O ressentimento como afeto de coesão no Brasil bolsonarista

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Ao esforço contínuo de entender esse momento histórico que nos cerca, convém agregar uma reflexão breve e provisória sobre o ressentimento que parece atravessar o bolsonarismo desde o seu nascimento em nossa história recente. Há uma relação intrínseca entre ressentimento e orgulho em nosso país já há alguns anos, e não deve ser um erro supor que Bolsonaro é, também, uma síntese dessas experiências. Para corroborar a intuição, tomemos algumas pistas.

Não será necessária uma definição filosófica de ressentimento. Basta que os exemplos e situações descritos abaixo sejam lidos pelo que têm em comum uns com os outros. Assim, veremos o ressentimento mais por sua iridescência do que por um verbete.

O recrutamento que o capitão fez para compor o time que iria conduzir o país, da gafieira petista à prosperidade liberal, foi quase inteiramente baseado no critério afetivo de identificação de ressentidos. As credenciais requeridas para compor a equipe de governo, bem como para pinçar os apoiadores com notabilidade e pô-los ao redor do mito, estampavam um mal-estar agudo dos candidatos contra colegas e pares de área. Sugeriam também um antagonismo consciente, gratuito e sem substância a opiniões predominantes, a qualquer coisa que pudesse ser generalizada como “sistema”. Além disso, abrangiam históricos de contribuições irrelevantes ou de total desconhecimento do campo para cujo cargo o candidato estava sendo escalado. Alguns exemplos hão de convalidar esse ponto.

Comecemos pelo mais eloquente embora não o primeiro na cronologia dos escolhidos, Sérgio Moro. O episódio em que Moro desdenhou acintosamente da continência prestada por um ainda deslumbrado candidato Bolsonaro só não foi mais constrangedor do que aquele em que, exonerado do Ministério, ele foi humilhado pelo presidente, dia após sua saída do governo, em um pronunciamento histórico. Despencados o seu apoio, a sua popularidade e a sua máscara, todos passaram a ver o que inúmeros juristas e alguns jornalistas sempre viram nele: um espírito ambicioso e desequipado – incapaz até de ordenar coerentemente os elementos das orações simples em sua língua materna.

Moro nunca foi um juiz brilhante, muito menos um jurista. Mais aclamado por políticos da anti-esquerda do que por operadores do Direito, o ex-herói da Lava Jato ergueu-se como justiceiro e caiu como traidor em apenas meia década. Não obteve respeitabilidade por sua habilidade, conhecimento técnico ou consistência, senão pela disposição momentânea de elevar o seu ódio social ao estatuto de sentença, no já desmoralizado caso de perseguição a Lula. Não dá para saber se o motivo que fez Bolsonaro convidar Moro ao Ministério da Justiça foi a popularidade ou a simpatia pelo antipetismo que ele ostentava. Mas é notável que o temperamento orgulhoso e ambicioso que agora se atribui ao ex-juiz, ex-ministro e ex-herói encaixou-se tão bem na equipe governamental que ele poderia ter permanecido nela, vez que a conduta da vida que o orienta é sob muitos aspectos alinhada à dos demais correligionários bolsonaristas.

Moro foi um respaldado opaco, alçado injustamente à história nacional, por ter recebido no colo um caso que é presente para qualquer ambicioso-raiz. A opacidade, em biografias (que nem precisam ser lidas!) como a sua, pode ser reconhecida como a fonte de um ressentimento profundo.

Tomemos então outro personagem do panteão bolsonarista, o economista Paulo Guedes. Este sempre teve a virtude profética de apontar rumos, mas nunca teve a faculdade operacional de informar os meios com os quais trilhá-los numa democracia. Não foi preciso que a pandemia confirmasse o que inúmeros economistas já sabiam a seu respeito: Guedes nada tem a dizer em matéria de economia e mal compreende a complexidade dos problemas macroeconômicos que tem encarado. Além disso, as opiniões emitidas por ele aqui e ali revelam um desconhecimento desumano do Brasil. Quando questionado sobre a sua viagem ao Chile, após concluído o doutorado nos EUA, a sua resposta foi inacreditável. Segundo ele, não havia espaço para as discussões que gostaria de travar na academia brasileira. Havia, entretanto, no Chile… de Pinochet. Um economista que se forma na maior democracia do mundo e, tendo a oportunidade de aplicar os seus conhecimentos em seu próprio país, opta por colaborar com a ditadura sanguinária dos outros, realmente não pode ter algo a nos dizer. Aqui se vê que a irrelevância pode ser a raiz de um ressentimento sem fundo e duradouro.

