Ciro resgata Vargas em plena Globo: soberania popular é plebiscito

Ciro resgata Vargas em plena Globo soberania popular e plebiscito
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A principal mensagem de Ciro Gomes na sabatina da Globo nesta terça-feira (23/08) foi que a democracia brasileira fracassou. Para o trabalhista, restaurá-la envolve mais do que simplesmente uma reforma institucional: é preciso trazer o povo e a integridade territorial novamente para o processo decisório, repactuando o Brasil e preparando um plano ousado para os próximos 30 anos.

Como repetimos em diversas colunas, este fracasso da democracia é objetivo. Seu fundamento é mais do que normalmente se encaixa na categoria de econômico, é material. São mais de 30 anos de neoliberalismo que arrebentaram a indústria nacional, destruíram nossa defesa, dilaceraram nosso mercado de trabalho e reduziram a cacos nossa infra-estrutura.

Daí a necessidade de reformas ousadas. Ciro fala, por exemplo, em reestruturar todo o sistema previdenciário, ampliando uma de suas três “pernas”, da Assistência Social, de forma a garantir um auxílio de 1000 R$ para cada Trabalhador do Brasil, constitucionalizado. O fundamento dessa preocupação é o fato de que dezenas de milhões de brasileiros que atingirão a terceira idade nos próximos anos sem nenhum tipo de cobertura previdenciária, por conta da proporção do mercado informal.

Para financiá-lo, Ciro defende a execução do que está escrito na Constituição, que prevê a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, jamais implementado durante os cinco governos petucanos. Com uma alíquota calculada em conjunto com o IOF para remessas afim de evitar fuga de capitais, o sistema pode assegurar que uma contribuição módica de cada um dos 58 mil brasileiros mais ricos garantirá o prato na mesa de milhões de brasileiros empobrecidos pela abertura comercial desenfreada que desindustrializou o país e pelos juros escorchantes, desnecessários e antieconômicos.

Neste momento, os entrevistadores da família Marinho indagam a respeito da viabilidade política de um projeto tão ousado. Os dois jornalistas trazem à baila o fato de o PDT ter chegado razoavelmente isolado no pleito.

Com muita cordialidade e clareza a despeito das interrupções, o candidato trabalhista explica a razão deste suposto isolamento. Ciro se coloca como um abolicionista em luta contra o sistema escravagista – no caso, a escravidão da plutocracia financista que impõe o Teto de Gastos, as privatizações criminosas e a destruição dos direitos trabalhistas. Como tal, não poderia deixar de ser o alvo preferencial dos rentistas, tentando isolar sua candidatura e procurando inviabilizar alianças que, apesar de forte resistência, aconteceram em muitos casos.

Além disso, Ciro é cristalino em mostrar que a questão regional é determinante na conformação particular do Brasil. Desde José Bonifácio, passando por D. Pedro II e Getúlio Vargas, qualquer transformação significativa do Brasil depende do equacionamento da delicada balança de poder regional. Três décadas de neoliberalismo devastaram as finanças públicas dos entes federados. Esta repactuação orçamentária será um dos pilares da governabilidade da sua presidência nacionalista na medida em que a negociação com os governadores mediará a negociação com as bancadas parlamentares de cada estado.

Em um gesto em defesa da democracia e de um projeto nacional, Ciro vai abdicar de sua releição. Com isso, apagará o imediatismo eleitoral que norteou as decisões políticas dos três presidentes petucanos e redundou na manutenção da “demagogia cambial”. Isto é, a importação desenfreada que anestesiou os brasileiros por tantas décadas da devastação econômica, possibilitada pelo superciclo de commodities.

Além do mais, Ciro transformou sua eleição na pregação de um Projeto Nacional. Seu objetivo é galvanizar as massas para defender esta repactuação fundamental de todo país. Como não podia deixar de sê-lo, nenhuma mudança significativa do Brasil pode prescindir dos Trabalhadores do Brasil como sujeito coletivo, conhecendo a si mesmo e agindo segundo esse conhecimento. Por isso, Ciro ostenta o “Dever da Esperança” como verdadeiro livro vermelho na mão dos militantes engajados na mobilização popular patriótica. Não há prática nacionalista sem teoria nacionalista.

Mas o ponto alto da entrevista foi a defesa da soberania popular patriótica em torno de plebiscitos necessários para implementar o “reformismo apimentado”, na síntese de Brizola. Embora a defesa do plebiscito tenha arregalado os olhos dos funcionários do “doutor Marinho”, ela é plenamente constitucional e muito mais democrática do que a hipnose seja pela mídia ou, pior ainda, pelas redes sociais. É a instituição de uma democracia semi-direta pautada na mobilização constante em torno de um Projeto sólido, ordeiro e nacionalista.

Ciro traz de volta a noção de uma “democracia quente” esvaziada no ritual burocrático e marqueteiro que transformaram as eleições durante a vigência do petucanismo. No lugar da imbecilização do eleitorado e da mentira institucionalizada – inclusive do engodo com a militância como o PT pratica contumazmente – a estruturação de um movimento de massas que procure fazer os Trabalhadores do Brasil verem a si mesmos. Em suma, a protoforma do bom e velho Partido leninsta, há tanto perdido.

