Um pingo para cada i: Bolsonaro e a imprensa bolsonarista

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Por Tiago Medeiros – Seguindo a mesma onda que concedeu popularidade e sucesso eleitoral a figuras como Donald Trump, Bolsonaro foi beneficiado pelo universo caótico e anônimo das redes sociais, ambiente em que prosperam alguns dos predadores políticos desse início de século. Na selva dos processos eleitorais contemporâneos, os políticos populistas de extrema direita não apenas se dão ao luxo de dispensar a exibição midiática, como eventualmente promovem a própria imprensa profissional e alguns jornalistas pinçados à condição de presas preferenciais.

O contexto político que viabilizou esses sucessos é sob muitos aspectos inédito. O fenômeno do bolsonarismo se consagrou pela experiência artificial de criação e manutenção de bolhas de algoritmo no ciberespaço, algo que foi sendo entretecido sem que os veículos tradicionais de comunicação conseguissem equilibrar a balança das crenças médias em cada bolha com notícias constituídas por critérios profissionais. A massa de brasileiros que se identificaram e ainda se identificam com o presidente, tendo sido por muito tempo órfã de uma representação política a seus olhos autêntica, passou a ter no casamento entre Bolsonaro e as bolhas um lar. E milhões de pessoas Brasil adentro, desde então, passaram a reproduzir a educação política e a visão de mundo bem ajustada ao binarismo que põe Bolsonaro de um lado e qualquer um “contra o Brasil”, de outro.

É bem aqui que figuram novas atitudes no seio da imprensa profissional e uma nova relação que Bolsonaro resolveu instituir entre ambos. Terminadas as eleições de 2018, ele intensificou os ataques contra algumas empresas consagradas da comunicação e alguns profissionais notáveis. Na ausência de adversários políticos, foi justamente a imprensa que se tornou a inimiga principal e mais útil. Amadureceu daí uma curiosa divisão no interior dos próprios veículos de informação e entre jornalistas que se tornaram abertamente mais engajados a favor ou contra o líder maior da nação.

Vale dizer que as disputas políticas entre as empresas de telecomunicação não são uma invenção do século presente, nem do Brasil – vide Fox News e CNN, nos EUA. Entretanto, após Bolsonaro e a preeminência das redes sociais como sendo o teatro principal das interações sociais, a imprensa profissional brasileira tem radicalizado essa divisão. A guerra por seguidores reflete os sentimentos da sociedade no ciberespaço, e tanto jornalistas quanto empresas acomodam-se bem nessas trincheiras, assumindo o papel de críticos do governo ou aderindo hipnoticamente a qualquer decisão governamental. É claro que a contenda assim estabelecida é indesejável, mas no contexto presente um lado goza de vantagens inegáveis pelo flerte com o poder.

Falemos dele. O segundo tipo entre os descritos acima, quer seja jornal, programa de rádio, canal de televisão e de YouTube ou apenas comunicador individual, é bolsonarista, no sentido de ser fiel ao imaginário que articula crenças, visões de mundo e condutas da vida identificadas à figura do presidente, não apenas ao seu governo. Mas esse bolsonarista da comunicação performa como a apenas querer mostrar “o outro lado” das informações. Alguns dos que o fazem são premiados com uma atenção diferenciada e generosa do presidente, em retribuição à qual propaga conteúdos em seu favor e contra a imprensa tomada sempre genericamente num gesto cíclico de afagos e incentivos.

Estamos diante de uma relação complexa, nova e perigosa entre a política e a imprensa, na qual uma lucra com a outra. É importante compreender como isso se dá e denunciar o seu funcionamento. Proponho que leiamos o fenômeno pelo que ele agrega em termos de imoralidades. Reconheço aí três delas: a profissional, a econômica e a política.

A imoralidade profissional é a participação em um esquema de propagação de fake news. Os veículos de informação bolsonaristas não costumam ser a origem da notícia, mas emprestam maquiagem jornalística às falsas informações que, atacando adversários e teses contrárias às do presidente, o blindam. É por essa razão que as campanhas de denúncia da imprensa tradicional contra eles ainda são inorgânicas, fragmentárias e pouco eficazes.

Tudo funciona por meio de um método engenhoso: há um centro de elaboração das fake news que a imprensa e alguns parlamentares chamam de “gabinete do ódio”. De acordo com alguns políticos que depuseram na CPI das fake news, esse centro é coordenado por Carlos Bolsonaro, o filho do presidente. Falsas informações ali são criadas e enviadas por disparos em massa através de grupos de WhatsApp. Elas recebem financiamento de empresários ideologicamente alinhados com o bolsonarismo. Essa propagação tem um vasto escopo e alcança brasileiros mundo afora. As pessoas que creem nos discursos de Bolsonaro e o seguem tem, por esse meio, o sentimento de continuidade de suas crenças políticas a despeito do que informam os veículos profissionais de comunicação. A função dessas mensagens é a de retroalimentar os temas concernentes à política e conservar o imaginário bolsonarista vivo, em algo como uma realidade assumidamente paralela.

