Os militares fizeram as reformas de base

Os militares fizeram as reformas de base Ernesto Geisel-min
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O leitor familiarizado com a história do Brasil sem dúvida deve ter sofrido um choque ao ler o título. Como assim os militares fizeram as reformas de base? Não foram eles que, representando a alta burguesia brasileira, os latifundiários e o imperialismo estadunidense depuseram João Goulart para impedir a realização das reformas de base e, consequentemente, o desenvolvimento soberano e a democracia social?

Sem dúvida alguma, grande parte dos agentes envolvidos no golpe de 64 tinha por objetivo sustar a marcha progressiva que o Brasil vinha mantendo desde a Revolução de 1930. O principal alvo de 1964 não foram os comunistas, que, derrotados em 1935, já não ofereciam perigo real, mas o trabalhismo, que, mobilizando as classes trabalhadores em prol do nacionalismo, afigurava-se cada vez mais como um fator disruptivo das tradicionais hierarquias oligárquicas brasileiras.

Porém, a história não é maniqueísta e dicotômica, não é uma luta entre o “lado certo” e o “lado errado”, mas um processo complexo e multifacetado e, muitas vezes, surpreendente, em que múltiplas mediações se colocam entre as intenções e as realizações, modificando o sentido dos aspectos envolvidos. Assim, o regime autoritário nascido em 1964 acabaria tomando rumos inesperados para uma parte significativa da sua base de apoio, como setores liberais e pró-EUA, que, certamente, não esperavam a continuidade e o aprofundamento do nacional-desenvolvimentismo levado a cabo durante grande parte do regime, sobretudo na década de 1970, o que os levaria, 20 anos mais tarde, a assumir a defesa da redemocratização.

Um desses rumos inesperados, e, curiosamente, muito pouco analisados, dir-se-ia até mesmo esquecido, foi que a maior parte das reformas de base propostas por Jango e que tanta celeuma haviam causado foram, efetivamente, implementadas pelos governos militares, e, em alguns casos, tornaram-se símbolos do regime, como veremos.

Em primeiro lugar, há de se definir as reformas de base. Muitas vezes elas aparecem no debate público, desde antes do golpe de 1964, como um somatório de palavras de ordem e abstrações messiânicas ou demoníacas, dependendo do posicionamento político – a própria expressão “reformas de base” acabou por se tornar um Santo Graal retórico – cuja simples enunciação já bastaria para modificar a realidade histórica e concreta. Daí que não tenha faltado quem colocasse suas aspirações ou os seus temores individuais e subjetivos no rol das reformas de base, retirando-as do mundo histórico e transferindo-as a um imaculado ou satânico mundo das ideias.

Objetivamente, entretanto, elas consistiram em um conjunto de diretivas declaradas pelo presidente João Goulart entre as páginas XXXI e LX na Mensagem ao Congresso de 1964 (doravante, todas as paginações em algarismos romanos referir-se-ão a esse texto). Reuniam tanto proposições legislativas já aprovadas quanto futuros projetos de lei e orientações genéricas para balizar a ação política trabalhista. Suas linhas gerais consistiam em dotar o Brasil de instrumentos para sustentar a marcha desenvolvimentista sem sacrificar os trabalhadores e as massas populares, dentro do espírito varguista do qual Jango era herdeiro. Elas não formavam, todavia, um corpo homogêneo, pois encontram-se nelas elementos de balanço de governo, programa político e aspirações generalistas. Desse modo, imaginar o seu destino e o do Brasil caso o golpe de 64 não tivesse ocorrido pertence ao âmbito da contrafactualidade e, portanto, da ficção.

A história, real e concreta, sempre transcende a vontade subjetiva dos agentes que a compõem. O devir histórico não tem patentes e marcas d’água, pois é aberto a quem disponha dos meios para nele atuar. O Brasil que vivemos, em grande medida, é o resultado da efetivação, pelos governos militares, da maior parte dos pontos levantados nas reformas de base. Seu alcance e sua importância devem ser conjugados no presente e no pretérito perfeito, imperfeito ou mais-que-perfeito do indicativo, não no futuro do pretérito. Conjecturar trajetórias alternativas sem dúvida é mais simples, pois evita as contradições e complexidades da realidade, mas não nos leva a lugar algum. Somente a realidade tal como foi e é pode nos informar acerca do que necessitamos para compreender onde chegamos e para onde podemos ir.

Analisemos, então, ponto por ponto, pelo título atribuído por Jango, as reformas de base e sua aplicação pelos governos militares.

  • Planejamento como Norma de Governo

Esse é o primeiro ponto levantado por Jango nas reformas de base, desenhado para organizar o desenvolvimento nacional e suplantar o casuísmo e a aleatoriedade do capitalismo puramente privado.  Nas palavras de Jango:

Preocupou-se também a Administração em imprimir sequência à atividade pública, com o que foi obtido melhor aproveitamento dos recursos disponíveis. Esse pensamento é que levou o Governo, em seguida à aprovação do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social, à criação de um sistema de planejamento, com estrutura adequada à ordem institucional vigente, o que fez por intermédio do Decreto nº 52.256, de 11 de julho de 1963, que criou a Coordenação do Planejamento Nacional. Existe, agora, um órgão aparelhado para orientar as providências governamentais e estabelecer os critérios que devem ser observados na execução de projetos prioritários, possibilitando, assim, correto desdobramento do Plano de Desenvolvimento (p. XXXI-XXXII).

Com efeito, uma das características centrais de todo o período militar foi o planejamento econômico e social como critério de atuação governamental. Como afirmou o sociólogo Guerreiro Ramos, eleito deputado federal pelo PTB em 1963, referindo-se ao governo Castelo Branco, “a nossa administração federal entrou definitivamente na fase que podemos chamar de planificação” (Ramos, 1983 [1966], p. 249). Ele enumera as iniciativas desse governo no referido sentido:

No Governo Castelo Branco definiram-se as atribuições de um Ministro sem Pasta como sendo as de um Ministro Extraordinário para o Planejamento e Coordenação Econômica (Decreto nº 53.890, de 20 de abril de 1964 e Decreto nº 53.914, de 11 de maio de 1964), com a incumbência de “dirigir e coordenar a revisão do plano nacional de desenvolvimento econômico, em cooperação com os órgãos competentes de administração”. Sob a supervisão desse ministro, foi elaborado e está em execução um Programa de Ação Econômica para o período 1964-66. Pelo Decreto nº 55.722, de 2 de fevereiro de 1965, criou ainda o presidente Castelo Branco o Consplan, o Conselho Consultivo do Planejamento, como órgão de consulta do Governo junto ao Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica. Finalmente, pelo Decreto nº 57.464, de 20 de janeiro de 1965, o presidente da República deu ao ministro do Planejamento e da Coordenação Econômica atribuições para elaborar o Plano Econômico de Longo Prazo, a ser entregue ao Chefe da Nação no período presidencial posterior ao que se encontra em curso, bem como para criar Grupos de Coordenação necessários à realização dessa tarefa (Ramos, 1983 [1966], p. 348-349).

