A necessidade histórica do resgate das raízes do trabalhismo e sua síntese com as finanças funcionais

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A necessidade histórica do resgate das raízes do trabalhismo e sua síntese com as finanças funcionais

Por Thiago Machado

O Brasil só tem razão de ser se destina a trazer o bem-estar do ser humano – Brizola

O Brasil das últimas décadas tem procurado mais atalhos e contornos do que soluções reais. Está submetido à tirania do curto prazo, rendida a falsos demônios, com miopia aos dilemas da nação. Vem carecendo de uma leitura teórica de seu processo histórico recente, o que torna sua crise ainda mais grave. Se faz necessário uma agenda que encare de frente essa miopia, exponha, digira e sintetize a realidade.

A formação do Brasil moderno, com protagonismo do trabalhismo de Getúlio Vargas, teve também em seu bojo uma efervescência cultural e no debate de ideias, de valores, que reconstruíram o ser “brasileiro”, no cenário de um país dominantemente rural, até então. Um país marcado por um “atraso absoluto”, derivado de sua história conflituosa e de exploração, interna e externa, que rogava por reais transformações, dentro de seu tempo histórico, é claro, pois todo ser humano é indissociável de seu tempo.

Hoje, é manifesto que urge no Brasil essa demanda novamente. Os dilemas nacionais se apresentam na vida cotidiana de nosso povo, depois de décadas de ilusões. O sentido de mudança vem se perdendo ao longo do tempo, se pautando crescentemente por uma normalização do que há e um sentido fraco de vontade de mudança.

Ao mesmo tempo, acredito que a evolução dessas contradições desperta naqueles que observam a nudez do rei, a necessidade histórica de confrontar o que está se normalizando.

Esse artigo se propõe apenas a refletir sobre uma parcela desse conteúdo mais amplo – que merece maiores reflexões do campo progressista e nacionalista – que é o de debater o projeto político e econômico que vem se instaurando no Brasil nas últimas três décadas. No dia 23/05, o congresso nacional aprovou um projeto para reduzir a capacidade de investimento do Estado brasileiro – em termos de perspectiva histórica – e manter um sistema atrelado a riqueza social pelo rentismo. Trata-se do novo Arcabouço Fiscal.

Esse novo capítulo marca um conjunto de alterações institucionais feitas nas últimas três décadas e agravadas nos últimos 10 anos, que partem de uma visão de mundo estreita, amplamente difundida pela mídia comercial, que repete insistentemente que a gestão estatal das finanças públicas deve ser sufocada e tratada de forma semelhante à administração do orçamento doméstico.

Nesta ideologia, que nos é imposta há décadas, a confiança dos investidores é o ponto de partida, isto é, um forte ajuste fiscal aumentaria os investimentos, contrariando as evidências empíricas de que o investimento é puxado pela demanda de produtos e serviços e por isso o Estado tem um papel central nesse processo.

Boa parte desse discurso parte de uma ideia de restrição fiscal do Estado – que se originaram de forma clara desde o Consenso de Washington para a América Latina. Esse fato surgiu no ambiente histórico de ruptura de modelos, diante da crise da dívida externa latino-americana.

Este conjunto institucional vem marcando uma Era de Estagnação Econômica do Brasil, com baixíssimo crescimento da renda per capita, em particular se compararmos com o período de 1930 a 1980. Mesmo quando comparamos com outros países em desenvolvimento no período recente, nossa sorte é trágica.

neoliberalismo
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Esta institucionalidade macroeconômica, que marca esse processo histórico, deriva de uma série de regras, como: regra de ouro, a lei de responsabilidade fiscal, com o superavit primário; a PEC 95, do congelamento dos gastos; e atualmente o Novo Arcabouço Fiscal ou Novo Teto de Gastos. Todos esses projetos, com variações possuem, como pano de fundo, a ideia de reduzir o papel do Estado e de “controlar” a dívida pública. Novamente, essa preocupação que recorrentemente aparece em nossa história recente se apresenta no artigo 2, do projeto de Lei do Novo Arcabouço Fiscal:

§ 1º Considera-se compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e Produto Interno Bruto (PIB), nos termos do Anexo de Metas Fiscais de que trata o art. 4º, § 5º, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

Com essa concepção implementou-se um conjunto de institucionalidades cuja premissa visa o “controle” da dívida pública – sem entender a natureza da função da moeda, em um Estado soberano, bem como não expõem o real conteúdo de sua formação. Neste debate, a dívida pública é um falso problema.

