Paulo Freire vive?

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Por Rafael Valladão Rocha* – Paulo Freire é dessas personalidades históricas capazes de suscitar animosidades de todo tipo. Em meio a apoiadores e detratores igualmente fanáticos, deve-se fazer um questionamento: o que se pode aproveitar de Paulo Freire para o enfrentamento dos desafios colocados diante da educação brasileira? Se é verdade que o pedagogo recifense não merece ser rebaixado à condição de bode expiatório nem elevado ao pedestal beatífico, o que resta do patrono da Educação? Por ocasião do centenário de Freire, temos a oportunidade de reflexões mais desapaixonadas, e este texto tem a modesta intenção de contribuir para o debate.

É interessante observar o conteúdo discursivo presente nas falas e eventos acadêmicos referentes a Paulo Freire. Ouve-se sempre o mesmo encômio: Freire representa uma educação libertadora contra um ensino conservador e alienante; simboliza a redenção epistemológica do homem oprimido; vocaliza a demanda silenciada das classes populares por conscientização crítica e participação política. A biografia do pedagogo está repleta de episódios não raramente invocados, em tons heroicos, por seus seguidores: a alfabetização maciça em Angicos, a prisão e a fuga, o périplo intelectual por países de primeiro e terceiro mundo, o retorno triunfal ao Brasil, a gestão da educação de São Paulo etc. No retorno do exílio, Freire disse querer “reaprender o Brasil”. Na verdade, foi o Brasil que reaprendeu Freire – perseguido em 1964 e louvado de 1980 em diante. Em função de diversos fatores, o pedagogo logrou espantosa popularidade nos meios acadêmicos da Pedagogia, tornando-se referência principal para educadores e políticos. Criou-se um culto à personalidade de alguém que desconfiava de personalidades cultuadas.

Diante deste ruidoso movimento idólatra, a resposta iconoclasta é deveras tentadora. Contudo, não é tão proveitoso apedrejar a estátua adorada quanto apontar a fragilidade do pedestal. Não é razoável criticar Freire da forma precipitada e histérica com que movimentos como o Escola sem Partido reagem à hegemonia freireana. O grupo capitaneado por Miguel Nagib comete o mesmo equívoco fundamental de Paulo Freire, pois rebaixa a sala de aula à condição de arena de combate político, submetendo os alunos a uma asfixiante atmosfera ideológica que em nada contribui para o progresso da educação. Deve-se responder ao sectarismo fanatizado que divide o país em nós e eles, mas sem jamais endossar o mesmo dualismo com o sinal invertido.

Para começo de conversa, é justo destacar os méritos da obra legada por Paulo Freire. Quando se observa o que Freire produziu de duradouro, ao promover ações pedagógicas inovadoras para sua época, ao menos dois momentos são dignos de elogio. O primeiro deles está no início da década de 1960, quando Paulo Freire se associou a grupos artísticos e movimentos sociais para estimular uma aproximação entre a escola convencional e práticas de cultura popular – danças, músicas, festas, ritos, sabenças – abrindo caminho à apropriação pela escola dos saberes gestados no interior da comunidade em volta da escola. Foi também junto do Movimento de Cultura Popular que Freire liderou o bem-sucedido experimento de alfabetização maciça em Angicos, cidadezinha no Rio Grande do Norte. Centenas de jovens e adultos potiguares foram alfabetizados no bojo de um empolgante projeto colaborativo, do qual participaram universitários, professores, políticos, intelectuais e artistas. Não há como negar o mérito do caso Angicos, não apenas por seus resultados concretos de alfabetização, mas também, e sobretudo, por seu caráter exemplar para iniciativas posteriores de educação de jovens e adultos. Para alcançar os adultos que nunca foram para a escola, ou dela se retiraram antes de concluir os estudos, o Brasil pode buscar inspiração no trabalho freireano com os homens e mulheres dos rincões sertanejos.

Existe, porém, um paulofreireanismo – nos termos de Flavio Henrique Brayner –, que envolve uma verdadeira confissão de fé. Mais que o reconhecimento destes méritos, a adesão irrestrita ao paulofreireanismo implica na aceitação da teoria social e política esposada por Paulo Freire. Como um pensador multifacetado, ele desenvolveu suas ideias pedagógicas nas bases de um pensamento social e político plural, composto de elementos de nacionalismo isebiano, variantes maoístas do marxismo, e notas soltas de socialismo cristão. A despeito do caráter assistemático e não raramente ambíguo da obra freireana, é possível identificar em suas ideias as marcas de um estruturalismo sociológico que condiciona a transformação social à implosão revolucionária da ordem presente. A crítica às estruturas sociais de opressão socioeconômica, presente em todos os livros e pronunciamentos do pedagogo, não traz consigo propostas factíveis de mudança – mas apela tão somente ao cadáver insepulto da revolução. Se a revolução anunciada não se concretiza, a ansiada mudança social não se concretiza, pois Freire concebe uma meta-estrutura de opressão, inatacável por meios convencionais de política não-revolucionária. É um exemplo do que Roberto Mangabeira Unger chamou de “teoria social de estrutura profunda”. Para Freire, como para Karl Marx, a mudança não pode se operar de maneira endógena – não basta reformar, é preciso destruir.

