Por José de Magalhães Campos Ambrósio
1. Um apelo à responsabilidade
O perfil da retórica eleitoral do lulismo chegou, em 2022, a um desenvolvimento que, se não é exatamente novo, estruturou-se definitivamente no espelhamento da forma dos argumentos reacionários. A consequência disso é uma luta política intransigente que torna o debate público, cada vez mais, opaco. Ao demonstrar a forma intransigente do argumento lulista, espero, um tanto ingenuamente, dois resultados: 1) capacitar os cidadãos a identificar a forma reacionária, questionando e retomando a conversa em termos mais substantivos e – com menos esperança – 2) que a própria militância lulista se afaste do argumento de reação e encampe outras razões para o voto em seu candidato, podendo tornar a luta política em conflito transitivo e não, como declarou Clausewitz, “na guerra civil por outros meios”.
Atenho-me ao conservadorismo retórico do lulismo e não do bolsonarismo por dois motivos. Primeiramente, porque o autoritarismo bolsonarista é direto, cruel, aberta e literalmente belicoso, o que torna o exercício de revelar seu autoritarismo quase inócuo – além de amplamente já refletido.. Já no lulismo, a intransigência é meticulosamente construída como defesa da democracia. Em segundo lugar, porque, como força quantitativamente hegemônica no eixo progressista brasileiro, é preciso apelar para algum senso de responsabilidade que talvez ainda reste nas lideranças e militância lulistas. Sem sucesso no apelo, podemos manejar uma gramática de responsabilização – em parte – pela fratura do ambiente democrático no Brasil.
Isso também não quer dizer que outras forças políticas não tenham o seu quinhão de responsabilidade pela situação do país. Claro que possuem e poderíamos aqui apontar os problemas. Ciro Gomes, Simone Tebet, Luiz Felipe D’ávila, Soraya Thronicke, como representantes de forças políticas relevantes, obviamente têm seu peso na situação e cometem erros pelo caminho. No entanto, a escala que o lulismo alcança e o profissionalismo com que articula o argumento intransigente necessita de uma reflexão mais detida e focada. Mas, sem dúvida, a maior vítima da retórica posta em marcha pelo lulismo hoje é Ciro Gomes, por isso ele terá espaço central no texto (como fora Marina Silva em 2010 e 2014; Heloísa Helena em 2006, Ciro em 1998 e 2002 e Brizola nas outras eleições).
O modelo discursivo do lulismo (e do bolsonarismo) como recalcitrante do debate público também foi abordado por Idelber Avelar em seu instigante “Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI”(Ed. Record, 2021). Queremos aqui abordar uma perspectiva diferente e complementar, com chaves mais compreensíveis e úteis.
2. O modelo teórico da retórica reacionária
Albert Hirschman mapeou e classificou 200 anos de retórica reacionária no livro “A retórica da intransigência: perversidade, futilidade e ameaça”(Companhia das Letras, 2019). Na obra, o economista e cientista político que lecionou em Harvard encontra um padrão argumentativo das objeções conservadoras às transformações sociais, desde a Revolução Francesa até ataques contemporâneos ao Estado de Bem-estar Social, passando pela resistência à ampliação do acesso ao sufrágio pelo povo.
O padrão de reação retórico encontrado por Hirschman se agrupa em três macro-tipos: o argumento da perversidade, ou do efeito perverso; o da futilidade e o da ameaça. Em sua pesquisa, também encontrou os correspondentes progressistas da intransigência: a ilusão da sinergia, a do perigo iminente e a “do lado certo da história”.
Resumidamente, a tese do argumento perverso advoga que qualquer alternativa ao status quo redunda em uma cadeia de causalidade (imaginária) que inverte a intenção original e traz como resultado justamente aquilo que se desejava combater. Um exemplo é a tese que frequentemente se levanta contra direitos sociais: “a cotas raciais aumentarão o racismo” ou “a assistência aos pobres só aumenta e prolonga a pobreza”.
