Sobre a transferência

Freud diz que o analista iniciante pensa que o mais difícil da psicanálise é a teoria, mas que percebe que o mais difícil é o manejo da transferência
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Por Ana Suy – Freud afirma que o analista iniciante pensa que o mais difícil da psicanálise é a teoria (que é difícil mesmo), mas que rapidamente percebe que o mais difícil na psicanálise é o “manejo da transferência”. O que isso significa?

Dificilmente uma pessoa busca uma teoria para ajudá-la, não tenho notícias de alguém que fique em um tratamento por causa da teoria x, y ou z. A gente gosta mesmo é de pessoas. A gente pede ajuda para pessoas. A gente fica num tratamento com uma pessoa. Daí o perigo das nossas relações, daí o perigo do amor, daí o perigo do tratamento analítico, psicológico ou médico.

O amor está aí para tamponar a falta. Quando eu amo alguém, suponho que o outro tem aquilo que me falta (assim tanto eu como o outro ficamos, imaginariamente, sem falta). Ao me desapontar com esse alguém, encontro com a falta no outro (que já estava lá e eu não podia ver) e em mim mesmo. (A cultura do cancelamento que o diga, nos horrorizamos com a falta e excluímos o outro, faltante, como se pudéssemos nos livrar da falta em nós.)

Freud deu ao amor o estatuto de um conceito psicanalítico que é o próprio motor do tratamento: a transferência. Numa carta para Jung, Freud escreveu sua famosa frase de que a psicanálise é “a cura pelo amor”. Mas que amor é esse?

É um amor de repetição. Para Freud, o analista deve se apresentar como uma “tela em branco”, para que os afetos que aparecerem ali poderem ser lidos a partir da história de vida do paciente.

Eu posso gostar de alguém porque a voz calma me lembra meu avô, por exemplo… posso não gostar de alguém porque o cheiro me lembra uma prima que me sacaneou na infância… ainda (ou principalmente) que eu não consiga linkar meu afeto (positivo ou negativo) com aquela pessoas.

Enfim, transferência a gente faz o tempo todo com as pessoas. Mas a genialidade do Freud está no fato de que ele incluiu na psicanálise o lugar neutro do analista, que sabe que aquele afeto (seja positivo ou negativo) não é para ele (pessoa do analista), mas que se trata de uma repetição.

Daí a dificuldade e importância de manejo da transferência. O analista sustenta a situação ocupando a função de analista, mas sabe que aquilo não é com seu ser.

E o amor é sempre uma repetição? Para Freud, sim.

Em seu célebre texto “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905), ele escreve que todo encontro é, na verdade, um reencontro.

Quando encontramos alguém que nos dá notícias do amor, é porque esse alguém nos dá notícias de nós mesmos. Por isso amar é sentir falta, é se incomodar, é querer mais do outro, ainda que o outro dê muito de si.

Só que, seguindo Freud, não há amor sem ódio. Para Lacan (Seminário 20), quem não conhece o ódio também não conhece o amor.

O amor nos faz deixar o ódio pra lá, nos faz não querer saber dele, mas não o faz deixar de existir. Quem ama também odeia, mas não quer saber do ódio. Até que tenha motivos para isso, claro, porque aí a história vira.

Mas o que isso tem a ver com a transferência?

Se a transferência é uma modalidade amorosa, onde tem transferência positiva (afetos amistosos em relação ao analista) tem também transferência negativa (afetos hostis em relação ao analista).

Na prática, a gente quer saber do que? Do amor, não do ódio. Tanto é que, se a hostilidade aparece em relação ao analista, a tendência é querer encerrar a análise, é questionar a seriedade do analista e a eficácia do tratamento. São tempos de amores líquidos, assim nos ensinou Bauman! Como sairia ilesa disso a psicanálise?

Mas se a premissa da análise é que a transferência é repetição, então cabe ao analista poder escutar seu analisante falar mal do analista para o próprio analista, sabendo que não é exatamente “para ele”, pois em princípio, a pessoa que o analista é não estaria ali, mas sim a função que ele ou ela ocupa.