O discurso que se difundiu ao longo de vários anos no Brasil, de que o governo deve gerar superávits primários, a fim de controlar a relação dívida/PIB, não corresponde à realidade, inclusive de países em desenvolvimento. Existe um conjunto de países em desenvolvimento que recorrentemente praticam déficits primários significativamente maiores do que aqueles praticados pelo Brasil. Esses exemplos mostram que a razão dívida/PIB, necessariamente, pois o denominador, a produção de riqueza nacional também cresceu. Esse é um elemento central do papel do Estado, ao induzir a demanda interna e auxiliar na promoção do desenvolvimento nacional.

institucionalidade neoliberal
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Nessa tragédia nacional, o discurso se expressa em um pretenso controle da dívida pública, onde na realidade, o seu real determinante passa longe do debate. Novamente, o Brasil continua pagando o maior juro real do mundo, que é o principal vetor de crescimento da dívida. Esse juro acachapante, vem sendo praticado ao longo dos últimos 30 anos, o que coloca o Brasil em uma posição singular, mesmo em relação a países de renda média. Segundo dados do Banco Central (BC), a dívida pública bruta do Brasil, está em 8,4 trilhões de reais (segundo a metodologia utilizada pelo BC até 2007).

O juro nominal acumulado no período, 2001 a 2022, equivale a 7,5 trilhões de reais. Ou seja, apenas nesse período, o juro da dívida pública representa mais de 89% do total da dívida bruta de hoje. Esse fato expõe que a dívida pública não é fruto de uma despesa “exacerbada” do Estado, na verdade, ela decorre, centralmente, do juro da dívida pública. É ela que define seu crescimento.

Ainda assim, a dívida não necessariamente é um problema em um país cuja dívida está em sua própria moeda. Este problema se apresenta principalmente pela dinâmica de concentração de riqueza que ela provoca e não necessariamente no crescimento nacional. Vale ressaltar que o período que o Brasil praticou o seu menor juro real na história recente foram nos governos Temer e Bolsonaro, os quais também tivemos a menor taxa de crescimento. Por outro lado, mesmo com juro real muito alto, por vários anos, o maior do mundo, o Brasil cresceu mais nos governos Lula I e II.

Nessa transformação histórica e avanço de institucionalidades neoliberais, o discurso do número mágico do “controle da dívida” novamente se apresenta, com o “Novo Arcabouço Fiscal” ou Teto de Gastos II.

Esse desenrolar institucional apresenta que mesmo que o Estado venha a ter uma despesa um pouco maior, isso dependerá do incremento da receita. A despeito das faixas de expansão da despesa pública serem muito baixas, entre 0,6% e 2,5%, ainda assim haverá dependência do crescimento receita, ou seja, a despesa só poderá crescer a um ritmo igual a 70% da receita ou 50%, a depender do resultado primário.

Para além da questão dos parâmetros deve-se expor uma contradição adicional: mesmo que a regra estipulasse que a despesa da união pudesse crescer até 10% ou até mesmo 20%, se a receita não crescer, a despesa não poderá aumentar. Por isso, antes do parâmetro, é fundamental uma primeira pergunta. Quais os determinantes do crescimento?

Há algumas décadas, com variações em sua leitura, há um discurso de que reformas liberalizantes e a redução do papel do Estado, com políticas fiscalistas, trariam maior crescimento e prosperidade para o povo brasileiro. O que se observa na história trágica recente, em particular, pós-aprofundamento da visão fiscalista desde a Dilma II e que piorou com a PEC 95 é o exato oposto. Inúmeros estudos e fatos históricos vem apresentando o papel central da despesa pública na promoção do crescimento econômico.

O papel da despesa pública, ao contrário da ideia de retirar recursos do setor privado, na verdade expande a riqueza privada. Pois, por lógica contábil, todo o passivo público é um ativo privado. Ou seja, quando o Estado realiza um investimento ou uma transferência, ele aumenta a riqueza privada ao elevar seu poder de compra.

A título de reflexão, caso o Brasil tivesse praticado o Novo Arcabouço Fiscal, desde os anos 2000 até 2022, a perda de despesa pública seria da magnitude de R$ 8,8 trilhões de reais, o que teria causado um crescimento de nossa economia ainda mais baixo. Por outro lado, vemos países como a China, que estão livres dessa ideologia e praticam o exato oposto desse receituário, com resultados que mudaram a vida da população. A China, a várias décadas vem praticando sucessivos e robustos déficits, para a promoção de seu desenvolvimento, em várias áreas.

Os planos quinquenais do Estado Chinês vêm praticando investimentos tão robustos que não existe comparações históricas – dada a magnitude e escala desses projetos. Para se ter dimensão desse processo, a China construiu, em um curto espaço de tempo, várias dezenas de cidades do tamanho de Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e Fortaleza, em lugares que antes não existia quase que nada. Ademais construiu uma robusta infraestrutura em todo o país, em um curtíssimo período de transformação radical e urbanização de sua população.

A China das últimas décadas nos dá um notório exemplo histórico dos caminhos que podemos trilhar. Porém, também podemos aprender com a nossa própria história. Entre 1930 a 1980 –, que é um período marcado pelo pensamento estratégico do Estado, com forte expansão da despesa pública em bens públicos e no investimento – é um pilar para pensarmos em um país que deseja promover o desenvolvimento. Esse é um fato notório da história do desenvolvimento mundial. O investimento e a despesa pública atuam na perna do desenvolvimento da base produtiva e na oferta pública de bens e serviços – que visem o melhor bem-estar da população.

Entendo esse quadro histórico, que vem levando ao baixo crescimento nacional uma insatisfação popular, com isso um dos elementos centrais que vêm propiciando o crescimento da ultradireita no Brasil. É imperativo um programa que contemple um conjunto de objetivos materiais e simbólicos que podem ser sintetizados nas falas do saudoso Brizola:

“O Brasil é uma nação e (…) Só tem razão de ser se destina a trazer o bem-estar do ser humano, trazer o pleno emprego e a garantia de vida pra todo mundo”.

Por referenciais teóricos e simbólicos existe a necessidade histórica de promoção da agenda do trabalhismo, em comunhão com o programa teórico das finanças funcionais, o princípio da demanda efetiva de longo prazo e a agenda desenvolvimentista.

Tal agenda, tem a possibilidade de transformação material da sociedade, a geração de emprego, riqueza e desenvolvimento – econômico e social. Para tanto, deve ser apresentado um programa que vise a expansão dos investimentos públicos e metas de geração de emprego, em uma sociedade com ampla taxa de desemprego, bem como o desemprego camuflado em trabalhos de baixa produtividade.

Ao contrário de um limite de incremento da despesa e teto de gastos, essa agenda política deve ousar no exato oposto, uma agenda de geração de empregos, oferta de bens públicos e desenvolvimento nacional que se confronte com os limites materiais do Brasil.

Essa agenda política do campo nacionalista e progressista necessariamente deve se posicionar e antagonizar ao projeto neoliberal, das últimas três décadas. Uma agenda que apresente a nudez disforme do rei e a perversidade social por de trás dela que vem se consolidando e que retira de seu povo o horizonte de transformação. Esse processo tem o potencial, dada a necessidade histórica de uma resposta objetiva aos problemas nacionais de ajudar na construção, da sociedade brasileira, com pleno emprego e qualidade de vida aos seus cidadãos.

Economista, pesquisador e doutorando pela UFRJ
Thiago Machado dos Santos