Entre os planos governamentais do período militar, constam o PAEG (Plano de Ação Econômica Geral), do governo Castelo Branco – semelhante ao malogrado Plano Trienal do governo João Goulart, sob coordenação de Celso Furtado -, o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), do governo Costa e Silva, as Metas e Bases para a Ação do Governo (1970-71) e o I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-74), do governo Médici, o lendário II PND, do governo Geisel, e o menos badalado III PND, do governo Figueiredo.

Desse modo, o planejamento como norma de governo, primeiro item das reformas de base, foi plenamente cumprido nos governos militares.

  • Reescalonamento da Dívida Externa

Uma das principais questões em que se debatia o governo Jango foram as negociações da dívida externa herdada do governo JK. O banqueiro Walter Moreira Salles, ministro da Fazenda no gabinete parlamentarista de Jango, esteve à frente das negociações, sem sucesso. Um acordo com os credores internacionais era visto pelos trabalhistas como essencial para normalizar as relações econômicas internacionais.  Segundo Jango:

Empenhou-se, pois, o Governo, no propósito de obter melhor compreensão internacional para recompor o processo de resgate dos compromissos no exterior, não só para o desafogo financeiro interno, mas também, e, sobretudo, para a elevação do nível de intercâmbio, de benefícios recíprocos, com áreas que sempre mantiveram conosco intensas relações comerciais (p. XXXIII)

O governo Castelo Branco conseguiu concluir exatamente o que Jango havia começado. A consolidação da dívida externa permitiu ao Brasil ampliar o acesso ao mercado internacional de crédito, que voltaria novamente a se fechar por ocasião da crise da dívida nos anos 1980, que não vitimou apenas o Brasil, mas toda a América Latina e, inclusive, países socialistas do leste europeu, como Iugoslávia, Polônia, Hungria e Romênia.

Segundo Roberto Campos, ministro do Planejamento do primeiro governo militar, apesar do Brasil ter cedido vários pontos ao FMI para concluir os acordos, não cedeu quanto ao PAEG, considerado “gradualista” pelo FMI, que exigia um choque mais radical, e, também, em relação ao mecanismo da correção monetária, introduzido nesse governo a despeito das pressões contrárias do FMI (Campos, 1994, p. 612-615).

Dessa forma, não se pode dizer que o governo militar tenha deixado de cumprir um dos principais objetivos das reformas de base, nos termos possíveis dentro do contexto existente.

  • Remessa de Lucros

Uma das medidas mais controversas do governo Jango, a Lei de Remessa de Lucros (Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962), cuja principal determinação limitava em 10%  o envio de lucros ao exterior para obrigar o reinvestimento interno dos recursos auferidos por estrangeiros no Brasil, não foi abolida pelos governos militares, mas alterada pela Lei nº 4.390, de 29 de agosto de 1964, que determinava, para as remessas excedentes a 12% dos lucros, um imposto de renda progressivo suplementar, conforme a tabela abaixo, reproduzida do § 1º do Art. 43 dessa lei:

entre 12% e 15% de lucros sobre o capital e reinvestimentos – 40% (quarenta por cento);
entre 15% e 25% de lucros – 50% (cinquenta por cento);
acima de 25% de lucros – 60% (sessenta por cento).

A substituição do bloqueio de remessas pelo imposto progressivo sobre elas constituiu, de fato, uma flexibilização da lei de remessas de Jango, porém, de modo algum, pode-se dizer que o Brasil tornou-se “terra sem lei” para o capital estrangeiro. A lei de remessas do governo Castelo Branco, inclusive, assemelha-se, na opção pela tributação extra da remessa de lucros, à política adotada atualmente pela China[1]. Além disso, a implementação da Comissão Interministerial de Preços (CIP), no governo Costa e Silva, para tabelar os preços finais de produtos e insumos favorecidos por subsídios governamentais, certamente contribuiu para mitigar a remessa de lucros ao exterior e compensar a relativa liberalização do governo Castelo Branco. Provavelmente ocorreram fraudes e sonegação da parte das empresas estrangeiras, mas esse é um risco para toda e qualquer lei.

A reforma de base da lei de remessa de lucros foi, portanto, mitigada, porém não extinta, pelos governos militares. Infelizmente, a Lei 4.390/64 foi recentemente revogada por Bolsonaro pela Lei nº 14.286, de 29 de dezembro de 2021, que liberaliza as fronteiras cambiais do Brasil de uma forma que talvez sequer fosse imaginada na década de 1960.

  • Defesa do Patrimônio Mineral

Nesse importantíssimo ponto, concernente à soberania nacional sobre o subsolo e às matérias-primas indispensáveis a todo e qualquer processo de industrialização, Jango tomou a corajosa decisão de resguardar o patrimônio nacional da cobiça estrangeira. Em suas palavras:

Assim é que, por decreto baixado na Pasta das Minas e Energia, determinei a cassação de todas as concessões de pesquisa e lavra de minérios, que infrinjam as expressas disposições do Código de Minas e da Constituição. Determinei, igualmente, a cassação de todas as autorizações outorgadas a sociedades mercantis para funcionarem como empresas de mineração, nos casos em que tais empresas não se ajustem às exigências da legislação, especialmente no que concerne à nacionalidade brasileira dos seus dirigentes, sócios ou acionistas.

