra. De onde vem isso? Da participação desses santos na deificação proporcionada por Cristo. Ora, o corpo de Cristo nunca foi um cadáver. Mesmo depois da separação da alma e do corpo, não é possível afirmar que Seu corpo estivesse sem vida. O corpo de Cristo não viu qualquer corrupção, isso é impossível.

Ele tampouco foi ressuscitado por uma força externa. Não é como se Ele se entregasse à morte, e estivesse lá preso no Hades, e aí Deus, como força externa, O ressuscitasse. Ele Se ressuscitou! Ele nunca esteve aprisionado pela morte. Supor o contrário e imaginar que o próprio Senhor necessitasse de Redenção, um absurdo completo. “O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai” [Evangelho de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo segundo o Glorioso Apóstolo e Evangelista São João Teólogo, capítulo 10].

O padre Emmanuel Hatzidakis se propôs o mesmo exercício teórico que Nikos Kazantzakis em “A Última Tentação de Cristo”: e se a crucificação não ocorresse? [é só um exercício, pois é evidente que Cristo nasceu para morrer.] Cristo envelheceria, ficaria doente e morreria, como no livro e depois no filme dirigido por Scorsese? Só existe uma resposta ortodoxa para o ”problema”: Não! E Ele poderia ascender aos Céus, com ascendeu depois, quando quisesse.

Tudo fica mais simples quando se entende que Cristo não estava passando por nenhum processo de santificação interna, moral, psíquica, mental, física etc. Ele é deificado desde a concepção em sua própria natureza humana, e portanto criada. Na Ressurreição, Ele destruiu o Hades para que o homem pudesse adentrar o Reino dos Céus. Não para si mesmo. Na Paixão e Morte, Ele destruiu a dívida do pecado. Nossa dívida, não a Dele. No Batismo, Ele deificou a Natureza, abrindo a possibilidade de que a Graça Divina adentrasse o coração humano [batismo]. Nosso coração, não o Dele. Na Encarnação, Ele restaurou a natureza humana e a elevou pela União Hipostática.

Todos esses ensinamentos, que nada mais fazem repetir a noção tradicional de que Cristo é SENHOR, DEUS E SALVADOR, eram comuns quando eu era criança. Mas hoje é como se fossem algo incompreensível, e as pessoas acham mesmo que Cristo estava escravizado à dor física, a necessidades fisiológicas, a crises de ansiedades, a dúvidas e deliberações, ao perigo representado pelos elementos da natureza, à doença, dor, morte etc.

Ele se fez semelhante a um escravo, mas Ele nunca o foi. E é só assim que se entende a dimensão do amor que Ele tem pelo homem.