A criminalização do feminicídio e nada novo de novo

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Foi aprovado pela Câmara dos Deputados, no último dia 18, com algumas alterações, o Projeto de Lei 1.568 de 2019, que propõe que o feminicídio passe a figurar como crime autônomo no Código Penal (atualmente, o feminicídio é previsto pelo mesmo artigo do homicídio, sendo uma circunstância qualificadora e apresentando uma pena base superior à aplicável para o homicídio simples). Além disso, o texto aprovado prevê que a pena para esse crime seja de 15 a 30 anos de reclusão (atualmente, a pena é de 12 a 30 anos).

Outras alterações aprovadas consistem em supressões de direitos da execução penal (momento em que o processo já acabou e inicia-se o cumprimento da pena), sendo elas o aumento de 50% para 55% do tempo de pena que deverá ser cumprido pela pessoa condenada para que obtenha o direito à progressão de regime (no Brasil é proibido o cumprimento integral da pena em regime fechado, existindo um sistema progressivo – do regime mais gravoso ao menos gravoso), a vedação ao livramento condicional (que consiste em um direito adquirido pelo condenado após o cumprimento de um tempo da pena) e a vedação à saída temporária (que consiste no direito a sair do cárcere de condenados que cumprem pena em regime semiaberto – tal alteração, na verdade, nada altera, pois a Lei de Execuções Penais já prevê tal vedação para crimes hediondos com resultado morte).

No mais, prevê também a inclusão do feminicídio no rol de crimes hediondos (o que também nada altera, pois todo homicídio qualificado é considerado crime hediondo).

A justificativa para a aprovação de tais alterações consiste no fato de que houve um aumento de 39% no número de feminicídios no ano de 2020 em relação ao ano anterior, segundo dados divulgados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Sendo assim, entendeu-se pela necessidade de propor uma legislação que impeça a disseminação da violência contra a mulher, a fim de “dar uma resposta firme à sociedade, reprimindo com veemência os agressores que insistem em promover terror contra as mulheres”.

Vale dizer que, obviamente, não se trata de uma questão de simples solução, afinal, é evidente que a violência contra a mulher merece total atenção e a demanda por segurança é absolutamente legítima, sendo impossível dizer que o Brasil adota medidas eficazes nesse sentido. Assim, não é absurdo que movimentos de mulheres busquem efetivar sua proteção, apostando as fichas naquele que acreditam ser o único meio adequado, o sistema punitivo.

No entanto, tal crença desemboca, por um lado, na expectativa de que o sistema penal vá efetivamente assegurar que a violência diminua e, por outro, na ausência de espaço para a adoção de outras medidas que possam ser utilizadas, sob o argumento da necessária urgência de resposta por parte do Estado.

Ocorre que, pelos dois lados, entende-se, aqui, que há equívocos. Por um, porque já deveríamos ter entendido que o sistema penal jamais apresentou resultados efetivos contra a violência e a criminalidade, nem mesmo quando falamos de delitos menos graves (por não atentarem contra a vida humana diretamente), como os patrimoniais. A ideia de que tipificar uma conduta (torná-la crime) fará com que os indivíduos deixem de praticar crimes beira a ingenuidade, pois ignora a crescente “criminalidade” que nos cerca, independentemente do endurecimento penal (por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos nunca apresentou estatísticas positivas relacionadas à diminuição de crimes considerados graves).

Pelo outro lado, a falta de criatividade que nos assola é também gritante: falhamos pela ausência de propostas que desafiem a óbvia demanda pela punição daquilo que nos aflige.

Já contamos com um vasto Código Penal que prevê as mais variadas condutas, com penas bastante severas e com estabelecimentos para cumprimento delas que são desumanos, tendo a situação prisional brasileira sido considerada pelo Supremo Tribunal Federal um “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, cumprir pena no Brasil já é a “resposta severa” que parecem buscar os legisladores.