Nesse ponto específico, os governos militares representaram um retrocesso em relação às disposições vigentes anteriormente. O Art. 161 da Constituição de 1967 extinguiu o direito de preferência do proprietário do solo na exploração dos respectivos recursos minerais, garantindo a ele a participação nos resultados da lavra. Se, de um lado, essa medida enfraqueceu a posição dos proprietários de terras e abriu mais espaço para a Vale do Rio Doce, por outro lado, também favoreceu as mineradoras estrangeiras organizadas no Brasil. Assim como a CF 1946, a CF 1967 apenas exigia que as concessões federais fossem dadas exclusivamente a brasileiros ou a sociedades organizadas no País, não discriminando a nacionalidade dos acionistas e administradores das empresas aqui organizadas. Essas Constituições contrapunham-se nesse aspecto a de 1937, que determinava, no seu Art. 144, a “nacionalização progressiva das minas, jazidas minerais e quedas d’água ou outras fontes de energia assim como das indústrias consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar da Nação”.

Percebe-se, pelo posicionamento de Jango, que a retomada da regulamentação de 1937 constituía um dos pontos das reformas de base, que não foi cumprido pelos governos militares. Felizmente, o fortalecimento da Companhia Vale do Rio Doce e a criação da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), atual Serviço Geológico do Brasil, pelo decreto-lei nº 764, de 15 de agosto de 1969, impediram uma maior desnacionalização do subsolo brasileiro.

  • Monopólio de Importação

Definido pelo Decreto nº 53.337, de 23 de Dezembro de 1963, o monopólio de importação de petróleo pela Petrobrás, um dos pontos das reformas de base, perduraria ao longo de todo o regime militar, sendo revogado somente em 15 de fevereiro de 1991 por Fernando Collor de Mello[2].

  • Supra e Refino

Nesse ponto, Jango preconizava o fortalecimento da Superintendência para a Reforma Agrária (Supra) e a desapropriação, para fins de reforma agrária, da faixa de dez quilômetros laterais às rodovias e ferrovias e as terras beneficiárias de obras federais. De acordo com o Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964, seriam desapropriadas “as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez) quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem”, excluindo-se as terras inferiores a 500 hectares, no caso dos eixos viários, e a 30 hectares, no caso das terras trabalhadas em obras federais.

A Supra foi substituída, logo após o golpe de 1964, pelo Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário (INDA) e pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), que seriam reunidos e reestruturados, em 1970, durante o governo Médici, no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existente até hoje. O Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970, também declarava, para fins de reforma agrária, a desapropriação da faixa de dez quilômetros laterais às rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém.

Ainda no governo Médici, o Decreto-Lei nº 1.164, de 1º de abril de 1971, federalizava, também para fins de reforma agrária, os cem quilômetros marginais à Transamazônica e a várias outras rodovias federais na Amazônia, integrando-a ao plano de desenvolvimento regional do Programa de Integração Nacional, criado pelo Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970.

A colonização dessas áreas, dirigida pela INCRA e pelo Banco do Brasil, seguiu o modelo das agrovilas, núcleos residenciais e agrícolas organizados cuja estrutura urbana fora montada “usando a madeira das árvores derrubadas nos lotes de plantação. Assim, dotaram-se as agrovilas de residências, escolas, rodoviária, instalações comerciais, centro de lazer e posto médico[3]”. Apesar de vários colonos terem abandonado as agrovilas, muitas delas permaneceram e cresceram, entre elas a primeira agrovila, Medicilândia, no Pará, hoje uma cidade com mais de 30 mil habitantes.

Nesse mesmo item, Jango defendeu a encampação das refinarias privadas feita pelo seu governo. As refinarias de Manguinhos (RJ), Ipiranga (RS), Capuava (SP) e Manaus (AM) passaram, pois, a integrar o patrimônio da Petrobrás. Devolvidas a seus antigos donos por decisão judicial no governo Castelo Branco, as refinarias de Capuava e de Manaus seriam reintegradas à Petrobrás na primeira metade da década de 1970.

Desse modo, a parte essencial desses aspectos das reformas de bases foram cumpridos, dentro do possível, pelos governos militares.

  • Reforma Bancária

Nesse ponto, Jango defende que:

De há muito o País reivindica, por intermédio de suas forças econômicas, a implantação de um órgão autêntico e centralizado, com autonomia de decisões, para a direção da política monetária e bancária, que disponha de maior força coercitiva para o controle de processos inflacionários. Foi o que visou atender a proposta do Poder Executivo enviada ao Congresso, ao mesmo tempo em que procura dotar o Governo de condições que melhor lhe permitam selecionar o crédito para o impulso das verdadeiras forças de produção (p. XXXVIII-XXXIX – negrito meu)

A criação do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional, pela Lei nº 4595, de 31 de dezembro de 1964, se não atendeu integralmente esse ponto das reformas de base, foi por não permitir a “autonomia de decisões” do Banco Central.  De acordo com o Art. 9 da Lei 4595/64, “Compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional”. De acordo com o Art. 6 da referida lei, o Conselho Monetário Nacional seria integrado pelo Ministro da Fazenda, representando o Presidente, pelos presidentes do Banco do Brasil e do BNDE e por seis membros nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado. Dessa forma, os governos militares, ao organizarem um Banco Central subordinado ao Poder Executivo cumpriram melhor essa reforma de base do que havia sido proposto por Jango.

Algumas inovações institucionais do período militar cuidaram de “dotar o Governo de condições que melhor lhe permitam selecionar o crédito para o impulso das verdadeiras forças de produção”. O BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) foi ampliado com a criação do Finame (Fundo de Financiamento para a Aquisição de Máquinas e Equipamentos), em 1964, da Finep (Financiadora de Projetos e Estudos), em 1967, para incentivar a ciência e a tecnologia nacionais, do Fungiro (Fundo Especial para o Financiamento do Capital de Giro), em 1968, do FMRI (Fundo de Modernização e Reorganização Industrial), em 1970, e da Embramec, da Fibase e a Ibrasa, em 1974, para financiar, respectivamente, as indústrias de bens de capital, insumos básicos e outras de importância regional e setorial, dando prioridade ao capital nacional, sobretudo privado. Com essa nova equipagem, o BNDE, transformado, no início da década de 1970, no segundo maior banco de desenvolvimento do mundo, tornou-se uma das peças-chave do desenvolvimentismo brasileiro durante o Milagre Econômico e o II PND (Campos, 1994, p. 628; Vianna, 2010, p. 164).