Já a forma da futilidade tenta demonstrar que qualquer força que tente alterar uma dada situação social está fadada ao fracasso, porque a energia da mudança é reconduzida a uma estabilização sistêmica por contextos sociais antigos – portanto, arraigados – e por uma complexidade estrutural dificilmente captável pelos projetos de transformação. Exemplos disso vem no tipo “a desigualdade é inerente ao ser humano e nada que fizermos no sentido contrário alterará essa forma, no máximo muda o dominante e dominado.”
Por fim, a tese da ameaça é mais explícita, argumentando que um movimento de mudança tem um custo tão alto de tal modo que esse preço a ser pago supera os benefícios da transformação proposta. Um exemplo notável é o ataque que as elites econômicas desferem contra a tributação progressiva, a ameaça é direta: “Taxar os mais ricos provocará uma evasão de dinheiro do país e atrapalhará o investimento.”
O lulismo adota tanto as formas conservadoras clássicas quanto as suas versões progressistas, forjando um longo arco de intransigência que envenena o debate público de modo profundo. Decodificar essa gramática é um passo fundamental para a abertura do debate brasileiro.
3. Os argumentos de tese perversa do lulismo
Como leitor da realidade política brasileira, foi uma surpresa notar as similaridades entre as formas reacionárias e a retórica eleitoral lulista. Surge, então, a sensação de que Hischmann fora estudado para a construção dos argumentos ou, o que é mais provável, o debate público vem assimilando de tal forma essa retórica que ela se tornou intuitiva, corrente, tanto pela sua eficácia quanto pela sua simples comunicação. Hischmann não a utilizou em contexto eleitoral, mas as formas dos argumentos são tão similares que me atrevo a experimentar a tese. Comecemos.
“Escolher outro candidato que não Lula é ajudar Bolsonaro”; “O voto em Ciro Gomes ou Simone Tebet é linha auxiliar do fascismo”; “Criticar Lula é contraprodutivo pois dá argumento para a Direita”. Esses são três argumentos-tipo que são direcionados como reação tanto aos candidatos quanto aos seus eleitores que tentam dizer: “sua intenção democrática só terá resultado se for com Lula, votar em qualquer outro é dar musculatura eleitoral ao ‘inimigo de todos’”
Essa fórmula é intransigente per si – e também o padrão de reação mais comum de acordo com Hirschmann – porque joga as razões do não voto em Lula nos outros adversários – mas admitamos sua meia-verdade: todo campo social, como é o campo político, tem seus jogadores posicionados em relação uns com os outros, ou seja, nenhuma posição é “pura” e sempre implica algum grau de proximidade, distanciamento e conflito mais ou menos conscientemente calculado. Isso significa que se Lula se movimenta à determinada direção é simplesmente de se esperar que seus adversários reajam relativamente à sua posição tomada – corrigindo, desqualificando-a, negando-a. Afinal, os candidatos à presidência querem o mesmo troféu (a eleição) e Lula, atualmente, é o favorito para obtê-lo. Não criticá-lo significa abdicar da disputa real. Ao fim e ao cabo, se não há ressalvas à candidatura de Lula, por que, então, ter uma candidatura alternativa? O caso contra Ciro Gomes é notável, além dessa retórica tentar bloquear a crítica que o trabalhista faz a Lula, faz-se de cega diante de todo arsenal levantado pelo pedetista contra Bolsonaro, enquanto coloca uma lupa nas críticas a Lula (contrariamente a esse movimento, por exemplo, um gráfico de 2 de junho do jornal o Globo mostra que Ciro atacou Bolsonaro 339 vezes contra 196 em Lula).
Um desdobramento dessa relatividade do campo é a de que todos os jogadores podem se aproveitar dos posicionamentos alheios e gerar, por eles mesmos, consequências não intencionais da ação inicial, ou seja, se Ciro ataca Lula, o fato é que essa posição ressoa em todos os jogadores – que podem ser mais ou menos bem sucedidos no processo. Derivado disso, na luta política-eleitoral, observa-se que o fortalecimento de uma posição precisa implicar no enfraquecimento de outra, isso é do jogo democrático que será avaliado pelos eleitores. Por consequência, há intransigência quando toda posição se reduz (ou é reduzida)a UM elemento possível de suas consequências, impedindo reflexões mais complexas pela cidadania.
