Não quero desenvolver profundamente agora, mas penso que o Vladimir Safatle, intelectual que respeito e até admiro, não logrou ainda superar um dos vícios mais clássicos do “uspianismo de esquerda”: a incapacidade de absorver positivamente Lenin.
O resultado é um combo, ainda que muito crítico à ordem dominante e interessado na renovação da política emancipatória (o que já é uma virtude e tanto no ambiente acadêmico), de economicismo (seja histórico/sociológico ou “libidinal”, à moda de frankfurtiano e “anarco-desejante”, ao estilo “Anti-Édipo” de maio de 68) e movimentismo.
Explicando: nesta concepção, há uma confusão entre política e reivindicações de movimentos de massa. Política se reduz à sua dimensão acontecimental (irrupções de massas, revoltas populares, etc) e reivindicativa. Os movimentos, suas demandas, queixas e insatisfações (sejam econômicas ou “pulsionais”, não importa) fazem política. O que não é bem o que ocorre: movimentos fazem história (isto é, abrem uma nova possibilidade na situação) mas não política propriamente. Permitem a criação de uma nova política, ao qual cabe pensar e praticar.
Ademais, o esquema movimentista embute uma variação latente de reformismo, como em Antonio Negri: a dimensão afirmativa dos movimentos está na proposição de um programa de Estado alternativo, com sua lista de exigências extraídas diretamente da pluralidade dos movimentos.
É por isso que a variação entre “ultra” (uau! black blocs, junho de 2013! a potência dos corpos em revolta!) e eleitoralismo (apoio bastante acrítico a Lula, Boric e até a Haddad) é uma espécie de lei da ação política pequeno-burguesa de esquerda: o Deleuze dos rizomas é o mesmo que chegou até a almoçar com Mitterrand; o ultra-movimentista Negri é também o que luta por “uma nova globalização”, no equema impotente do alter-mundismo. Alguém mais maldoso poderia dizer que par pequeno-burguês anarquismo/arrivismo se impõe aqui.
Um dos sintomas mais típicos dessa concepção está nos deleuzeanos cariocas, ao estilo Bruno Cava: amam o carnaval e a festividade dos movimentos (preferencialmente se nele dominarem tendências nocivas, como o individualismo e o “horizontalismo” despolitizado) mas odeiam a figura da “polarização” e do militante partidário. Isto é, odeiam política, que identificam apenas com o poder autoritário de Estado.
Para sair deste impasse, há que se retomar a ideia que, no final das contas, remonta a Lenin: “movimentos de massa” e “política de novo tipo” não formam relação de unidade, nem mesmo de causalidade. Os primeiros PODEM permitir uma nova política a depender da vontade, disciplina e lucidez política de militantes (que não são a mesma coisa que líderes de massa).
A separação entre trade-unionismo (que Lenin demonstrava ser simétrico a anarquismo ou terrorismo) e política me parece ser o grande elemento foracluído deste discurso safatleano (mas eu poderia dizer que está também em Paulo Arantes, a despeito do imenso mérito de ambos).
Como consequência mais direta e óbvia, nada é sequer tematizado sobre organização e estratégia, e a tática se transforma em pura excitação histérica imediatista. Confundem-se elementos niilistas, performáticos (veja como chegam a idolatrar a pura destruição e vandalismo como um fim em si mesmo) e individualistas do movimentismo com virtudes revolucionárias, marcadas mais pela paciência e temporalidade de longo prazo do que pelo frenesi de curta duração. Outra, menos óbvia, é que as análises do fascismo brasileiro viram ensaios sociológicos ou psicológicos, incapazes de gerar diretivas políticas concretas.
ps: Isto aqui é apenas um esboço meio anárquico, um fluxo de consciência, sobre uma tendência ideológica que, ao meu ver, funciona como obstáculo epistemológico a um balanço efetivo de junho de 2013.
Estou cansado, desde aquela época, da falta de auto-crítica de alguns de seus atores e da intelectualidade próxima, incapazes de entender as deficiências políticas das concepções autonomistas, espontaneístas, anti-políticas, que permitiram que o MPL abdicasse de qualquer função dirigente, liberando o caminho para a infiltração e cooptação fácil do movimento. A própria imagem evocada por palavras como “estilhaço” ou “neblina” (dois nomes das iniciativas das mais interessantes e promissoras desta intelectualidade) ainda se mantém muito presa ao caráter evanescente e pontual do acontecimento, mais do que a um futuro afirmativo e construtivo.