A criação do Sistema Financeiro da Habitação, pela Lei nº 4.380 de 21 de agosto de 1964, protagonizado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e alimentado, a partir de 1967, por recursos do Fundo Garantia por Tempo e Serviço (FGTS), foi responsável pela construção de toda uma infraestrutura urbana de moradias e saneamento e pelo aumento de investimentos na construção civil num período de rápida urbanização, incrementando a participação pública no desenvolvimento e na integração do país[4].

No governo Costa e Silva, foram introduzidas, através do Banco Central, importantes medidas financeiras voltadas ao alargamento do crédito para ao desenvolvimento, como a Resolução nº 63, de 25 de agosto de 1967, que autorizava a contratação direta de empréstimos externos por bancos públicos e privados para serem repassados às empresas no país, a Resolução nº 72, de 17 de novembro de 1967, que condicionava a permissão para a abertura de novas agências e filiais de estabelecimentos bancários ao teto de taxas de juros de 1% ao mês, e a Resolução nº 23, de 26 de junho de 1968, que incentivava a criação de bancos estaduais e interestaduais de desenvolvimento. Outras medidas do governo Costa e Silva nesse sentido foram a redução das taxas de juros anuais de 36% para 24% e a determinação às instituições financeiras para que destinassem pelo menos metade das suas operações de crédito a pessoas físicas e jurídicas sediadas no país e cujo capital majoritário fosse de brasileiros[5].

  • Sonegação Fiscal

Nesse ponto, Jango afirma que:

Outro projeto do Poder Executivo para o qual aguardo, com justa esperança, um rápido pronunciamento dos Senhores Congressistas é o que procura combater, decididamente, a sonegação fiscal, já transformada num dos maiores escândalos deste País e que de frauda o Tesouro Nacional de quantias que atingem níveis clamorosos (p. XXXIX).

O crime de sonegação fiscal foi definido pela Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, e sua abrangência seria ampliada pelo Decreto-Lei nº 1.060, de 1969. Então, esse ponto das reformas de base foi completamente cumprido.

Jango também se refere ao “projeto remetido em dezembro do mesmo ano, que institui normas sobre a cobrança do imposto de renda e estabelece medidas para a modernização do aparelho arrecadador” (p. XXXIX). A instituição do Código Tributário Nacional, pela Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, também cumpriu esse propósito.

  • Reforma Administrativa

A reforma administrativa do governo Castelo Branco, estabelecida pelo Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, era, em muitos pontos, alinhada às diretrizes da Comissão Amaral Peixoto de 1963, nomeada a pedido de Jango para tratar da reforma administrativa e que, assim como a reforma efetivamente implantada em 1967, preconizava uma maior descentralização administrativa e a integração do orçamento ao órgão central de planejamento (Wahrlich, 1974).

Como afirmou o insuspeito Celso Furtado, ministro do Planejamento de Jango: “As medidas introduzidas a partir de 1964 permitiram restabelecer o equilíbrio do setor público e criaram condições para submeter a inflação a controle. Ademais, armaram o governo para exercer maior iniciativa no processo de formação de capital” (Furtado, 1975, p. 37).

  • Os Códigos

Jango apresenta esse item da seguinte forma:

Com o mesmo objetivo de reestruturação institucional, entregou o Governo à consideração de Vossas Excelências, durante a sessão legislativa de 1963, os projetos de Código de Contabilidade e de Processo do Trabalho, os dois primeiros da série de códigos com os quais se procura alcançar um ordenamento de nossas instituições jurídicas consentâneo com o novo estádio histórico em que ingressa a sociedade brasileira (p. XL).

Até hoje, o código de contabilidade vigente continua sendo o de 1922, porém, a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, assinada por João Goulart, que “estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal” (Art. 1º), não foi revogada, sofrendo apenas pequenas alterações ao longo do tempo. Por sua vez, o Processo do Trabalho brasileiro continuou sendo regulado pela CLT. Dessa forma, não ocorreu uma modificação substancial da legislação já aprovada e existente no governo Jango.

  • Salário Móvel

Para Jango, a instituição do salário-móvel para os trabalhadores celetistas e o funcionalismo civil e militar da União era essencial para preservar o poder aquisitivo dos salários e ordenados. Em suas palavras, “causou-me especial prazer a receptividade que encontrou, no Congresso, a Mensagem a ele por mim enviada, ao fim da última sessão legislativa, para a instituição da escala-móvel de salário” (p. XL).

A escala-móvel de salários, que seria de base semestral, foi implementada pelos governos militares na base anual. Em relação especificamente ao salário-mínimo, somente durante o governo Geisel ele seria reajustado acima da inflação, corrigindo parcialmente a sua desvalorização real, iniciada ainda durante o governo Jango em função da escalada inflacionária, porém continuada nos governos seguintes mesmo após os índices inflacionários terem sido reduzidos.

Importante observar, todavia, que o “arrocho salarial”, em relação ao salário mínimo, ocorreu nos principais centros metropolitanos, não no conjunto do país. Até 1963, havia 34 diferentes níveis regionais de salário mínimo, e a diferença entre o menor e o maior, em 1954, era de 1 para 4,32. A partir de 1963, no governo Jango, os níveis e a diferença entre eles foram gradualmente reduzidos, e, em 1977, havia apenas cinco níveis, com uma diferença de 1 para 1,77 (Demo, 1981, p. 146).

Tomando como base o índice 100 para cada salário mínimo regional de 1960, ano em que o salário mínimo como um todo atingiu seu pico histórico, o salário mínimo de São Paulo e Rio de Janeiro, em 1975, era de 84, enquanto em Teresina era de 138, em São Luís, 102, e em Curitiba e Florianópolis, 101 (João Paulo dos Reis Velloso, “Velloso afirma que distribuição de renda melhorou”, O Globo, 25-9-1975, p. 24). Portanto, em regiões menos desenvolvidas, o salário mínimo aumentou durante os governos militares. A unificação do salário mínimo seria finalmente alcançada em 1984, porém sua efetivação na prática é problemática até hoje.

Por sua vez, trabalhadores de outras faixas salariais tiveram aumentos reais em todo o país. Categorias sujeitas a dissídios coletivos tiveram aumento médio real de 34% entre 1968 e 1975, e, na indústria de transformação em particular, os salários tiveram um aumento médio de 60% nesse mesmo período. Na verdade, todas as faixas de renda tiveram aumento de renda real, e, em São Paulo, no setor industrial, a parcela de trabalhadores remuneradas pelo salário-mínimo caiu de 36% para 19%, acusando uma ampliação das faixas salariais superiores ao mínimo (João Paulo dos Reis Velloso, “Velloso afirma que distribuição de renda melhorou”, O Globo, 25-9-1975, p. 24).