Assim a avaliação “Ciro e Simone fazem o jogo do fascismo” é ridícula quando ambos têm projetos bem definidos – no caso de Ciro debatido à exaustão por vários anos – nos quais a postura em defesa das instituições democráticas é inequívoca. Ciro, por exemplo, quer e age para derrotar Bolsonaro.
Além disso, afirmar que ser adversário de Lula ou criticá-lo seria causa de uma fragilização da “luta contra o fascismo” é um abuso criminoso que ignora o principal: a história de Lula e do PT é a principal causa de seu próprio enfraquecimento, ao acumular contradições de governança política, de ideologia e de políticas públicas estruturalmente insuficientes e despolitizantes. Lula e o PT dependem eleitoralmente do carisma do ex-presidente e do horror que é Bolsonaro em contraste com seus governos.
Sem dúvida, a segunda causa principal, que se aproveita da primeira, fora a ideologia bolsonarista que a partir de 2013 conseguiu vocalizar um ideário latente na sociedade brasileira, mobilizando um arsenal midiático alternativo de mentiras que, por sua vez, convergiu com o fenômeno do lavajatismo que possuía o favorecimento da mídia tradicional e, juntos, aceleraram a corrosão das instituições brasileiras.
Hirschman reflete que a tese da perversidade, quando torna absoluta uma previsão específica dos efeitos não intencionais de uma posição, procura estimular principalmente um sentimento de superioridade da parte de quem enuncia em relação aos demais. Em segundo lugar, procura proteger a própria posição: “se Bolsonaro perder, que bom, fomos nós que vencemos”, dirá o lulista ignorando que todos os outros também estavam no encalço de Jair; “se perdermos, culpem Ciro, Simone, a imprensa, etc,.” Superioridade e irresponsabilidade se combinam nesse jogo.
Assim, o efeito perverso tem o expresso propósito de fazer os seus autores se sentirem bem consigo mesmos, afinal tornam a análise “fácil demais ao se concentrar sobre um único resultado (entre tantos) privilegiado e simplista” de uma posição que querem atacar cujo objetivo é o oposto do pretendido. É confortável também quando todas as possíveis razões para as falhas da minha posição não têm nada a ver comigo e sim com um adversário.
4. A teodicéia lulista: a tese da futilidade e do lado certo da história.
“Lula é o único que pode unir o país”; “Já tem 45% do votos, então é inútil outras candidaturas contra Bolsonaro”; “Os adversários de Lula não compreendem o momento e chutam a porta da história”. A futilidade, afirma Hirschman, é fria mas também a mais insultuosa; intenta produzir um efeito imobilizador.
Afirmar a especificidade de Lula é a tentativa de naturalizar sua pretensão, como uma lei da natureza ou da história. O argumento sempre se formula como um destino inexorável da sociedade brasileira: “não há como fugir de Lula, então una-se a ele, é a sua melhor chance”. O que é, de todo modo, uma mentira: a rejeição de Bolsonaro e o desempenho, principalmente de Ciro, dos outros candidatos no segundo turno indicam que todos poderiam vencer o atual presidente.
Do mesmo modo, a utilização das pesquisas eleitorais “demonstrando” essa especificidade traz uma derivação dessa tese fútil: “é preciso derrotar Bolsonaro no primeiro turno e só Lula pode fazê-lo” é a tática de retirar do debate público sua substância, ou seja, o conflito entre projetos de país e visões de mundo, as ideias. A futilidade aqui opera isso como pressuposto natural, não como construção social – afinal, a política nessa perspectiva se abre às possibilidades, tornando-se arte de escolher qualquer destino, dos mais prováveis aos mais impossíveis; isso é levar a política a sério: deixar a energia das possibilidades vibrante enquanto luta pelo poder. O que esse tipo de argumento faz, mais uma vez, é esfriar a politicidade eleitoral enquanto esquenta os conflitos improdutivos. A política é o pensamento contra o Destino!
