O tráfico de armas e quem o enfrente

O trafico de armas e quem o enfrente
Botão Siga o Disparada no Google News

O Brasil vive em guerra em muitas capitais e cidades do interior. Desde que os grandes conglomerados do crime organizado exportaram suas atividades do Sudeste para as demais partes do país, essa guerra vem se consagrando como fenômeno nacional.

A suspensão dos direitos de ir e vir, a formação objetiva de um poder paralelo e a ocupação de territórios que envolvem bairros inteiros nas cidades são fatores suficientes para o enquadramento do fenômeno como tal. Pode-se discutir se se trata de guerra civil em sentido estrito ou se se carece de um refinamento no conceito e na tipologia que a figurem, mas não é tolerável que se aborde esse problema com eufemismos: estamos, sim, em guerra. Esses a quem chamamos de criminosos, na verdade, atuam como e se consideram soldados.

Ao nível de generalização e alcance que a coisa tomou, violência e insegurança constituem o pacote do pior problema do país atualmente. É muito mais grave do que a fome, a desigualdade, o analfabetismo, o racismo ou inflação, porque ceifa objetiva e compulsivamente vidas de todos as regiões, classes, grupos e identidades. É um mal anônimo, cego, poderoso e descontrolado.

Agrava a situação a ausência de análise, interpretação e intervenção nesse fenômeno, que teriam de ser propostas de forma acurada e imparcial. Intoxicadas por ilusões distintas, contudo, as esquerdas e as direitas lutam pelo monopólio do equívoco ao encarar a questão.

As esquerdas – dos partidos, da mídia identitária e das universidades – tratam-na como efeito tardio de exclusões históricas acumulada e lançam mão de platitudes, como a precariedade ou ausência do Estado em prover serviços públicos nas zonas pobres e periféricas dos centros urbanos à guisa de correção, supondo que o aperfeiçoamento de condições estruturais externas à violência inibirá o acesso fácil da juventude ao crime.

As direitas – dos partidos, da mídia conservadora e das corporações de segurança pública – preferem atribuir a criminalidade a uma propensão quase inata do criminoso, uma essência pervertida e desviada que lhe seria intrínseca, contra a qual recomendam medidas fragmentárias e sem alcance causal, como a autodefesa e o atalho do extermínio dos criminosos – o que praticamente só tem resultado em licença para mais violências.

Parece que estamos todos espremidos entre um purismo antropológico e uma truculência inconsequente – entre Rousseau e a Lei do Tailão.

O problema da violência precisa ser encarado pelo seu dado objetivo. Ampliar o número de escolas e hospitais ou eliminar traficantes e membros de facções não afastará massas do crime se essas massas estiverem excitadas pelo que o crime oferece: poder. Poder fácil para uma vida vivida em um presente absoluto, um persente sem futuro.

O que confere poder aos agentes do crime? Ora, não é o orçamento que eles adquirem da venda de drogas. O que dá poder é a posse de armas e munições. (Aliás, armados, traficantes ou milicianos arrecadam das comunidades, dos comerciantes, dos trabalhadores eventualmente até mais do que a droga converte.) Não há crime organizado e poder paralelo sem armamento. É evidente que a solução para o problema da violência e da insegurança generalizadas numa guerra intranacional, tal como o vivemos, passa por inviabilizar o acesso ilegal a armas e balas.

Faz algum sentido que o Estado – em tese, o detentor do monopólio da violência – seja menos armado que milícias de jovens pobres de periferia? Faz algum sentido que funcionários públicos concursados, a quem a sociedade confia a sua proteção, entrem em zonas de combate com pistolas, enquanto traficantes e auxiliares ostentem rifles e fuzis com volume exuberante de pentes de bala? O tráfico de armas é a farra do crime, é um acinte contra a sociedade civil. Mas por que esse problema não é encarado?

Aqui, há um nó que precisa ser reconhecido para ser desfeito. Diferente do crime comum, o crime organizado no Brasil tem a forma do que defini em outro lugar como sendo para-instituições: um conjunto de dispositivos de organização da coexistência desenvolvidos na fronteira entre a legalidade e a ilegalidade. O que confere traços de legalidade ao empreendimento criminoso é a participação ativa ou a conivência de agentes de Estado, especialmente da política e das Polícias, nos processos. A estrutura organizacional é empresarial e é desenhada por um encadeamento complexo de funções exercidas por pessoas entre as quais influentes e poderosas. Três problemas articulam o êxito do tráfico de armas nesse contexto:

O primeiro problema é o das fronteiras: não há recurso humano capaz de vigiar um território tão grande quanto o nosso.