Como demonstra a prof. Sonia Rocha (2006), na década de 1970, não apenas a pobreza foi reduzida pela metade, com reduções significativas em todas as regiões do país, como, ainda, o hiato dos pobres para os não-pobres diminuiu drasticamente, mostrando que os pobres se tornaram menos pobres.

Dessa forma, pode-se dizer que a política salarial dos governos militares, se não alcançou em todo o país e para toda a sociedade o objetivo proposto nas reformas de base de Jango, tampouco representou uma completa ruptura, aprofundando, em alguns aspectos, tendências progressistas iniciadas pelo governo deposto.

  • Hidrelétrica de Sete Quedas

Essa obra corresponde a Itaipu Binacional, um dos símbolos do regime militar. Far-se-ia justiça histórica a Jango reconhecendo-o como idealizador desse grande feito da engenharia nacional.

  • Plano Nacional de Telecomunicações

A esse respeito, Jango afirma que “o Governo não poupa esforços para tornar realidade o Plano Nacional de Telecomunicações, cujo instrumento será a Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL), que entrará em atividade dentro em breve” (p. XLIII).

A Embratel tornou-se realidade em 16 de setembro de 1965, durante o governo Castelo Branco, com base na Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962, sancionada pelo próprio Jango. Entre 1967 e 1972, a Embratel conectou por microondas ou satélite todas as capitais e as 500 maiores cidades brasileiras, e inaugurou, em 1969, a estação terrena do Sistema Internacional de Comunicações por Satélite, em Tanguá, o que permitiu aos brasileiros assistir a cores a Copa do Mundo de 1970. Em 1972, foi incorporada ao sistema Telebrás, criado nesse ano para estruturar a integração telefônica brasileira e desenvolve a indústria nacional de telecomunicações[6].

  • Complexo de São Félix

De acordo com Jango:

Outro projeto de vulto, também intimamente relacionado com a solução de um dos problemas da nossa indústria básica, é o aproveitamento do potencial do rio Tocantins, por meio da construção da barragem e da usina de São Félix. A usina terá uma potência total de 500.000 kW, dos quais 100.000 kW na primeira etapa. A obra rasgará novas possibilidades à exploração das riquezas do vasto Centro-Oeste e, notadamente, permitirá a exploração de níquel em larga escala, nas jazidas do Município de Niquelândia, avaliadas em 16 milhões de toneladas (p. XLIII).

O Complexo de São Félix não veio a existir, porém, para a mesma finalidade, foi construída, entre 1976 e 1984, a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, com uma capacidade de geração de 8.370 MW, mais de 16 vezes maior que o projetado nas reformas de base.

  • Expansão da Petrobrás

Segundo Jango, “Objetivo central do governo, ligado à própria emancipação da economia nacional e à consolidação de sua independência, a produção de petróleo, graças às medidas já adotadas, deverá atingir cerca de 70-80 milhões de barris anuais em 1966/67 e 140-150 milhões de barris no período imediatamente posterior” (p. XLIV).

Com a inauguração, em 1968, da Refinaria Gabriel Passos (Regap) e Alberto Pasqualini (Refap), a produção anual de petróleo cumpriu a meta proposta por Jango. Até 1980, com a construção e o funcionamento da Refinaria de Paulínia (Replan), Presidente Getúlio Vargas (Repar) e Henrique Lage (Revap), a produção de petróleo praticamente triplicou em relação a 1968. Cerca de 40% da atual capacidade de refino foi construída pela Petrobrás entre 1968 e 1980 (Mendes et al, 2018, p. 14).

Além disso, durante o regime militar, a Petrobrás expandiu-se, por meio da formação de subsidiárias, para os setores de petroquímica (Petroquisa, criada em 1968), distribuição (BR Distribuidora, criada em 1971), explorações internacionais (Braspetro, criada em 1972), comércio exterior (Interbrás, criada em 1976), fertilizantes (Petrofértil, criada em 1976) e mineração de potássio (Petromisa, criada em 1977). O Cenpes (Centro de Pesquisas de Petróleo), criado por Jango em 1963, foi amplamente estruturado e desenvolvido.

Desse modo, a expansão da Petrobrás, tal como proposta por Jango nas reformas de base, foi plenamente cumprida e avançada para além do que Jango concebera.

  • Reaparelhamento de Portos

Nesse item, Jango afirma que “o Governo pretende encetar, de imediato, as obras imprescindíveis ao reaparelhamento dos portos do Rio de Janeiro e de Santos, cujo custo, nos próximos dois anos, exigirá grandes investimentos. Recife será, também, objeto de providências especiais. Em conjunto, este programa demandará vultosos recursos em cruzeiros e em moeda estrangeira” (p. XLV).

Em 1966, cumprindo-se o que Jango havia proposto nas reformas de base, inclusive a respeito da cooperação estrangeira, foi instituído um plano de expansão dos portos de Rio de Janeiro, Santos e Recife. Piloni e Silva (2013, p. 57) assim o descreve:

Em 1966, a participação do Banco Mundial nos Estudos de Transporte do Brasil e, especificamente do desenvolvimento dos portos de Santos, Rio de Janeiro e Recife, a cargo de consultora estrangeira e com contra quadro de profissionais brasileiros, deu novo impulso para o aperfeiçoamento do planejamento portuário e inclusive a criação do GEIPOT (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes). A partir daí e com a constituição de empresas brasileiras de consultoria voltadas para portos, vinha sendo sedimentado um procedimento de planejamento através dos sucessivos Planos Diretores de Portos ou Plano de Desenvolvimentos dos Portos, coordenado pelo Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis e posteriormente pela Portobrás.

Ainda nos governos militares da década de 1960, foi feita a dragagem nos portos de Rio de Janeiro, Santos e Recife, além de Belém, Paranaguá, Itajaí, Porto Alegre e Antonina, com a colaboração do BIRD (“Ajuda do BIRD para a dragagem dos portos” – O Globo, 7 de novembro de 1969, p. 13).

