Lançado livro ‘A sociedade autofágica’, de Anselm Jappe: desmesura fetichista e autodestruição do sujeito

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Anselm Jappe é um teórico da crítica do valor e, como tal, entende que o valor é o princípio de síntese social na modernidade capitalista. Essa matriz de pensamento desenvolve sua crítica a partir e através das categorias marxianas de base, como o trabalho abstrato, a mercadoria e o dinheiro. Ela traz, ainda, para o centro do debate, o muitas vezes negligenciado fetichismo da mercadoria, que é objeto privilegiado de análise –  juntamente da moderna forma-sujeito  –  no livro  “A sociedade Autofágica”, recém lançado no Brasil.

O texto, cuja primeira edição é francesa (2017, La Découverte), foi publicado em Portugal no ano de 2019 (Antígona), mas seu acesso ainda era difícil para os brasileiros interessados no tema. Felizmente, o título acaba de ser incorporado à coleção Crise & Crítica, da Editora Elefante, que, na tarde desta sexta-feira (29/10/2021), transmitiu uma live de lançamento com a participação do autor, da filósofa Olgária Matos e do historiador Gabriel Zaccarias (também diretor da coleção), além dos intérpretes Robson Oliveira e Rosane Lucas.

Além de saudar o louvável esforço editorial de trazer a obra para os já leitores brasileiros de Jappe (dentre os quais me incluo), eu gostaria de registrar a importância da circulação nacional de uma publicação recente que se propõe a compreender o capitalismo e seu potencial destrutivo desde os aspectos mais fundamentais, superando, portanto, a análise pautada prioritariamente nas relações de classe e na propriedade privada. O que a crítica do valor nos mostra é que o foco na mera distribuição das categorias pressupostas da socialização capitalista é insuficiente para compreender a insolucionável crise pela qual ela passa (e leva junto todos nós). Ao colocar a crítica da produção no cerne da investigação e ao compreender que o que se esgota é a possibilidade de transformação do trabalho vivo em valor, ou seja, a própria fonte do capitalismo, ela evidencia a criação de uma humanidade supérflua (seres humanos não rentáveis, nas palavras de Robert Kurz) e, principalmente, demonstra que não basta libertarmo-nos da “classe dominante” ou realizarmos o “sujeito revolucionário”, mas que o imperativo é de libertação da própria relação social engendrada pelo capitalismo.

“A Sociedade autofágica” avança um passo nessa discussão ao investigar a forma-sujeito em sua íntima relação com a lógica fetichista e acaba por concluir que  a crise que vivemos hoje é também “uma crise antropológica, uma crise civilizacional, bem como uma crise da subjetividade”. Ali, Jappe percorre um caminho que vai de Descartes ao psicanalista Dany-Robert Dufour, passando por Kant, Marcuse e Christopher Lasch, para lançar luz sobre a clivagem que constitui essa forma (a do sujeito), também fetichista, e, como ele argumenta, bastante afim à lógica do narcisismo. Assim, ao aproximar o vazio tautológico e ilimitado do valor aos sujeitos (nós!) da sociedade produtora de mercadorias, o autor nos causa vertigem ao contextualizar elementos tantas vezes tomados como a-históricos, como o ódio, o ressentimento e a violência. É brilhante.

O livro em questão oferece (mais uma) sólida evidência de que o abstrato da crítica categorial é o da própria sociedade capitalista e, assim, não se opõe à realidade concreta, mas é justamente aquilo que possibilita sua compreensão mais radical e, por isso, merece ser lido e debatido seriamente.