O STF e a luta contra o racismo no Brasil

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O Supremo Tribunal Federal (STF) é responsável por guardar os preceitos da Constituição, visto que ela expressa os valores sociais e políticos. Dentre os diversos casos levados ao STF com petições como Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Habeas Corpus (HC), a temática referente a desigualdade racial no Brasil tem estado presente nas pautas dos ministros.

Em 2009, houve a distribuição da ADPF 186, para que o STF se pronunciasse sobre as ações afirmativas para o ingresso de negros no ensino superior. Em decisão unânime, os ministros Ayres Brito, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber, julgaram a ADPF 186 improcedente e reconheceram a legalidade da ação afirmativa enquanto uma discriminação positiva. Vejamos a emenda da decisão da ADPF 186:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

A seguir, em 2016, houve a distribuição da ADC 41, em que se questionava que a Lei n. 12.990/2014 era inconstitucional, por prescrever sobre a reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Neste caso, os ministros do STF, Carmen Lúcia, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, em decisão unânime, reconheceram que as ações afirmativas são constitucionais, conforme ementa: “Direito Constitucional. Ação Direta de Constitucionalidade. Reserva de vagas para negros em concursos públicos. Constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Procedência do pedido”.

Seguindo esse comportamento de combate ao racismo, o STF, por maioria, denegou a ordem do Habeas Corpus (HC) n. 154.248, nos termos do voto do Relator Edson Fachin, tendo restado vencido o Ministro Nunes Marques, que concedia a ordem para reconhecer a extinção da punibilidade da paciente pela ocorrência da prescrição.

Os ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandoviski e Dias Tofoli, denegaram a ordem do HC n. 154.248, de modo que o STF reconheceu que o crime de injúria racial é uma espécie do gênero do crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, portanto, imprescritível e inafiançável, nos termos do art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal.

As três decisões do STF foram acertadas, por estarem em conformidade com a Constituição Federal e os Tratados Internacionais, que prescrevem o dever de combate ao racismo e a toda forma de discriminação. Para além disso, a recente decisão do STF dá respaldo jurídico à denúncia de racismo realizada pelos pensadores brasileiros do século XX e contemporâneos. Estes autores afirmam que o racismo é estrutural, porque está presente em todas as relações sociais. Nesse sentido, xingar, fazer piada e ofender com fundamento na raça é crime de racismo, de maneira que, o crime de injúria racial, inserido no artigo 140, §3º do Código Penal pela Lei n. 10.741/2003, é imprescritível e inafiançável. Importante mencionar que outrora a desclassificação do crime de racismo para injúria racial era a regra, de modo que não havia punição em muitos casos em razão da prescrição, motivo que torna a decisão do HC ainda mais relevante.

O Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “não podemos ser condescendentes com essa continuidade de práticas e de linguagem que reproduzem o padrão discriminatório”, e a ministra Rosa Weber afirmou que as discriminações fundamentadas na raça, sexo, etnia e religião são imprescritíveis e inafiançáveis.

A decisão do HC 154.248 teve por fundamento teórico obras como “O que é Racismo Estrutural?”, de Silvio Luiz de Almeida, que afirma que “podemos dizer que racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Ofender à dignidade da pessoa por sua raça e cor, fazer piadas e adotar qualquer prática discriminatória correlata é racismo, e não precisa de intencionalidade.

O fato de a decisão ter reconhecido que a injúria racial é uma espécie de racismo não significa que a nossa luta acabou. Não podemos deixar de denunciar as práticas de racismo nas relações sociais, pois o próprio poder judiciário não reconhece o racismo em muitos casos. A título de exemplo, vejamos a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que julgou improcedente a ação movida pela cantora Ludmilla Oliveira da Silva contra a comentarista Valdirene Aparecida Marchiori (Val Marchiori), processo de apelação n. 0002021-46.2016.8.19.0207, sob o argumento de que a opinião da comentarista é permitida “em observância à liberdade de informação”.

Silvio Luiz de Almeida afirma que “o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial” (ALMEIDA, 2018, p. 39), de modo que é essencial que as instituições e cada indivíduo previnam os comportamentos racistas com a leitura de obras e a oitiva de estudiosos do tema para que o racismo não seja produzido, ao mesmo tempo que se for detectado, que ele seja repudiado.

Que a luta antirracista se materialize dando possibilidades de aspirações aos negros, e a partir da coletividade e, nas palavras da Beatriz Nascimento, em seu poema intitulado “Antirracismo”:

Ninguém me fará racista
Haste seca putrificada
Sem veias, sem sangue quente
Sem ritmo, de corpo, dura?
Jamais fará que em mim exista
Câncer tão dilacerado.