A expansão do setor portuário avançou na década de 1970 e ganhou um impulso especial com a criação, em 1974, da Renave (Empresa Brasileira de Reparos Navais) e, em 1975, da Portobrás, estatais voltadas para a expansão dos portos marítimos e fluviais brasileiros. O Porto de Itaguaí (RJ), iniciado em 1976 e inaugurado em 1982, o Complexo Industrial Portuário de Suape, na Região Metropolitana de Recife, iniciado em 1978 e inaugurado em 1983, e a construção dos portos fluviais de Tabatinga, Itacoatiara, Parintins, Coari, Caracaraí e Porto Velho, na Amazônia, foram algumas das principais realizações da Portobrás no período.

Em termos de reaparelhamento de portos, pode-se considerar cumprida a meta das reformas de base.

  • Renovação Tecnológica das Forças Armadas

Não restam dúvidas que, durante o regime militar, muito avançou a capacidade tecnológica das Forças Armadas, da qual o polo tecnológico de São José dos Campos é um dos principais exemplos. Esse item das reformas de base deu especial atenção à execução dos projetos, então em andamento, para a construção de foguetes brasileiros. Já em 1965, foi lançado, na Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, base de lançamentos inaugurada naquele ano, o CNAE-001, foguete desenvolvido pela Comissão Nacional de Atividades Espaciais (CNAE) (“O Presidente pretende assistir a lançamento na Barreira do Inferno” – O Globo, 16 de outubro de 1965, p. 10).

Os foguetes brasileiros Sonda I, II, III e IV, foram lançados, respectivamente, em 1965, 1969, 1976 e 1984[7]. O lançamento, pela Avibrás, do sistema de lançamento múltiplo de foguetes ASTROS II, no início da década de 1980, permitiu ao Brasil ser um dos maiores exportadores de armas do mundo[8].

Portanto, esse ponto das reformas de base também foi cumprido pelo regime militar.

  • Companhia Vale do Paraopeba

A criação de uma nova empresa mista para a exploração das jazidas do Vale do Paraopeba, para “aumentar a exportação de minérios de ferro” e formar, junto com a Vale do Rio Doce, “dois centros capitais da exportação de minérios” (p. XLVI-XLVII), não se concretizou. Contudo, a Vale do Rio Doce fortaleceu sua posição exportadora e se tornou, em 1977, a maior companhia mineradora de ferro do mundo, tendo quintuplicado o volume de suas exportações entre 1966 e 1976 (“A maior empresa mineradora de ferro do mundo está fazendo 35 anos” – O Globo, 1º de junho de 1977, p. 9).

Além disso, Jango propunha a construção de uma grande usina siderúrgica no Vale do Paraopeba, o que viria a se concretizar em 1976, quando a Açominas é transferida do governo de Minas Gerais para a estatal federal Siderbrás e iniciam-se as obras da construção da sua siderúrgica na região, inaugurada em 1986, já no governo Sarney. Demorou mas aconteceu.

De acordo com o previsto nas reformas de base, a construção da siderúrgica teria por objetivo “não só atender as necessidades internas, como também transformar a própria estrutura das exportações, que passará a incluir produtos acabados, matérias-primas e artigos semi-elaborados” (p. XLVI-XLVII). Considerando que a participação de manufaturados nas exportações brasileiras subiu de 6,2% em 1964 para 15,2% em 1970, 44,8% em 1980 e 54,9% em 1985 (Schneiderman, 2001, p. 20), pode-se dizer que também esse objetivo das reformas de base foi muito bem cumprido.

  • Sistema Ferroviário Nacional

O “extenso programa de remodelação e reaparelhamento” das ferrovias e a “revisão de traçados ferroviários” (p. XLVII), propugnados por Jango nas reformas de base, foi, efetivamente, levado a cabo nos governos seguintes pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), que operou gigantesca tarefa de modernização do setor ferroviário brasileiro, inclusive continuando a desativação de linhas obsoletas, iniciada em 1960[9]. A produtividade das linhas férreas da RFFSA aumentou de aproximadamente 10 TKU, em 1964, para mais de 30 TKU, em 1980, e o total de investimentos, em preços fixos, aumentou 4,5 vezes entre 1964 e 1976, passando a cair sistematicamente a partir de então (Paixão e Khoury, 2008, p. 2). Nesse sentido, as reformas de base, dentro da generalidade proposta, foram atendidas pelos governos militares.

  • Universidade de Brasília

De acordo com o texto das reformas de base:

Outra magna tarefa a que se devota o Governo é a implantação, em Brasília, de uma universidade moderna capaz de, além de cumprir as tarefas correntes de ensino e pesquisa, completar a cidade-capital com o núcleo cientifico e cultural que não lhe pode faltar e, ainda, proporcionar aos poderes públicos a indispensável assessoria no campo do planejamento e da assistência técnica e cientifica (p. XLVIII).

Não se pode negar que, a despeito da perseguição e do afastamento de professores que haviam participado da criação da UnB, a universidade, ao longo dos anos 60, 70 e 80, tenha falhado em se estruturar nos termos assinalados por Jango nas reformas de base, tendo se tornado uma das mais sofisticadas e completas universidades brasileiras.

Importante assinalar que, no mesmo item, constava a obtenção de fundos por meio da “doação de organismos internacionais e fundações ou mediante programas bilaterais de assistência” (p. XLVIII). Dessa forma, o polêmico acordo MEC-USAID, para a modernização do ensino superior brasileiro, estendeu, a todo o sistema universitário nacional, uma prática que, de alguma forma, era defendida nas reformas de base. O próprio Darcy Ribeiro, que liderou a criação da UnB, afirmou que o sistema da UnB “foi generalizado pela ditadura, através de decreto, para todo o país”, embora lamente que essa generalização tenha ocorrido de forma prematura e sido, em sua opinião, um “simulacro” (Ribeiro, 1995, p. 215).

  • Financiamento do Programa

Jango, é claro, sabia que o desenvolvimento custava dinheiro e que dinheiro não dava em árvore. Assim, ele defendeu nas reformas de base, que:

O esforço sem precedentes, consubstanciado neste complexo de tarefas que abrirão ao Brasil as portas do futuro, é indispensável para reforçar e modernizar a infraestrutura de nossa economia. Importa, é certo, em gastos extremamente pesados — inclusive em moeda estrangeira — que o País não poderia suportar nas presentes condições, em consequência do acúmulo de dívidas a curto prazo contraídas no Exterior. Entretanto, graças ao reescalonamento dos nossos compromissos externos e à consolidação da posição do Brasil junto aos seus credores, como resultado das negociações levadas a efeito pelo meu Governo, abrem-se perspectivas de eliminação dessas dificuldades e de levar avante os grandes cometimentos planejados (p. XLVIII-XLVIX – negrito meu).