É impossível dizer que uma pena mínima de 12 (doze!!) anos de reclusão, com regime para cumprimento inicialmente fechado não é suficientemente dura. Não existe uma pessoa no mundo que deixaria de cometer um crime em razão do aumento de 3 anos na pena mínima. Ninguém faria essa conta, pois já não existia ninguém disposto a cumprir 12 anos de pena. O que leva alguém a cometer ou deixar de cometer uma conduta considerada criminosa não é o conhecimento acerca do montante de pena que cumpriria ou deixaria de cumprir caso fosse pego. Sendo assim, a alteração da quantidade de pena aprovada pela Câmara dos Deputados promete não alterar nada.

Quanto à criação do crime autônomo de feminicídio, pode-se dizer que representa uma conquista simbólica, no sentido de que a lei penal “não tolera” a violência contra a mulher. Porém, não há como comemorar uma criminalização como algo efetivo apenas pelo simbolismo que representa, pois o efeito simbólico do direito penal encontra a barreira de sua própria efetividade e, além disso, é ainda menos provável de eficácia nesse caso, pois a previsão de feminicídio já existe e já vigora. Novamente, aqui, a alteração promete não alterar nada.

O que existe é uma falsa e superficial sensação de que com a punição (ou, ainda, agravamento desta) o problema estaria resolvido. Sabemos, no entanto, que não está. Caso estivesse, não teria havido um aumento de 39% nos casos de feminicídio em apenas um ano e, assim, devemos questionar: por que, mesmo sendo severamente punida, uma conduta permanece sendo praticada?

A aposta na lógica punitiva traz como resultado a dispensa de uma séria investigação acerca das razões que levam às situações negativas que a sociedade enfrenta – por que homens estão matando ou violentando suas parceiras? Por que ocorreu um aumento dessa violência no último ano? Houve alguma influência do isolamento social decorrente da pandemia? Como o sistema pretende acolher mulheres vítimas de violências? Como poderíamos prevenir o feminicídio? – essas perguntas e muitas outras simplesmente desaparecem quando a solução está posta por um incremento na lei penal.

Já com relação aos direitos da execução que sofreram alterações, vale mencionar que o projeto original, de autoria da deputada Rose Modesto (PSDB – MS), propunha que a pena fosse cumprida em regime integralmente fechado, o que, como já dito acima, é proibido no Brasil, que adota um sistema progressivo para o cumprimento das penas.

Além de propor algo já declarado inconstitucional pelo STF em 2007 (o cumprimento integral da pena em regime fechado), a deputada apresenta enorme confusão sobre o que propõe – ela propõe que os acusados de feminicídio não possam aguardar o julgamento em liberdade (o que fere o princípio da presunção de inocência consagrado pela Constituição da República), ficando presos até a condenação (em evidente presunção de culpa de todos os acusados), sem direitos a “saidinhas” (as saídas temporárias são direitos da execução penal – os presos provisórios não têm direito a “saidinhas”, mas somente os condenados que cumprem pena em regime semiaberto).

Embora esse trecho tenha sido alterado, o texto final também não é de se comemorar: o aumento do lapso temporal necessário para obter o direito à progressão de regime (de 50% para 55%) e a vedação à saída temporária violam abertamente os princípios da individualização da pena e da isonomia, que vedam o apelo a considerações relativas à espécie abstrata do delito (ou seja, é proibida a reserva de um tratamento especial para indivíduos que cometam determinados crimes) e o tratamento desigual entre os presos, respectivamente.

A vedação à saída temporária é também uma afronta ao próprio sistema progressivo adotado no Brasil para o cumprimento de penas – a pena, que supostamente teria a função de ressocializar o condenado, vai abrandando na medida em que este a cumpre e, sendo assim, vedar um direito que justamente visa à reinserção da pessoa reclusa na sociedade é contraditório à função declarada da pena.

É assustadora a pobreza de um projeto de lei que sequer conhece o assunto ao qual propõe mudanças, contudo, ainda mais assustador é acompanhar a superficialidade com que assuntos de altíssima relevância como a violência contra a mulher são tratados pelos legisladores. Embora alguns partidos progressistas tenham tecido algumas críticas à resposta penal como instrumento de combate ao feminicídio, acabaram votando favoravelmente ao texto.

Não houve sequer um apontamento a qualquer estudo científico que demonstrasse que tornar a pena mais severa ou suprimir direitos da execução levariam à diminuição dessa violência. O que houve foi mera reprodução de uma retórica punitivista que absolutamente nada diz e nada visa transformar.