Aqui me parece que o lulismo induz o eleitor a “atar as próprias mãos” porque ele mesmo subestima (ou nega) a possibilidade de mudança. Isso pode ser lido em ao menos duas dimensões – a eleitoral e a ideológica. Sempre está subliminar que Lula é o consolo que temos diante do risco que é Bolsonaro. Por isso, diria o lulista, deveríamos aproveitar sua força gravitacional e acabarmos logo com isso: “deixemos para disputar a agenda depois da eleição” ou “a correlação de forças é hostil a um projeto transformador” – duas expressões frequentemente invocadas para não fazermos o que precisa ser feito. É a retórica do eterno adiamento porque o lulismo sabe muito bem os limites das transformações de Lula e sua aliança com Geraldo Alckmin somente reforça que a intelligentsia lulista desistiu da mudança para obter consolação e que a transformação suficiente é a queda de Bolsonaro – pouca coisa é tão covarde politicamente quanto isso.
A retórica da futilidade então é uma profecia autorrealizável: a partir do pressuposto de que não é possível escolher outro, empreendemos ações para que nenhum outro seja escolhido.
O nítido aqui é a contradição entre a base ideológica teórica do lulopetismo e sua retórica eleitoral: apelo à democracia de base e ao pluralismo, ao caráter dialógico, às construções sociais de todos os tipos biopolíticos. Todas as possibilidades são eliminadas quando entra em jogo o mito “Lula” e seu apelo ao poder – e nesse sentido ele exerce mesmo uma das principais funções de um mito: barrar o tempo, a mudança e a reflexão.
A urgência de desmantelar essa cultura política que se expressa na forma da retórica da futilidade lulista é, reforço, trabalho exterior ao lulismo mas também interior ao petismo, se quisermos mover o país ao futuro levando a sério a concepção de que podemos imaginar e efetivar a transformação social do Brasil.
5. O terreno rasteiro: a ameaça, a ilusão de sinergia e o perigo iminente
“Sem união dos democratas teremos fascismo”; “O custo da candidatura Ciro é o risco de golpe no segundo turno; “linha auxiliar do fascismo”. A primeira vista a tese da ameaça se parece um pouco com a da perversidade, pois há um conteúdo comum, porém a sutileza da forma é que primeira é mais direta – aqui a (pouca) imaginação estratégica atua no âmbito de um jogo de soma 0, no qual se um adversário tiver voz “matará” aquilo que se quer proteger.
A retórica da ameaça tenta afugentar, silenciando as vozes colocando um perigo iminente, um custo muito alto, à mera possibilidade de se ouvir a um outro. Aqui, outra tautologia se repete: “por medo de algo (Bolsonaro) atuo de modo a criar um medo em um outro (Ciro)”.
A violência retórica que se abate contra Ciro Gomes através da ameaça revela que ela se dá não porque o programa do trabalhista desagrada o campo progressista, os partidos de esquerda , etc., mas porque Ciro simplesmente existe e se colocou contra um “bem” que muitos julgam que precisam proteger. A tese de fundo aqui é: “o que perdemos com a derrota de Lula é mais precioso do que ganhamos com a vitória de Ciro”.
Não sei se o lulismo tem a dimensão do significado dessa crença, mas ela opera em ao menos três níveis: o da familiaridade, o do legado e de um tipo ideológico. Um famoso cientista político petista, Rudá Ricci, costuma criticar ferozmente as políticas de Lula dizendo “Lula é assim, não vai mudar” para logo após pedir voto a ele; esse tipo de militância tem em Lula algo como um pai, um avô, um próximo – e mesmo que não faça aquilo que acreditam, pertencem à mesma família, grupo, cresceram juntos e criaram identidade juntos; no fundo, é seguro ter o ex-presidente como eterno mestre, não se ganha muita coisa, mas também não se perde; e já é sabido que o medo de perder é mais intenso do que a possibilidade de ganhar.
O nível do legado envolve dois subníveis. Para funcionar, a tese da ameaça requer um pano de fundo e uma consciência histórica específica: o primeiro é a crise que progressivamente e de modos diversos se aprofunda no Brasil desde 2013 (Dilma-Temer-Bolsonaro) e a consciência é uma memória ainda viva do governo Lula enquanto momento de prosperidade que só poderia retornar com a eleição do ex-presidente. Escolher qualquer outro candidato seria pagar um preço alto demais, a prosperidade não estaria garantida. Em um segundo momento, o legado objetivo do próprio governo Lula e do petismo enquanto conduziam o governo estaria em risco, afinal o Projeto Nacional de Desenvolvimento propõe uma série de alterações estruturais que, se efetivadas, colocaria a prosperidade contingente e neoliberal de Lula como uma nota melancólica da história política do país. O PT perderia seu legado porque sabe que com Lula não se cria uma coisa melhor e sem Lula se dissolve pelo caminho.