O endividamento externo para acelerar o desenvolvimento, uma das medidas mais controversas dos governos militares, era, portanto, um dos itens das reformas de base, e, para conseguir acesso ao mercado internacional de crédito, Jango, tanto quanto os militares, dispôs-se a acertar a posição do Brasil junto aos credores internacionais.

Ressalve-se, contudo, que, segundo João Paulo dos Reis Velloso, ministro do Planejamento nos governos Médici e Geisel, o recurso ao capital externo e ao endividamento, nesse período, deveu-se não à necessidade de financiamento de novos projetos, que, em sua maioria, podiam e foram financiados com moeda nacional, mas pela necessidade de, com a subida dos preços do petróleo, manter em operação e em funcionamento normais a estrutura urbana, industrial e produtiva já existente, que dependia de grandes importações de petróleo e outras matérias-primas industriais cujos preços dependiam da cotação do petróleo (Velloso, 1986, p. 228).

  • Reforma Agrária

Medida mais importante e de maior apelo dentre todas as reformas de base, a reforma agrária, já analisada em parte no item 6, foi, sem dúvida alguma, o catalisador da polarização entre os adeptos das reformas de base, entre eles muitos esquerdistas não-trabalhistas, e a direita golpista que tramou e conseguiu a deposição de Jango. O aspecto central da proposta de reforma agrária nas reformas de base consistia na desapropriação da terra improdutiva mediante pagamento em títulos públicos de valor reajustável, ressalvando-se ao proprietário, nos casos de desapropriação por interesse social, “o direito de escolher e demarcar, como de sua propriedade de uso lícito, área contígua com dimensão igual à explorada” (p. LIII).

Como se vê, não se tratava de uma medida revolucionária, mas basicamente reformista, que não fora compreendida pelos conservadores mais empedernidos, ou melhor, até o fora, daí a selvagem oposição infligida por eles. Por outro lado, esses mesmos conservadores tiveram que aceitar o Estatuto da Terra, aprovado no governo Castelo Branco pela Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, e vigente até hoje, para normatizar a reforma agrária. Criaram-se em lei o cadastramento compulsório das propriedades rurais, as desapropriações por interesse social, os títulos da Dívida Agrária Nacional para executar as desapropriações e os módulos fiscais para calcular as alíquotas do Imposto Territorial Rural, entre outros mecanismos de controle fundiário.

A partir de então, foram tomadas algumas iniciativas de vulto, como a desapropriação, pelo Decreto nº 55.761, de 16 de Fevereiro de 1965, da Usina Caxangá – transformada em usina modelo pelo IBRA (“IBRA transforma usina de baixa produtividade em grande centro produtor”, O Globo, 11 de março de 1967, p. 4) – e da Companhia Agro-Pecuária do Amaragi, ambas em Pernambuco, e a desapropriação, pelo Decreto nº 59.210, de 14 de Setembro de 1966, de uma série de engenhos nos municípios pernambucanos de Ribeirão e Amaragi.

A reforma agrária ganharia um maior relevo a partir do hoje esquecido Ato Institucional nº 9, de 25 de abril de 1969, no governo Costa e Silva, que estabeleceu a desapropriação de imóveis rurais sem o pagamento prévio de indenização e com o pagamento em títulos da dívida pública, tal como proposto anteriormente por Jango, alterando o Art. 157 da Constituição de 1967, que garantia o pagamento prévio. Mais ainda, como muitos proprietários declaravam um valor rebaixado do imóvel para fraudarem o pagamento do Imposto Territorial Rural, o AI-9 estipulou esse valor como base para as indenizações, desferindo um duro castigo aos latifundiários.

Em 20 anos de Estatuto da Terra, foram desapropriados, apenas para fins de reforma agrária, mais de 13 milhões de hectares, equivalente à soma territorial dos estados da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Sergipe, e entregues 1 milhão de títulos de propriedade rural, sendo cerca de 800 mil apenas no governo Figueiredo. Nesse vintênio, também foram regularizados 61,8 milhões de hectares, 50,8 milhões entre 1979 e 1984, e incorporados ao patrimônio da União 114,6 milhões de hectares de terra (“Figueiredo comemora os 20 anos do Estatuto da Terra entregando título”, O Globo, 30 de novembro de 1984, p. 23).

Também se prestou apoio e assistência ao trabalhador rural por meio de alguns programas e instituições criadas na década de 1970: o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural), instituído pela Lei Complementar nº 11 de 25 de maio de 1971, que, além de incorporar os trabalhadores rurais à previdência social, iniciou a construção de inúmeros serviços sociais no campo; o Sistema Nacional de Centrais de Abastecimento, de 1972, que fixou preços mínimos, racionalizou o sistema de distribuição e aproximou os pequenos produtores hortifrutigranjeiros dos centros consumidores (Barreto Júnior, 2004), e a Embrater (Agência Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural), de 1975, que se tornou referência mundial[10].

Evidentemente, a reforma agrária feita no período militar esteve longe de ser suficiente para corrigir as históricas distorções do acesso à terra no Brasil, mas insuficiência não é sinônimo de inexistência. Se existiram limites e contradições na aplicação da reforma agrária nesse período, seria no mínimo ingênuo acreditar que, com Jango ou outro governante eleito, esses problemas não existiriam. De todo modo, as principais instituições em vigor de regulamentação da reforma agrária – o Estatuto da Terra e o INCRA – foram criadas pelos governos militares, e procuraram cumprir os principais objetivos das reformas de base.

  • Reforma Política

O principal ponto desse item é a defesa da extensão aos analfabetos, praças e sargentos do direito de votar e ser votado. Esses grupos somente conquistaram o direito de voto na Constituição de 1988, mas, mesmo nela, segundo o Art. 14, não é permitido aos analfabetos se candidatar tampouco o direito de voto aos conscritos durante o serviço militar obrigatório. Desse modo, esse item das reformas de base não foi validado durante o regime militar e, ainda hoje, não foi completamente implementado.