Após a propagação, os veículos de informação bolsonaristas se apropriam dos temas sem questionar as origens e sem explorar a verdade – às vezes sequer a verossimilhança – dos fatos. Tomam a notícia já em circulação e a discutem, operando a substituição massiva da informação pelo comentário político e adotando o expediente da interpretação sobre (e até contra) os fatos. Sendo propagada por um veículo profissional, a boataria de WhatsApp fabricada originalmente pela usina de assuntos do gabinete do ódio adquire o status de verdade, porque tem a sua relevância confirmada pela boca de um comentador político contratado por uma empresa de comunicação – e isso sem que o veículo em questão precise afirmar perante o seu público a confiabilidade da origem do que é comentado. Com o álibi de apenas comentar opiniões e polêmicas que são objeto de discussão corrente, eles não figuram como os responsáveis pela propagação.

Ponhamos então um pingo no segundo i, o da imoralidade econômica. Ela consiste nas vantagens que um pequeno conjunto de programas e comunicadores adquirem em virtude de sua proximidade com o governo. Em coerência com a animosidade contra os profissionais da imprensa, Bolsonaro optou, ainda em seu primeiro ano de mandato, por não prestar entrevistas senão aos profissionais da comunicação que evitam lhe fazer perguntas indesejadas ou apontar contradições em sua conduta. Sua comunicação com o povo se efetivou paulatinamente pelo resumo de atualizações providos diretamente pelo presidente nas “lives de quinta” através de seu canal no YouTube.

De um tempo para cá, apenas um programa de uma emissora de rádio participa das lives na condição de representante da imprensa – embora, nas palavras do próprio presidente, o programa atue como um levantador em uma partida de vôlei, servindo-lhe a oportunidade para os cortes. Contra o mesmo programa, aliás, há conhecidas acusações de propagação de fake news relativas aos temas da Covid-19 e dos antídotos em circulação.

Mas, na parceria com Bolsonaro, a equipe do programa colhe a vantagem do monopólio do acesso ao presidente. Não é uma mera simpatia pessoal e carismática entre um chefe de Estado e alguns profissionais da imprensa. É a concessão restrita de acesso a algo do interesse público a uma empresa que tem a sua receita da veiculação de informações e que o faz em primeira – e única – mão.

As pessoas que não desejam acompanhar o presidente através de seu canal no YouTube, por não quererem, por exemplo, ampliar a quantidade de views em uma página privada como a dele, ou as pessoas que foram bloqueadas pelo próprio presidente em outras plataformas digitais – o caso de muitos jornalistas – são obrigadas a conferir canais semioficiais como esse dos levantadores. Trata-se aqui dos únicos meios profissionais de acesso a Jair Bolsonaro, os únicos que o exibem, que o tem como fonte primária disponível e com os quais ele interage. O número de visualizações desse e de outros canais amigos do rei nas plataformas digitais e de seguidores nas redes sociais tem aumentado enormemente desde que essa parceria tem sido exercitada.

Finalmente, o último i, o da imoralidade política. Bolsonaro já não tem partido há mais de ano e meio. Durante as eleições, o PSL lhe serviu de trampolim eleitoral para ser impulsionado circunstancialmente pela popularidade espantosa que conquistara o deputado. Deu certo. Mas, alguns meses após a lua de mel oportunista, Bolsonaro pediu o divórcio a Luciano Bivar. Hoje, sem o único instrumento formal da política na democracia com o qual operar a unificação de sua mensagem, a organização das linhas de diretriz do governo, as estratégias de ataque contra os adversários, que são competências partidárias, Bolsonaro se aninha na cumplicidade de sua imprensa.

A colaboração entre a imprensa difusora de fake news e o chefe de Estado brasileiro assegura uma militância coesa. A imprensa bolsonarista é complacente com os que Bolsonaro tem por aliados, mesmo os de ocasião. Ela é agressiva e severa com adversários atuais e potenciais. Ela prepara o terreno para as manobras difíceis do presidente, como as de destituição e nomeação a cargos públicos. Em síntese, ela atua como o partido político que Jair Bolsonaro não precisou registrar na Justiça Eleitoral.

Insisto, estamos em um contexto histórico, sob vários aspectos, único. Descrédito da política, redes sociais, crise econômica, crise sanitária, pandemia… No meio da confusão, todavia, convém tatear alguns dos nós sem o desate dos quais o caos permanecerá com a mesma consistência. A colaboração imoral exposta nos parágrafos acima pode não explicar todo o êxito do presidente – tampouco essa foi a intenção do texto –, mas ela é crucial para se compreender a conservação do imaginário bolsonarista após dois anos e dois meses de um governo que dispensa adjetivos. Parafraseando Euclides da Cunha, é um crime, denunciemo-la.

Por: Tiago Medeiros.
Doutor em Filosofia. Professor do Instituto Federal da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (LABRAP).