Já o tipo ideológico é mais mesquinho, é algo como o antropólogo George Foster descrevia como “A Imagem do Bem Limitado”. Três considerações sobre esse viés. Em primeiro lugar, toda a história do PT é a reivindicação de uma espécie de destino manifesto (ecos longínquos de um marxismo moralista), no qual o Partido teria o monopólio da verdade e da virtude, sufocando interna e externamente vozes dissonantes. O bem limitado funciona na gramática “não há lugar para outro quando nós já concentramos (quase) todo bem em nós mesmos”. A tese da ameaça é um discurso para proteger esse suposto bem.
Há vários outros problemas com esse ponto, mas fiquemos com o essencial. A simplicidade cognitiva com que se vaticina a unidade em torno de Lula não sabe lidar com a complexidade da coexistência democrática que as visões de mundo podem produzir. Isto é, o lulismo e o trabalhismo poderiam estar disputando projetos, mas perdem suas energias na intransigência – que da parte do lulismo é muito mais avassaladora e organizada.
6. A espiral do silêncio e a intransigência
A retórica da intransigência tem como consequência imobilizar o debate político enjaulando-o na superfície das reações. Cria-se uma sequência de experiências de indeterminação improdutivas, quer dizer, cada encontro político fomenta ao mesmo tempo o pensamento hegemônico (que tenta ser único) enquanto é hostil à divergência.
Esse movimento pode ser combinado com outro modelo teórico bastante assertivo para compreender os movimentos de opinião pública: a teoria da Espiral do Silêncio. A Professora. Elisabeth Nöelle-Neumann descreveu o processo do movimento que chamou de Clima de Opinião. Resumidamente, a pesquisadora identifica que existe uma tendência de omissão de opinião quando os cidadãos se percebem com opiniões conflitantes das posições dominantes devido ao medo de isolamento, crítica e zombaria – com a redes sociais amplificando o processo.
Inserindo a retórica da intransigência aqui, vemos que essa forma de luta política opera reforçando o pensamento único e a polarização (não há tempo de tratar do tema aqui) de modo que uma série de razões multifacetadas são arrastadas ao ocaso por uma força coerciva extremamente eficaz. O lulismo fez esse movimento com o PSDB e faz agora com Bolsonaro – age para eliminar as posições intermediárias e provocar a percepção de que só existem duas alternativas muito distantes, o bem e o mal. Três mecanismos são a base para esse processo de acordo com Nöelle-Neumann: acumulação, ao ter um excesso de exposição de argumentos intransigentes, repetindo a mesma fórmula para se criar uma sensação de hegemonia total – visto diuturnamente nas redes sociais com os influencers, imprensa petista e etc.; consonância, quando se vê que uma mesma gramática é usada por diversos atores diferentes – da websfera à GloboNews que reduzem a eleição a Lula versus Bolsonaro e; ubiquidade, quando o mesmo assunto, com a mesma gramática se torna impossível de fugir porque a vigilância é permanente – e nesse ponto me parece que o Twitter tem franca dianteira.
A combinação dos modelos de Nöelle-Neumann e de Hirschman nos ajuda a compreender um fenômeno brasileiro: pode ser uma razão de por que em torno de 30% dos eleitores não querem Lula ou Bolsonaro ao mesmo tempo em que não escolhem nenhum dos outros candidatos: esse processo mata a energia política cidadã.
7. Ponto e Vírgula: a Falsa e a relativa simetria
Em todo empreendimento humano há um “o quê” e um “como”. Frequentemente, quando se traça linhas paralelas entre Lula e Bolsonaro, o lulismo responde com o argumento da falsa simetria: são incomparáveis já que os valores e projetos de ambos são diametralmente opostos; e nesse sentido, estão corretos. O “o quê” de Lula e Bolsonaro coloca o primeiro na fronteira da civilização e o segundo da pior barbárie – e isso pode ser um motivo legítimo para escolher Lula.