Diante da injusta sociedade de classes, Freire convoca alunos, professores e artistas à luta por construir uma nova realidade. A educação progressista almejada por Paulo Freire não se limita ao ensino. Trata-se, isto sim, de um complexo movimento psicossociocultural de mobilização das massas oprimidas em direção à edificação de uma civilização baseada em valores humanistas e solidários. É lícito afirmar que a pedagogia freireana se traduz em propedêutica da revolução, não em práticas pedagógicas limitadas aos domínios particulares da escola. Ronai Rocha, no ótimo livro Quando ninguém educa, chama a atenção para o fato de a Pedagogia do Oprimido ter sido escrita mais como crítica ao dirigismo de líderes revolucionários e menos como um conjunto de propostas para a efetivação do processo educacional. Não por acaso, em toda a obra maior do pedagogo, a escola é tão pouco citada que o leitor desavisado teria a impressão de estar lendo um panfleto leninista. A ênfase na disrupção revolucionária cresce na medida em que se desacredita a possibilidade de um reformismo via instituições e poderes constituídos.

Formado no catolicismo popular e no marxismo difuso, Freire assimilou dos cristãos perseguidos por Roma e dos socialistas revolucionários o mesmo ceticismo com o Estado. Talvez por isso, o estruturalismo sociológico de Freire aposta todas as fichas em pelotões acéfalos, não em instituições públicas – uma romântica espontaneidade criativa do povo comum é contraposta à rigidez da institucionalidade estatal. Freire chegou a defender a formação de escolas comunitárias paralelas às escolas públicas governamentais, já na década de 1990. Nesse sentido, a escola é criticada por Freire na medida em que a instituição educacional conserva e perpetua valores e práticas típicos dos “opressores”. Apropriando-se das teorias reprodutivistas de Bourdieu e Passeron e tropicalizando-as, Freire se desdobrou em dois para denunciar o analfabetismo, de um lado, e atacar a escolarização, de outro lado. O falso dilema consistia no seguinte: deve-se alfabetizar as populações rústicas ou livrá-las dos grilhões cognitivos das classes dominantes? Assim, Freire contribuiu decisivamente para colocar a escola convencional sob suspeição, sem se dar conta que a pobre escola convencional não alcançava – como ainda hoje não alcança – todas as crianças e adolescentes.

Nesse momento, dois problemas saltam aos olhos: como promover a mudança social por meio da educação escolar sem condicioná-la à hipótese improvável da revolução, e como robustecer nossas instituições educacionais sem torná-las estéreis e engessadas. Paulo Freire não foi capaz de propor soluções para estes problemas; antes, contribuiu para torná-los mais agudos. A educação escolar pode, sim, servir ao propósito de transformação positiva da realidade social mais ampla, porém não pode fazê-lo sem manter-se atenta a suas atribuições particulares. Cabe às Forças Armadas a defesa do território nacional, à Justiça o cumprimento da lei, ao arquiteto o desenho do que se vai construir, e, do mesmo modo, cabe à escola ensinar ao aluno elementos da cultura técnica, científica e filosófica consagrados pela civilização moderna. Qualquer tarefa além desta deverá ser necessariamente secundária, na contramão do que pretendeu Paulo Freire, ao alfabetizar seus alunos no mesmo passo em que os “conscientizava” política e socialmente. De qualquer modo, só será possível orientar a educação no sentido da transformação positiva quando abandonarmos a revolução como condição necessária para a mudança – algo que certos intelectuais e jornalistas não parecem dispostos a fazer.

Para respeitar a memória do pedagogo pernambucano, deve-se considerá-lo como foi: humano. Paulo Freire nunca foi herói para libertar os oprimidos dos grilhões cognitivos, nem vilão para inocular o veneno ideológico em crianças inocentes. Superestimá-lo de um jeito ou de outro é não fazer justiça a um intelectual que fez o que pôde pelo bem de seu país – dentro do que considerava bom, justo, conveniente. A despeito de seus méritos incontestáveis na área da educação de jovens e adultos e na utilização didática da cultura popular, Freire não é capaz de responder aos desafios contemporâneos da educação nacional. Para superar este patrono da Educação, é necessário uma reorientação das políticas educacionais e da reflexão pedagógica no sentido de propor alternativas institucionais para os problemas que nos acometem. Reorientação capaz de reformar a escola, e com ela a sociedade, sem apostar na destruição como método de criação.

*Por Rafael Valladão Rocha, Professor de Sociologia, graduado e licenciado pela Universidade Federal Fluminense.