Memes e a era do necroinvestimento

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Que as redes sociais, a extrema-direita e os “faria limers” são profícuos em produzir absurdos em forma de textos, vídeos e memes, ninguém duvida. Basta navegar alguns minutos pela rede mundial de computadores para levarmos diversos socos na boca do estômago. Teoricamente, os memes são para diversão, imagens que remetem ao absurdo para garantir umas boas risadas aos frequentadores de sites e aplicativos de humor. Mas os ilustres acima citados são do tipo que levam os memes a sério – tanto que elegeram um meme tenebroso para ocupar a cadeira de presidente da República do Brasil em 2018. Essas imagenzinhas emancipadas da seriedade inclusive se tornaram o meio de educação política desse segmento histriônico da população. Este modelo de comunicação produzido pelas hostes alucinadas que se crê patriota e liberal – embora não tenham a menor ideia do que sejam essas referências – trazem à tona o esgoto da internet, que segue jorrando diretamente do grupo da família para as faces das pessoas que tentam manter uma certa sanidade, uma luta hercúlea nesses tempos pandêmicos e tristes.

Mas por que raios um cientista social se preocuparia com os memes? Podemos elencar uma série de razões por aqui, mas o principal ponto para se debruçar sobre esses panfletos eletrônicos é que eles reproduzem a mentalidade de um momento – e o que vivemos, no debate das ideias, é esdrúxulo. Toda a sorte de pensamentos estapafúrdios, que celebrem a desigualdade, que enalteçam a crueldade ou que apenas pareçam ser contrários ao bom senso, ganham propulsão no grupo dos delirantes de extrema-direita. Tudo aquilo que fustiga os pobres, a classe trabalhadora, os negros, as mulheres, as LGBTQIA+, os funcionários públicos e outros grupos que apresentem vulnerabilidade social ou econômica é laureado por essas vertentes da extremistas que se tornaram verdadeiras seitas de malucos.

Este meme chegou até nós via aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp – carinhosamente apelidado pela massa de “zapzap”. Ainda bem que não veio por grupo da família e sim através de um amigo com tendências políticas sensatas. Nos poupou de travarmos debates cansativos e infrutíferos sobre a razão desta agressão visual que ocupa 118 kB de memória ser abjeta. No receio de sermos prolixos, vamos logo refletir um pouco sobre essa bagaça.

O filósofo e cientista político Achille Mbembe cunhou o termo “necropolítica” para se referir às políticas de controle do corpo que decidem quem vai morrer e quem vai viver. Percebemos que os governos neoliberais, calcados nas medidas de austeridade que visam garantir aos bancos e rentistas remuneração via cofres públicos, cometem necropolítica contra a população carente pagadora de impostos, que possui cada vez menos retorno do dinheiro que sai compulsoriamente de seus bolsos. Proporcionalmente, um pobre paga muito mais impostos do que a classe média e os ricos, uma vez que os tributos incidem brutalmente no consumo, muito menos do que na renda. Embora os pobres paguem números menores ao fisco, a tributação talha o seu poder de compra. Cabe enfatizar que a classe trabalhadora não entesoura salários e nem faz especulação financeira. O trabalhador gasta o que recebe com a sobrevivência. Paga fatias muito maiores do que os ricos pagam. Milhões de brasileiros enfrentam o desamparo estatal, o desemprego e a insegurança alimentar. A austeridade é responsável por tanta tragédia imposta ao nosso povo.

Pois bem. Este meme chegou até nós causando assombro pelo seu teor insensível e irresponsável. Noutro texto desta mesma coluna, analisamos como os motoboys são desprezados e até mesmo odiados pela classe média, não por causa da insegurança que causam no trânsito – eles não são os únicos maus atores das vias públicas brasileiras, o sistema nacional de circulação veicular é o mais violento do mundo – e sim porque são pretos, pobres, trabalhadores subalternos e precarizados. Esta imagem responsável por parir estas linhas veio acompanhada de muita indignação. Já não basta a necropolítica, agora testemunhamos lívidos os necroinvestimentos. Lógico que a morte também é um nicho de mercado, afinal, precisamos das funerárias, cemitérios, profissionais envolvidos no processo de sepultamento dos mortos e demais procedimentos. São serviços essenciais à sociedade, alguém precisa fazê-los e os fazem mediante remuneração ou lucro. Nada complicado em uma sociedade capitalista. Mesmo os seguros de vida, empreendimentos bancários visando expandir o faturamento dos bancos, são serviços contratados na expectativa de dar alguma segurança aos familiares do segurado em caso de óbito.

Esse diálogo – sim, pesquisamos na internet e a imagem faz parte de um fórum na rede social Reddit – explicita o que há de pior no mundo dos chamados traders, faria limers ou qualquer outra nomenclatura nefasta empregada por estas pessoas. Lidam com a morte dos motoboys como certa e de maneira repugnante, com a frieza dos números, com aquele excesso de racionalismo que preconiza o mal – afinal, se essa gente considerada desimportante morre estatisticamente, é hora de algum espertinho tirar vantagem desses óbitos previsíveis. De forma diferente dos trabalhadores da morte e empresas funerárias, esses pretensos investidores não prestam um serviço essencial à sociedade, apenas especulam com a tragédia de profissionais precarizados. O que há de sério ou brincadeira nesta situação, é difícil precisar. Como está no ditado popular: “toda brincadeira tem um fundo de verdade”. De qualquer modo, sintetiza o quanto os limites foram ultrapassados e o tanto que o trabalhador é vilipendiado por aqueles que sonham com a renda sem trabalho. Infelizmente, a ojeriza ao trabalhador humilde continua dando a tônica da elite e da classe média que a mimetiza, como ocorre desde os tempos coloniais. Citando o grande rapper Mano Brown em “Mano na Porta do Bar” (1993), faixa do terceiro disco do grupo, “Raio X Brasil” – “o seu status depende da tragédia de alguém. É isso, capitalismo selvagem”.