Sejamos francos. Não há trabalhos acadêmicos, livros, ou artiguetes quaisquer que sustentem teses assinadas por Paulo Guedes. Ao contrário, sua única tese é a propaganda da tese dos outros. E esses outros se perderam idilicamente em algum lugar do passado, sobretudo após os sucessivos golpes sofridos pelo liberalismo estrito. O único álibi capaz de sequestrá-lo da irrelevância absoluta e pô-lo no cativeiro do Superministério foi o indicativo de rumo que ele representava a uma parte da elite midiática, financeira e política, e o fato de ser um dos poucos a topar encontros com Bolsonaro, quando a maioria o evitava. Se a sua aparição excitou os mercados, dos economistas sérios ela mobilizou tão-somente ceticismo.

A ladainha de Guedes, trombeteada – até em um inglês joelsantaniano – opondo o “estado hobbesiano”, do período militar, ao “estado rousseauniano”, da redemocratização, jamais teve base, quer econômica, quer filosófica. Mas ele, ao menos, era ortodoxalmente liberal o bastante para aquelas elites se entusiasmarem por seu apoio a um presidente, a princípio, assaz jejuno para interferir nessas áreas. Elas se enganaram quanto à capacidade de interferência.

Vamos a mais um. Ernesto Araújo tem uma carreira diplomática que serve de emblemático contraexemplo. Nunca chefiou embaixada alguma. De suas mãos, todas as grandes responsabilidades da política exterior trataram, sensatamente, de se esquivar. Isolado, como sempre, encontrou-se no olavismo – um reduto da intelectualidade ressentida contemporânea no país. Sem respeito e com poder, Araújo condenou os colegas diplomatas a ciclos de humilhação após ter sido desprezado durante anos por suas notórias incompreensão e incapacidade. Em seu caso, é o isolamento o que se revela a matriz de um enérgico ressentimento.

Aliás, convém uma palavra também sobre o seu mestre, o filósofo Olavo de Carvalho. Embora talentoso em comunicação, em matéria de filosofia e de ciência política, Olavo parece também se notabilizar pelo ressentimento. Toda a sua ira contra a academia nacional – não necessariamente explanada em O Imbecil Coletivo, mas certamente na crítica superficialíssima ao materialismo, em O Jardim das Aflições – tem qualquer pulso de um coração ressentido. Mas a sua tenacidade e a sua eloquência o disfarçam. É claro que o alcance que Olavo obteve enquanto intelectual público é muito maior do que o de quaisquer outros filósofos da academia brasileira. Mas o que o moveu até aqui foi a possibilidade de ter o público que aqueles intelectuais vieram a ter, e não o que ele acabou tendo. (Algo muito parecido deu-se a Lobão, que apoiou Bolsonaro e confraternizou com Olavo até o ano passado. Tendo um histórico recente de popularidade por ataques contínuos a Chico, Gil e Caetano, Lobão sempre deixou nas entrelinhas que o seu problema era não ter tido os fãs que os seus colegas tiveram.)

E não seria justo não remeter esse mesmo histórico de afetividade ao atual presidente, a apoteose do ressentimento nacional. Um militar expulso do exército, e por desonra. Totalmente inapto, segundo laudo técnico de junta militar, ao exercício das funções de carreira. Esse mesmo homem foi o que escolheu a dedo generais que agora revelam-se igualmente inaptos para uma equipe de governo trapalhona. Com isso, contudo, ele não apenas sabotou o país, mas humilhou a instituição das Forças Armadas.

A revolta que o dignificou é a dos preguiçosos orgulhosos, a dos que querem encontrar saída fácil para as coisas. Mas é também a revolta daqueles que tem raiva pelo êxito alheio, e que não aceitam baixar a guarda diante da qualificação dos pares, não querendo alçar-se às suas excelsas virtudes, mas para se permitir a birra e a pirraça contra eles. Não. Preferem dar a réplica, ter a revanche, lacrar.

