Um Brasil pós católico

Um Brasil pós católico
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Brand Arenari – O desmoronamento da “ordem católica” parece ser o fenômeno sociológico mais importante da história recente do Brasil. Abruptamente, a hegemonia católica construída durante séculos vem sofrendo declínio inédito: a pouco mais de 40 anos os neopentecostais ousaram avançar sobre o terreno do catolicismo, como nenhum outro grupo religioso o fizera anteriormente, e obtiveram retumbante sucesso em romper com a aqui chamada “ordem católica”, criando um mundo próprio apartado das regras de “etiqueta” social e política anteriores, com ideias e símbolos diferentes, resultando em um novo Brasil, com outros traços, onde claramente a hegemonia nas classes populares já é evangélico-pentecostal.

Uma nova paisagem, juntamente com atores e personagens sociais inéditos surgiu neste pequeno intervalo de tempo – todos nós somos testemunhas e objeto dessas transformações. Grandes templos evangélico-pentecostais despontam no cenário urbano em locais de muita visibilidade, já nas periferias, pequenas e médias unidades deste campo religioso disputam espaço com comércios e botequins locais, numa geografia que os limites entre o sagrado e o profano não encontram fronteiras rígidas, a inédita competição aberta por fiéis embaraça tudo. Neste jogo ocorreu uma desorganização da “geografia do sagrado”, uma quebra da hierofania tradicional, que era representada pela Igreja Católica posta ao lado da praça, marcando o “centro do mundo” e, por conseguinte, o centro da vida.

Por outro lado, algumas referências que atingiam os nossos sentidos e as nossas memórias vão desaparecendo. As referências, sobretudo visuais, das religiões afro-brasileiras, vão sumindo dos nossos olhos, aparecendo apenas nas sessões de exorcismo nos cultos pentecostais, em uma espécie de encarceramento simbólico-religioso. Difícil explicar para maioria das crianças de hoje o que é correr para esquina para ver a avó passar com uma vela compondo numa longa procissão, até mesmo a imagem de um homem vestindo uma batina ou uma de freira soa como algo estranho, quase fantasmagórico para as crianças das cidades médias e grandes do Brasil contemporâneo. Até meado dos anos 90 do século passado a Igreja Católica dominava o espaço público, suas procissões, quermesses, organização de festas juninas entre outras eram a demonstração de sua força social, estavam em todo lugar, no século XXI sua vida social foi se reduzindo às missas, as “ruas” já não eram mais as mesmas, a fé pública e força social religiosa materializava-se nas marchas para Jesus.

Quanto aos atores e personagens, é cada vez mais rara a aparição de rezadeiras e benzedeiras na vida das periferias urbanas do país, o poder de sua reza é substituído pela figura de um pastor com fortes traços de um “assistente social” prático e pragmático capaz de conseguir um agendamento de consulta em um posto de saúde próximo, mas sem abandonar uma inflamada oração contra uma possível ação maligna que enviara a enfermidade. Este novo “mana” converte-se rapidamente em capital político, fazendo surgir mais um tipo social desconectado com o velho mundo da hegemonia católica, uma liderança política surgida de sua própria comunidade, uma representação direta, mais horizontal, direta nas similitudes dos interesses e estilo de vida, horizontal por se tratar de pessoas da mesma origem social. A figura do pastor assistente social/espiritual convertido em liderança política é a novidade por muito tempo sonhada por vários espectros da esquerda progressista, as classes populares virando as costas para as elites tradicionais e construindo sua própria história política, o que implicou também em virar as costas para o campo progressista que lhes parece estar mais conectado com um Brasil do passado, o qual os pentecostais veem rompendo todos os laços por não se sentirem parte dele.

Neste turbilhão de mudanças, um vocabulário novo de “línguas estranhas” preenche nossas bocas e é sentido por nossos ouvidos, de gargantas apertadas por camisas abotoadas até a última casa ressoam “repreendido”, “amarrado”, “alianças”, “propósitos” e “livramentos” que são “profetizados” por “Consagrados” e “Abençoados”. Assim, todos nós “dando testemunho” que surgiu algo diferente em nossas mentes, jeitos e trejeitos, o que para alguns “é uma benção”.

A verdade é que depois de quinhentos anos de existência, o Brasil encara pela primeira vez o desafio de viver em uma sociedade com um complexo e competitivo mercado da fé, pela primeira vez somos desafiados a organizar uma sociedade nacional sem a hegemonia quase monopolística de uma única instituição religiosa, a saber, a igreja católica. Trata-se, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais radicais que um grande grupo social pode experenciar, onde um dos principais eixos organizadores na vida social deixa de desempenhar um papel central, causando, por seu lado, uma fissura na alma coletiva, materializando-se em uma série de novos conflitos e “desarranjos” em que não se tem uma experiência pregressa que possa ensinar algo e orientar por um novo caminho a seguir, todos cercados pela assombrosa aparição do radicalmente novo, aquilo que assusta até a mais serena das almas.

Este é o novo Brasil que cada brasileiro encara ao acordar, provavelmente aos sobressaltos de um sono interrompido por um rosnar ou um grito em um espetáculo de exorcismo, sem um som de um sino ou de uma ladainha murmurante que lhe transmita a sensação de que as coisas estão em ordem e, que o amanhã será uma continuação do ontem. Neste novo panorama de um país “espiritualmente” cindido, assistem de um lado da fenda aberta, grupos muito apavorados frente aos novos barulhos e performances (gritos, rodopios, êxtases), veem-se cercados por uma invasão bárbara mais terrível que a imposta por Alarico à Roma, e sem a presença de um Santo Agostinho que pudesse aliviar a sua desgraça. Já do outro lado, o furor e vigor de uma marcha que parece imparável, inebriada pela sede de conquistas e suplantação de um mundo que lhes parece moribundo, mas que ainda insiste em viver, se veem como revolucionários franceses arrancado cabeças e invadindo palácios para construir um mundo novo e melhor, sobretudo para si mesmos. O que era estático deu lugar ao movimento, o lamento resignado foi substituído pelo sonho de conquistar algo para si e para os seus, a força desses novos sons ecoa nas periferias do Brasil. Faz-se aí uma inédita esperança.

Tudo isso, que parece se aproximar de uma revolução, embora um pouco mais lenta, mas não menos dramática, gera um inegável desconforto em todos nós, sobretudo naqueles que se arvoram a compreender os movimentos da sociedade. Temos a difícil tarefa de entender um Brasil muito diferente daqueles que nos sucederam.

Por Brand Arenari

Doutor em sociologia pela universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, professor do departamento de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Um Brasil pós católico