  • Reforma Universitária

Os principais pontos desse item – a abolição da cátedra, a regulamentação da carreira do magistério e da organização universitária – foram definidas, de forma idêntica, na Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, do governo Costa e Silva.

Conclusão

Uma vez que se constate que a grande maioria dos pontos das reformas de base foram aplicados pelos militares que depuseram Jango, cabe a pergunta: por que, então, eles deram o golpe? Não seria mais fácil e menos doloroso para todos apoiar Jango? A sustentação ao projeto trabalhista das reformas de base não seria suficiente para alcançar os mesmos objetivos econômicos e sociais, sem a instituição de um aparato de repressão que não apenas custou a vida e a liberdade de muitas pessoas mas ainda serviu para desprestigiar as Forças Armadas ao longo do tempo?

O âmbito dessa pergunta foge aos objetivos desse artigo, pois remete, fundamentalmente, ao processo histórico iniciado em 1945, quando a base de apoio do Estado Novo, que reunia tanto trabalhistas quanto militares, se cinde do ponto de vista político mas não necessariamente no econômico e social.

De qualquer forma, pode-se supor que aqueles militares compartilhassem com Jango uma perspectiva semelhante quanto às questões e desafios nacionais, antagonizando com ele a respeito de outros aspectos. O fato de muitas das lideranças militares que governaram após 1964, como Costa e Silva, Médici e Geisel, terem se alinhado à corrente tenentista na década de 1920, participado da Revolução de 1930, ajudado a reprimir o levante paulista de 1932 e feito parte da base de apoio de Getúlio Vargas até 1945 é um elemento forte para explicar a afinidade de visão entre eles e os trabalhistas, que provinham desse mesmo tronco.

Além disso, muitas das proposições das reformas de base, sobretudo as que diziam respeito à estruturação de um sistema financeiro centralizado e a grandes obras de infraestrutura, constituíam atendiam às demandas do desenvolvimento industrial que se consolidava como padrão de organização material brasileira naquele contexto. Assim, foram defendidas por outros grupos que não os trabalhistas, como empresários nacionais e estrangeiros, demonstrando haver uma ampla convergência de interesses em torno da industrialização.

Seria possível pensar que, com Jango, as reformas de base teriam sido aplicadas de forma ainda mais efetiva, pois mais independente das pressões oligárquicas que conduziram os militares ao poder em 64. Porém, considerando que, se não houvesse a ruptura do pacto democrático de 1946, Jango teria apenas mais dois anos de governo, e que a sua sucessão provavelmente seria disputada entre Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, dois políticos externos ao trabalhismo, ainda por cima num contexto de agravamento inflacionário e acirramento das tensões políticas de todo tipo, não se torna legítimo, então, afirmar com certeza que as reformas de base teriam sido implementadas da forma como imaginada e desejada por Jango.

Ademais, fica bastante claro que os governos militares, desde o início, manifestaram um certo grau autonomia em relação aos diversos interesses que apoiaram o golpe de 1964, como os dos liberais doutrinários, dos latifundiários e da Embaixada dos EUA. Embora sem dúvida esses grupos preferissem o regime militar a uma suposta “república sindicalista”, não ficaram satisfeitos com os rumos tomados pelo regime e, posteriormente, seu descontentamento engrossou o fluxo da redemocratização. Boa parte da direita e da extrema-direita que clamaram e celebraram pelo golpe de 64 para sepultar o legado de Getúlio Vargas certamente não esperava o aprofundamento de várias das características da Era Vargas, inclusive com a criação de novas reformas de base não previstas na agenda de Jango, como as 200 milhas marítimas, que asseguraram a futura exploração do pré-sal, a rodovia Transamazônica, que incorporou a geografia amazônica à história brasileira, a criação do BNH e do Sistema Financeiro de Habitação, que promoveu uma transformação urbana sem precedentes, a criação de novas empresas estatais estratégicas como a Embratel, a Telebrás, a Siderbrás, a Embraer, a Embrapa, a Portobrás e a Infraero, a criação da Central de Medicamentos, pelo decreto nº 68806, de 25 de junho de 1971, para desenvolver a indústria farmacêutica nacional e garantir o acesso dos mais pobres aos medicamentos, a ampliação da fronteira agrícola ao centro-oeste, libertando-nos, em longo prazo, da dívida externa, a criação do PIS-PASEP, da previdência rural e a extensão dos direitos de férias e aposentadoria às domésticas e aos informais, entre outras.

Não se pode negar, também, que a efetivação da quase totalidade das reformas de base de fato cumpriu o objetivo central, enunciado por Jango, de “assegurar a continuidade do desenvolvimento sociopolítico e econômico do País” (p. XXXI). As robustas taxas de crescimento, sobretudo durante a fase do chamado “Milagre Econômico”, e a redução pela metade da taxa e da intensidade de pobreza na década de 1970 (Rocha, 2006), atestam que as reformas de base, tais como propostas por Jango, não eram comunistas nem preparavam o Brasil para o comunismo, mas serviam para melhorar o capitalismo e torná-lo mais desenvolvimentista e social, como muitos dos seus adversários, na prática, acabaram reconhecendo. Como parte da história, e tendo sido empunhadas por forças políticas opostas, as reformas de base não pertencem a um ou outro partido, a uma ou outra ideologia, mas a todo o Brasil.

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VIANNA, Marcos. Memórias de uma Revolução Industrial. Rio de Janeiro: BNDES, 2010.

Notas de rodapé:

[1] https://ins-globalconsulting.com/repatriating-profits-from-china-as-a-foreign-investor/

[2] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-53337-23-dezembro-1963-393305-norma-pe.html  https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1991/decreto-539-15-fevereiro-1991-497655-norma-pe.html

[3] https://osdivergentes.com.br/orlando-brito/historia-a-primeira-agrovila/

[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/banco-nacional-da-habitacao-bnh

[5] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/artur-da-costa-e-silva

[6] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/embratel

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Foguete_Sonda

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Astros_II

[9] http://vfco.brazilia.jor.br/Planos-Ferroviarios/evolucao-quilometrica-das-ferrovias-no-Brasil.shtml

[10] https://www.emater.mg.gov.br/portal.do/site-noticias/criacao-da-agencia-brasileira-de-assistencia-tecnica-e-extensao-rural-e-recriacao-da-embrater/?flagweb=novosite_pagina_interna&id=1019