E podemos dar passos mais largos seguindo a mesma pista especulativa. Olhando de um ponto de vista global, sem personalizar, é notável que a assunção evangélica, enquanto religião e fenômeno de agremiação social, não reconhecida devidamente na política e nos discursos do mainstream intelectual, traz uma das cores do ressentimento nacional atual. São milhares de pastores e milhões de adeptos que modificam e tem a sua vida modificada pela comunhão nas denominações evangélicas. E, apesar disso, o preconceito e o desdém de muitos setores da elite letrada contra eles só agora começam a diminuir. Não foi à toa que Bolsonaro deu um ministério específico para temas da ordem dos Direitos Humanos, tão vilipendiados no país, a uma representante do segmento. O orgulho evangélico traduzido, por exemplo, no batismo de Bolsonaro e em sua promessa de nomear um ministro para o STF, um “terrivelmente evangélico”, são mostras das consequências do afeto em discussão aqui.

Outra cor do ressentimento há de ser vista no elogio aos profissionais armados. Setor desprestigiado pela imprensa e pela academia, por décadas, vinha tendo lugar apenas em programas que respaldam acriticamente as ações policiais. Os homens de armas, gente que exerce a talvez mais difícil profissão de nossa sociedade, poucas vezes tiveram o reconhecimento que julgam justo. Certamente, com a ascensão conservadora de transição de séculos tiveram breves acenos de respeitabilidade. Até que encontraram no Capitão Nascimento do primeiro Tropa uma representação da qual se orgulhar. Aos poucos, foi tecida a narrativa de prestígio das Forças Auxiliares e as consequências estão aí. Esse tipo social, no Brasil de Bolsonaro, ajudou a abrir as porteiras do ressentimento, e não é gratuito que 2018 tenha recebido o caldo de uma onda de sargentos, tenentes, majores, capitães e delegados nos santinhos eleitorais.

O soerguimento da cultura sertaneja, em sentido lato, tradicionalmente desqualificada nas faixas urbanas que inclusive as consome, é também um outro tom do ressentimento corrente. Menosprezados como brega, como inferior, por uma elite intelectual arrogante e insensível, os proponentes e propagadores dessa cultura viram um caipira orgulhoso e exitoso os convocar a bater no peito com igual convicção. O sertanejo não precisaria mais passar pelo salão de beleza do gênero universitário para se valorizar. Bolsonaro representa esse encontro estético e moral do Brasil central consigo mesmo.

Todos esses são cromas do período em que Bolsonaro emerge com o discurso e a moldura de melhor intérprete. Há um padrão nisso tudo. Não é que o ressentimento seja a característica definidora desses atores, correntes e grupos sociais. O ponto é que o ressentimento é um fator galvanizador, mobilizador e catalisador do contexto, e para o governo. Bolsonaro coesionou pessoas as mais distintas em um mesmo projeto de poder. O seu governo tem feito que os ressentidos, por não terem tido êxito naquilo que alguns filósofos chamariam de “luta por reconhecimento”, por terem sido humilhados, desprezados, abandonados, esquecidos, adquirissem orgulho de si e disposição para enfrentar quem os segregou na arena em que o país celebra novas rachaduras. Na ausência de intérpretes concorrentes críveis, foi o ex-capitão quem os espelhou.

Levantar esse assunto não é ensejo para avançar contra os grupos e setores sociais que apoiaram e apoiam o presidente. Bolsonaro servirá como uma grande lição para que o Brasil olhe mais para si mesmo com respeito e complacência, com dignidade e decência, sob pena de termos novamente a naturalização dos absurdos e a paralisia da vida nacional que ele tem nos trazido. Seria bom se pensássemos a dinâmica social e os reveses que surgem em seu interior à luz da oportunidade que demos até aqui às formas desse indesejável ressentimento coletivo. A complexidade do fenômeno do bolsonarismo é atravessada pelo casamento do ressentimento com o orgulho. A fim de lidar com ele, precisaremos reconhecer que não convém a gestação irresponsável de novos ressentidos.