O sinal mais marcante de uma sociedade democrática saudável é a capacidade que ela tem de refletir sobre as suas escolhas, operando mudanças — muitas delas profundas — quando for a necessidade. A crítica deve ser mecanismo central do processo político. Sem ela, não há democracia. A ausência constante de reformas é um dos elementos centrais das revoluções, que explodem a partir de uma acumulação de problemas não resolvidos. Embora seja algo bastante restrito, o período eleitoral acaba sendo o momento em que as sociedades conseguem maior abertura para lidar com seus problemas.
Após anos de crises ininterruptas, o Brasil se vê diante da oportunidade para um debate franco no processo eleitoral de 2022. O país tem uma oportunidade de ouro para discutir pelo menos três assuntos centrais para a catástrofe sanitária, econômica e social do governo Bolsonaro. São estes: 1) o modelo econômico vigente no país desde a década de 90 que virou uma máquina de concentração de renda e de crescimento econômico baixo; 2) o sistema político, rejeitado pela maioria esmagadora dos brasileiros e que se transformou em uma máquina de destruição da política; 3) o próprio governo Bolsonaro. O surgimento de uma figura como Bolsonaro não é aleatório e diz muito sobre os resultados do modelo econômico e do sistema político que o Brasil adotou nos últimos anos. Pensar esses pontos em separado é o caminho mais rápido para que a crise se arraste. É justamente aí que mora o problema.
Até o momento, o foco central do debate é o governo Bolsonaro, muito por conta da gestão desastrosa da pandemia e os constantes ataques à democracia brasileira. O grande problema é que existem atores muito poderosos que querem manter o debate somente nesse ponto, esquecendo todo o contexto por trás do que fez ser possível um governo como esse.
O primeiro grupo é composto pelos liberais não bolsonaristas ou que romperam com o governo. No geral, esse é o grupo da 3ª via que, com exceção clara de Ciro Gomes, foca o debate no governo Bolsonaro, tentando salvar a agenda econômica. Na concepção dessa turma, o governo Bolsonaro é uma ameaça à democracia e um desastre para a pandemia, mas a agenda tocada por Paulo Guedes tem elementos positivos e o modelo econômico não está funcionando por conta da instabilidade e das ininterruptas crises políticas. Esse grupo também nutre certa crítica ao sistema político, mas com forte viés lavajatista que pressupõe a moralização da política pelo judiciário. Esse grupo também foca o debate na discussão sobre a polarização, casando a preservação da agenda econômica com uma crítica à política para fugir da possibilidade de um segundo turno entre Bolsonaro e Lula, como se o problema fosse só esse.
O segundo grupo é composto pelo próprio Lula e pelo Partido dos Trabalhadores. Nesse caso, o foco da crítica é unicamente no governo Bolsonaro. Embora o PT ainda trabalhe com uma certa crítica às políticas econômicas do governo Bolsonaro — nunca uma crítica ao modelo que impera no Brasil desde os anos 90 —, o foco da discussão parte da tentativa antecipada de “bipartidarizar” o Brasil para 2022. A estratégia eleitoral do lulismo envolve manter Bolsonaro no poder e com força suficiente para ir ao 2º turno, mas fraco o suficiente para perder. A presença de uma figura desastrosa e antidemocrática como Bolsonaro faz com que a estratégia de Lula seja se colocar como a única alternativa a Bolsonaro, forçando a dissolução de todas as contradições do lulismo no poder. Não há uma crítica ao modelo econômico, pois facilita uma composição com as elites econômicas (que hoje estão em peso no primeiro grupo descrito) e nem ao modelo político, já que facilita uma reconstrução das mesmas alianças que o PT conduzia enquanto estava no governo.
No processo de desgaste do bolsonarismo, ambos os grupos querem a direção do processo, impondo suas urgências e varrendo suas contradições para debaixo do tapete. O primeiro grupo quer tocar a agenda econômica de Paulo Guedes sem Bolsonaro e o segundo quer forçar a polarização em troca de uma possível vitória fácil no segundo turno. Ambos esquecem que o que nos trouxe até aqui foi justamente uma soma de fatores que dificilmente eles colocam em discussão.
O modelo econômico em vigência no Brasil resultou em concentração de renda, desindustrialização e crises constantes. Será que isso não teve nada a ver com a eleição de Bolsonaro? Enquanto isso, nosso sistema político esqueceu a população e transformou a política, que deveria ser um instrumento de transformação, em um grande balcão de negócios. Além disso, a forma de combate à corrupção empreendida pela Lava Jato, destruindo a economia e a política, reforçou esse sentimento de abandono no meio do povo. Como vamos ignorar isso?
Por conta de mero cálculo eleitoral, tentam sufocar o necessário debate sobre o nosso passado e o nosso futuro. Uns tentam preservar o modelo econômico, como se ele não tivesse nada a ver com a situação atual, enquanto outros tentam preservar o modelo político em troca de alianças futuras com os mesmos de sempre. A única alternativa possível para o Brasil é colocar tudo isso em debate e entender, de uma vez por todas, que se não compreendermos as raízes do bolsonarismo e do que fez ele ser vitorioso, estamos preparando outro ciclo, talvez até pior, de vitórias da extrema-direita. É hora de união contra Bolsonaro, mas também é hora de muita responsabilidade para entendermos o que nos trouxe até aqui e o que pode nos tirar dessa situação.