Entretanto, no terreno do “como” discursivo, dos meios retóricos, a simetria já não é tão falsa assim. Como já mencionamos, Idelber Avelar já analisou como o lulopetismo dominou a técnica do eles contra nós, alimentando desde há muito um divisionismo sem politização. Creio que as três formas argumentativas descritas reforçam o argumento de Avelar de que as bases discursivas do lulismo são muito autoritárias, o que faz com que a simetria já não seja falsa, mas relativa. A simetria só não se aperfeiçoa porque a intransigência é utilizada para defender um objetivo civilizatório enquanto o bolsonarismo é autoritário para conquistar a barbárie – as mortes em brigas políticas revelam isso.
Meu argumento é que o pensamento democrático deveria rechaçar as duas formas, afinal, os meios qualificam os fins; ainda que o lulopetismo conquiste o poder, o modo como o faz deixa um rastro de mal-estar que produzem efeitos de médio-longo prazo altamente deletérios para a convivência cidadã.
8. Abertura: as várias razões e o Brasil que queremos.
Uma das tragédias brasileiras é a incapacidade de lidarmos com o sentimento trágico de que as razões que eu possuo são tão legítimas quanto as do outro que me contesta. Não compreender esses motivos profundos – inclusive dos bolsonaristas – é um bom caminho para uma convivência social patológica.
Com esse texto, não pretendo argumentar que não existem razões para votar em Lula ou de que todos os argumentos são intransigentes, mas que a campanha orquestrada nas redes sociais e pelo próprio candidato se faz acompanhar de um motivo propositivo e outro intransigente – quando não somente esse último.
Seguindo a isso, existe uma pluralidade de motivações que estão no mundo e escapam da retórica lulista. Existem aqueles com a lembrança da vida melhor, os que sinceramente militam pelo Partido dos Trabalhadores, os que estão exaustos do pesadelo bolsonarista e só querem que acabe logo (uma ilusão, pois o bolsonarismo não morrerá), os que são cativados pela personalidade carismática de Lula, os ultra-pragmáticos (a centro-direita) que desejam um ambiente institucional sem turbulências para que os negócios caminhem com estabilidade e, claro, os corporativistas, aqueles a quem a posição existencial está tão atrelada ao lulismo – como referência, amizades, propósito e emprego – que o custo de abandoná-lo é tão alto quanto negar a si mesmo. Todas essas razões transbordam da intransigência, ainda que por muitas vezes se utilizem das formas argumentativas que a reforcem.
Um realista poderia argumentar que a luta política é assim, que a conquista do poder exige toda uma série de meios para obtê-lo e eu responderia que é só uma meia verdade. O problema final das três formas argumentativas tratadas é que elas progressivamente transmitem a sensação de “meios sem fim” – a pura conquista do poder.
Se é verdade que obter o poder exige uma ampla gama de meios, o inteligente a se fazer é verificar a efetividade da relação meio-fim. Nesse sentido, não compreendo o poder como um fim, mas como um meio intermediário entre a luta democrática e a execução de um projeto de transformação. O uso recorrente da fórmula reacionária não contribuiu para um país melhor; não estamos mais democráticos, tolerantes e desenvolvidos – dois mandatos de Lula e um de Dilma deveriam ter consolidado algo. Ao invés, estamos cada vez mais hostis uns com os outros e, ainda que isso não tenha causa exclusiva na postura lulopetista da política, como força política mais poderosa do país, deveria refletir sobre as próprias práticas e mudar.
Talvez seja um apelo em vão, ainda assim acredito como os gregos que uma sociedade sem philia (amor-amizade) está fadada ao fracasso. A retórica da intransigência é o oposto desse projeto cidadão, por isso, esse texto também é um alerta para que todas as forças que se opõem democraticamente ao lulismo não capitulem diante da tentação da eficácia da intransigência, se mantendo assertivamente disputando corações e mentes com ideias para o Brasil.
Por José de Magalhães Campos Ambrósio
Professor de Teoria do Estado e Democracia da Universidade Federal de Uberlândia
Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG