QUESTÃO MILITAR, o problema maior para a esquerda em qualquer parte do mundo ocidental. O que está ocorrendo na França de hoje, com as seguidas manifestações xenófobas, antidemocráticas e golpistas, para parte de militares da reserva, explicitamente, e da ativa, em manifestos anônimos, não é surpreendente. Principalmente para nós neste “paraíso tropical, abençoado por Deus”.
FORÇAS ARMADAS são, por sua essência existencial, instrumentos bélicos dos Estados, e das classes que o hegemonizam. Com uma formação voltada para a organização hierárquica, onde “manda quem pode, obedece quem tem patente inferior”. Sem discutir, sem nenhum estímulo ao debate de idéias e onde o princípio de que “ordem errada não se cumpre” quase nunca é aplicado. Não existe, na prática, ordem errada antes do fato consumado que a comprove. Está aí a tragédia recente do Jacarezinho, depois de várias outras, para confirmar.
HISTORICAMENTE, intervenções militares só assumem algum caráter progressivo quando se dão em lutas anticolonialistas. Porque até nas de libertação nacional contra ocupações por parte de outros países, como é fácil verificar na Europa dos séculos XVIII, XIX e até no XX, elas se abastardam. Basta lembrar de França e Itália na II Guerra Mundial, quando os exércitos vencidos e as forças policiais passaram a ser cúmplices das tropas nazi-fascistas ocupantes, não raro fazendo o jogo mais sujo contra as resistências insurretas, sempre tratadas como “terroristas”.
NA FRANÇA das Revoluções transformadoras, Thiers, na repressão sangrenta à Comuna de Paris, não hesitou em recorrer ao auxílio alemão que derrotara o exército francês, para reprimir a experiência social mais avançada que a Humanidade conheceu. Exatamente como Petain, menos de um século depois, com o regime de Vichy e a nova ordem que substituia o Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelo Deus, Pátria e Família, para melhor servir à ascensão do fascismo interno.
E NÃO É DIFÍCIL EXPLICAR. Em ambos os casos, ocupante e ocupado seguiam o mesmo eixo ideológico da “defesa da lei e da ordem”, na defesa dos privilégios das classes dominantes..
NÃO É POR CAPRICHO sectário que os revolucionários bolcheviques tinham como premissa, na disputa por uma nova ordem, a desconstrução dessas instituições, substituindo-as por organizações com base na sociedade insurreta, civil e militar dissidente. Apenas se reportavam ao passado para não cair na mesma esparrela em tempos presentes. Daí nasceu o Exército Vermelho, que derrotou uma intervenção externa de 17 exércitos estrangeiros, que ajudavam os contra-revolucionários na Guerra Civil que se estendeu até 1921.
COMO FICAMOS, ENTÃO? Como ex-militar, tenho uma experiência pessoal marcantes para avaliação de alternativas. Uma, nos tempos de oficial da ativa em curso de especialização que reunia uma meia centena de capitães-tenentes e primeiros-tenentes da Marinha, no período letivo 63/64. Período quente do governo João Goulart. O imediato organiza um debate entre três linhas de visão sobre liderança. Um defenderia o oficial “linha dura”, outro o “regimental”, e um terceiro, o “liberal”. Que os mais sarcásticos não hesitavam em qualificar pejorativamente como “mãe paula”. Evidentemente, coube a mim, brizolista marcado, conhecido como esquerdista, esta última.
POIS NÃO FOI com o “linha dura” o grande embate. Veio do “regimentalista”, ao dizer que sua função era cumprir o que lhe determinavam os superiores hierárquicos – não a defesa da soberania nacional ou das instituições – sem pestanejar. O que me fez replicar que é por tal conceito que, militares como ele, quando chegam á sua vez de comandar o conjunto da Força, se tornavam subalternos cumpridores de ordem os maganos que hegemonizavam o controle financeiro e político do Estado.
OU SEJA, a não ser por condições específicas, como a experiência de combater o nazi-fascismo na II Guerra Mundial, ou num crescente quadro de entusiasmo pela quadra progressista e democrática que atravesse a sociedade civil, as forças bélicas do Estado burguês servem incondicionalmente á ordem estabelecida pelas classes dominantes. Sem contestação. E contando para isso, em termos gerais, com a ampla aquiescência, quando não apoio explícito, da alta cúpula das igrejas cristãs.
UMA SITUAÇÃO ALTERNATIVA progressista se ofereceu ao final do mandarinato FHC, quando o culto da desmilitarização não tinha objetivo democratizante, mas sim de total subalternidade ao poderio regional do imperialismo americano. Salários congelados, investimentos em projetos renovadores bloqueados, desprestígio social, num quadro de denúncias da privataria contra o patrimônio público, tudo junto levava a um sentimento novo, que constatei numa posse de alto comando a que compareci, como único deputado presente, em final do meu mandato.
ERA UM COLEGA DE TURMA, que eu sabia ter votado em Lula em 98, assumindo nova função importante. De tope na hierarquia militar. Ao final do evento, ele me chama a um canto e, diante de um grande mapa mundial, me pergunta: “onde você acha que esstá o grande problema mundial hoje?”. Olhei para o mapa, e coloquei a mão no bolso. E foi ele, quem produziu a resposta, com o dedo apontado para Washington.
POIS BEM; com tal clima se manifestando na cúpula da historicamente mais reacionária das três vertentes militares – na minha geração de Escola Naval só havia um aspirante negro, excelente aluno que, por conta da discriminação terminou por pedir baixa e fazer carreira no Banco do Brasil – , o governo Lula opta por uma postura hesitante. Não aproveita a oportunidade para, por exemplo, introduzir disciplinas humanas nos cursos das Academias quase todas concentradas nas ciências exatas e na citação da História pelo seu lado mais reacionário.
PELO CONTRÁRIO, na política equivocada de privilegiar a indicação do Brasil para uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança da ONU (ao invés de propugnar pela extinção dessa instância com super- poderes de veto individual a decisões tomadas majoritariamente, ou mesmo quase consensualmente, pela Assembléia Geral), opta por uma bajulação ao governo WBush, oferecendo-se para o jogo sujo de intervenções externas. Intervenções como a do Haiti, onde os Alberto Helena e cia bella se especializaram em repressão a favelas, com operações que terminaram denunciadas por crimes anti-humanitários.
MAIS AINDA. É quando se estimula que a oficialidade, já pensando em sua vida posterior, já na reserva, fosse buscar especialização profissional em cursos de administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas et caterva do mesmo gênero ideológico. Só podia dar no retrocesso que hoje verificamos, com generais se aproveitando de cargos do governo para dobrar seus estipêndios.
A SAÍDA, ONDE ESTÁ A SAÍDA? É a pergunta que se coloca para uma possibilidade de alternativa ao regime rentista-miliciano-militar que nos assola. E, sem me pretender especialista, só posso sugerir uma imediata afirmação de autoridade junto aos comandos militares que devem ser escolhidos como muito cuidado. Comandos militares que se proponham a aceitar, hierarquicamente que seja, uma revisão nos currículos das academias militares. Isso, evidentemente, na sequência de uma Emenda Constitucional que suprima do artigo 142 da Constituição todas as atribuições que não sejam as de defesa da soberania nacional e pesquisa tecnológica. Não cabe permitir a manutenção de opções que permitam aos mais reacionários invocar a Carta Magna para justificar intervenções em Poderes que lhes são superiores na orden institucional.
SERIAM PASSOS iniciais mínimos, para tentar a imensa lavagem cerebral autoritária que o bolsonarismo não cessou de produzir em seu desastroso mandato.
Luta que segue!