O candidato trabalhista é cristalino em mostrar que o “presidencialismo de coalizão” que os institucionalistas uspianos usavam para defender a viabilidade da Constituição de 1988 na verdade havia se tornado a institucionalização do conchavo pela entrega de nacos da execução do orçamento federal. Se esse modelo já era péssimo, foi ainda piorado após o golpe de 2016, que trouxe as emendas do relator, conformando o “clepto-parlamentarismo” em que vivemos, cujo primeiro-ministro é Arthur Lira.

O “gramscianismo vulgar” petucano só piorou a situação. O que o sardo disse com sua metáfora militar da “guerra de posição” pela ocupação de posições na Sociedade Civil e no Estado nada tinha a ver com a capitulação completa aos interesses financistas e da pequena política cleptocrática que o PT praticou. Sem a transformação do todo da formação econômica-social não há transformação alguma, ainda que paulatina. A contradição central do Brasil é o imperialismo e não mexer em sua inserção subordinada no sistema econômico mundial é ser mais do que conservador: é reacionário.

Mais do que isso, o suposto “pragmatismo” que não produzia galvanização de massas foi o que acabou com a combatividade dos Trabalhadores organizados, resultando no triste espetáculo que foi a falta de reação da esquerda frente aos avanços do colonialismo desde o golpe de 2016 (e antes). Não poderia ser diferente: que fração da classe trabalhadora poderia ser galvanizada por um partido com um governo neoliberal? Veja que não estamos falando do falso dilema de conciliação de classes ou não. Há um programa efetivamente radical e viável, aqui e agora, e não nos engodos para a militância que o PT institucionalizou. Qualquer leitor de Ho Chi Minh sabe que são as vitórias na Guerra Popular que mantém galvanizada classe em torno de um Projeto. No pragmatismo petista, entregava-se o principal em troca do acessório. De modo totalmente inverso, o “segredo” de Ciro Gomes para a governabilidade do Brasil é a mobilização popular, que se torna um círculo virtuoso, no qual cada vitória galvaniza ainda mais o movimento, que produz ainda mais vitórias.

Esse “segredo” de Ciro na verdade é a governabilidade trabalhista em sua síntese. Como o próprio candidato nacionalista disse, ele é “vassalo do povo brasileiro” e por isso não poderia deixar de ser trabalhista. Não podemos esquecer que a Revolução de 1930 teve como dois objetivos centrais equalizar a questão regional, por conta da excessiva predominância do eixo Minas-São Paulo, como estabelecer um sistema eleitoral fora dos conchavos do “voto de cabresto” que esvaziara a promessa democrática dos positivistas no 15 de novembro de 1889. Não à toa, o vice de Vargas era paraibano e a Aliança Liberal que ele encabeçou era uma ampla coalizão de lideranças políticas preteridas pelo eixo sudestino dominante.

Não só isso. A mobilização popular foi uma constante do varguismo. Seja na mobilização para a Segunda Guerra Mundial, nas lutas pelos direitos trabalhistas que contaram com intensa mobilização sindical durante o Estado Novo ou no queremismo, a mobilização permanente de massas era um componente central do varguismo. Goulart fizera o mesmo para reajustar o salário-mínimo e Brizola foi a voz pela qual ecoou o grito de todos os brasileiros na campanha da legalidade.

Mais do que um Projeto de governo, Ciro deixa claro que essa mobilização popular visa a construção de um Projeto de Nação para os próximos 30 anos, cuja métrica são os indicadores sociais dos países europeus. Mas essa é somente a métrica: seu modelo é o Brasil Trabalhista em luta por soberania.

No bom estilo latino-americano, Ciro arrematou a entrevista com uma proposta que visa transformar o particular imediato dos brasileiros em ponto focal para que eles pensem no todo. A Lei Anti-Ganância, que tem por objetivo coibir os ganhos imorais dos rentistas com a dívida dos brasileiros não só traz votos para o candidato nacionalista e ajuda a destravar um dos motores da economia, o consumo; indica para a mobilização patriótica o inimigo central: a plutocracia financista.

Como não cansamos de repetir, a crise da democracia de 1988 tem a ver com a mudança estrutural que está acontecendo na economia mundial. Sua vigência foi possível durante a fase ascendente do neoliberalismo que para o Brasil apareceu como o superciclo das commodities, isto é, o preço moderadamente elevado dos bens primários que exportamos. Em algum sentido, também foi a paz dos cemitérios, porque a estabilidade político-institucional do “petucanismo” (1994-2016) veio acompanhada do neoliberalismo e com ele a desindustrialização e a inserção subordinada do Brasil no sistema econômico mundial. Somente a repactuação do Brasil visando sua emancipação pode salvar a democracia brasileira.

Para salvar a democracia, Ciro traz de volta o fio da história. É a reinserção soberana do Brasil na economia mundial, a equalização da questão regional e a mobilização patriótica e permanente dos Trabalhadores do Brasil. Em sua candidatura, o varguismo segue vivo.

“E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”

Carta-Testamento de Getúlio Vargas, em 1954.