Por que o tráfico de armas é mais urgente que o tráfico de drogas?

Por que o trafico de armas e mais urgente que o trafico de drogas
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Nós nos acostumamos no Brasil a priorizar as interpretações em vez de os fatos, a colocar fatores remotos na frente das causas imediatas. O problema da violência urbana no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Salvador, em Belém, em Natal, em Fortaleza e em qualquer cidade do país tem vínculos inequívocos com o narcotráfico. Mas o único meio da violência prosperar contemporaneamente, como prática, como cultura e como negócio, é com a posse de armas de fogo e munições. Por mais intimidador que seja um criminoso, ele não pode tomar bocas de fumo, fechar ruas, sequestrar e extorquir comerciantes, usando apenas estilingues ou nunchakus. É por ter revólveres, rifles, metralhadoras e muitas balas que ele tem poder.

Um oficial da PM baiana que leu um de meus textos considerou imprudente de minha parte menosprezar o tráfico de drogas entre as prioridades no combate à violência. Está claro para ele — como para mim — que é a venda de drogas o que financia todo o crime organizado. Mas por que pensar que o financiamento, que é um fato, é o que confere poder aos criminosos? Essa é uma confusão sobre a legitimidade das regras do jogo social e econômico. É como se a dinâmica econômica não pudesse ser questionada naquilo que ela fere a sociedade. A pessoa pensa: se o criminoso, que demanda, não tivesse o dinheiro que ele obtém da venda de drogas, então as armas, que são ofertadas, não chegariam a suas mãos. A minha questão é: por que há essa oferta? Por que devemos achar legítimo que quem queira comprar bens e serviços que tiram vidas podem fazê-lo desde que tenham como pagar?

Comprar armas não é como comprar automóveis ou apartamentos. Não são lojistas e corretores os que conferem acesso livre a esses bens. E não são quaisquer cidadãos os que estão dispostos a pagar dezenas de milhares de reais em um AK 47. Existem armas e munições em lotes para as facções, porque há um esquema ilegal de distribuição e venda, que envolve agentes públicos, especialmente do Exército e das Polícias. E esse esquema é o que dá o único instrumento de poder a esse vasto e anônimo espírito de violência que nos cerca. Desmontá-lo tem que ser a nossa prioridade.

Essa constatação deveria ser suficientemente eloquente para priorizarmos políticas públicas de combate ao tráfico de armas em vez de combate ao narcotráfico. Mas o leitor poderia jogar o mesmo argumento contra mim, lembrando que também as drogas só são ofertadas por haver um esquema ilícito favorável, e que adquirir heroína não é como comprar um sanduíche. Mas considerem o seguinte:

(a) o número de pessoas que consomem drogas é infinitamente superior ao de pessoas que consomem armas, pois o uso de drogas, quando não é recreativo, é medicinal;
(b) a circulação de drogas é muito mais difícil de ser coibida, porque é mais difícil fiscalizá-la, afinal, transportar um saquinho de skank na bolsa não é como entocar uma metralhadora no porta-malas;
(c) a capacidade de produção de drogas é muito mais democratizada do que a de fabricação de armas: pode-se plantar maconha em quintais e montar laboratórios caseiros de drogas sintéticas;
(d) a existência de facções e milícias é inviável em um contexto em que há drogas e não há armas – não é porque há drogas que elas operam, é porque há armas que elas operam, inclusive com drogas.

Isso tudo serve para mostrar que o trabalho necessário a inviabilizar o narcotráfico é dispendioso e tende a ser inócuo se não for complementar ao trabalho de neutralizar a disseminação de armas no país. O que institui o pacto da insegurança, do qual o narcotráfico se beneficia, são os artefatos que subtraem instantaneamente as vidas dos cidadãos, não o que os cidadãos estão dispostos a usar mesmo ilegalmente.

Esses fatos não precisam ser interpretados como um álibi para que o poder público desista do problema das drogas. O problema tem que ser enfrentado enquanto existir. Estou discutindo apenas o que é e o que precisa ser prioridade em matéria de segurança pública. Nesse caso, nosso pavor não está no ato de quem traga ou cheira, mas no de quem dispara.