O segundo problema é que, muitas vezes, não há suficientes recursos humanos nos serviços de Inteligência para analisar o volume de conversas interceptadas nas transações entre os membros de facção.

Em relação a ambos, apenas um investimento concreto em tecnologia de satélite e drones, no primeiro caso, e de inteligência artificial, no segundo, poderia mitigar o drama.

Mas há um terceiro problema: a intimidação das investigações e intervenções pelas polícias face o poder econômico e político dos envolvidos na logística do tráfico de armas. Este problema envolve os anteriores e os blinda.

Como encarar tudo isso? Não basta ter inteligência se o tráfico de armas não é atacado dada a inércia da investigação: o estrangulamento das atividades nos centros de destinação das armas é inviável quando as próprias polícias se sentem tolhidas e intimadas ao silêncio. Não basta, por outro lado, apenas alterar a legislação, transformando o tráfico de armas em crime hediondo, uma vez que se precariza vergonhosamente o trabalho do agente da segurança, sujeitando-o ao assédio da criminalidade.

A única maneira de se começar o combate ao tráfico de armas é iniciando agora uma corrente de opinião que lance a sociedade contra ele. O assunto tem que entrar na casa das pessoas, de forma que elas vejam que a existência de bandidos fortemente armados não é um dado natural, mas uma escolha coletiva. E isso passa por deslocar a atenção popular da ênfase contraproducente e tola no tráfico de drogas. Não é droga o que empodera um criminoso, é munição. Temos de formular uma consciência nacional disso.

Não ignoremos as iniciativas de denúncia que já vêm sendo aventadas, quer em estudos acadêmicos, matérias jornalísticas ou mesmo em militantes políticos partidarizados ou não. Elas são benfazejas. Mas não prosperam se não são integradas a uma agenda nacional de combate que tenha lastro popular e metas objetivas de cumprimento. O que se deve fazer para implementar essa agenda? Ou melhor: quem deve implementá-la? A resposta é óbvia: o Presidente da República.

É preciso que o Presidente da República lidere uma campanha contra o tráfico de armas no país. Só o presidente pode traçar, como sentido da trajetória do Brasil nesse momento histórico, o enfrentamento a algo assim. Só ele é popular o bastante para unificar os impulsos isolados em uma mesma força de combate. Afinal, quem mais poderia penetrar nos lares de todos os cantos do território pelos recursos de propaganda do Estado? Quem mais poderia incitar o congresso nacional a discutir o assunto e elaborar legislação para tratá-lo? Quem mais poderia provocar a sociedade inteira a verbalizar o problema, e não a silenciá-lo? Quem mais poderia ensejar a a imprensa em pautar, investigar, noticiar e comentar o tema? Quem mais poderia sugerir a responsabilidade moral dos que são opacos à opinião pública: da indústria de armas ao magistrado omisso? Quem mais poderia ter força simbólica e institucional para desfazer um sistema como esse?

Desde a redemocratização, temos visto que a força política do presidente para induzir a agenda do debate nacional é imensa. Collor conseguiu impor uma sensibilidade pela abertura econômica do país. Itamar e FHC conseguiram o controle da inflação com o Plano Real. Foi assim que Lula tornou plausível o combate à fome e a necessidade dos programas sociais e que, no auge da crise do mensalão, em 2005, absorveu toda a energia nacional num plebiscito totalmente extemporâneo e sem consequências. Foi assim que Bolsonaro, mesmo sem dar entrevistas à grande mídia, pautou o que ela discutia diariamente. É assim que o Lula 3 consegue emplacar a reforma tributária e fazer toda a sociedade hostilizar a política de juros do BC.

Militar contra o tráfico de armas é factível e desejável. E é um tema, vale dizer, que pode ajudar a unir as esquerdas e as direitas em uma pauta comum: tirar o poder de fogo das mãos dos bandidos. Se eliminar completamente o acesso dos criminosos às armas é um sonho irrealizável, ao menos a farra haverá de ser constrangida.