Então, cabe ao analisante correr o risco de perder o lugar de ser infantilmente amado (assim como foi na infância, onde supostamente foi o queridinho dos pais) para poder quebrar a magia do sintoma com a palavra!

Nem sempre isso acontece, pois de um lado é preciso que o analisante possa sustentar essa perda do seu ideal de amor, e, por outro lado, é preciso que o analista saiba que aquela hostilidade ali dirigida a ele não é para ele, mas é um baita material de trabalho! Avança-se muito quando se pode falar da transferência negativa.

Como começa essa história de transferência?

Sendo a transferência uma modalidade amorosa, ela começa assim como qualquer amor: com um mistério. Algo no jeito de dizer do analista, no cheiro do consultório, no modo de responder uma mensagem, de dizer uma palavra… sei lá, vocês sabem como são essas coisas de amor, começam a acontecer nas profundezas da superficialidade.

Algo pequenino assim, torna o analista alguém importante para o analisante, lhe dá notícias de outras figuras da sua vida… e voilá, está instalada a transferência!

A partir desse momento, o analista precisará ter muito cuidado com o que diz ou não diz, faz ou deixa de fazer, porque a coisa psicanalítica está operando.

A gente não trabalha em análise só quando está em sessão. Fica matutando entre um encontro e outro, passa a analisar os próprios sonhos, muda o que ia dizer em plena DR ao imaginar como contar aquele conflito em análise… a transferência, uma vez instaurada, começa a produzir efeitos de análise!

Lacan fala que “a presença do analista” é uma das manifestações do inconsciente. Porque o analista não é alguém em quem a gente confia muito, por isso conta um segredo. Um analista é alguém para quem dizemos coisas que não dizemos sequer para nós!

E a contratransferência?

Há, segundo, Freud, três tipos de transferência: a positiva (que propicia o tratamento, com sentimentos amistosos do analisante para o analista), a negativa (com sentimentos hostis) e a erótica (excessivamente positiva).

Pode-se pensar que é a transferência negativa ou a erótica que são as mais difíceis de lidar, porque elas costumam ser mais incômodas à pessoa do analista. Todavia, justamente por isso, com frequência, esse incômodo leva os analistas a trabalhar, estudar, buscar supervisão e avançar com o caso (quando podem não se fixar em uma posição narcísica se sentindo pessoalmente afetados pela transferência).

Já a transferência positiva, pode ser mais perigosa, porque ser sentida como “gostosinha” pela pessoa do analista: eis um baita perigo.

Quando a transferência é positiva o analista precisa cuidar para não ter seu ego inflado, seu narcisismo restituído ali, precisa lembrar que aquele amor não é para ele mesmo.

Aí costuma aparecer a famigerada “contratransferência”, que são os afetos que o analista tem pelo analisante.

Aprendi com a psicanálise freudlacaniana que esses sentimentos podem existir (o analista é uma função, e não uma pessoa santa, sem castração ou insensível), mas é preciso que haja clareza de que eles não fazem parte da análise do analisante, mas da análise do analista. Em resumo, os afetos que o analista tem pelo analisante devem ser tratados na análise do analista, lá onde ele é analisante – e na supervisão!

Nem tudo é transferência

Fala-se tanto de transferência porque é com ela que o analista opera. Freud afirma que a transferência é um “erro de pessoa”. O amante ama no analista mais os ideais e fantasias que tem, do que a pessoa do analista.

Também é Freud quem escreve que “todo encontro é, na verdade, um reencontro”. Nesse sentido, todo amor é repetição.

Avançando por aí, Freud se questiona sobre o que diferenciaria o amor de transferência do amor da vida comum, e conclui que: pasmem, nada! – a não ser o fato do analista saber que o amor transferencial não é para ele mesmo, o que faz toda a diferença. É por isso que o analista opera com a transferência, diferente das pessoas da nossa vida, com quem também estabelecemos transferências amorosas.

Mas nem tudo é transferência.

Há analistas que são pessoas babacas e há analistas que são pessoas incríveis. Somos submetidos à castração e vez em quando fazemos besteiras. Isso não tem a ver com o paciente, tem a ver com a pessoa que o analista é.

O analista é uma função, mas não é uma função desencarnada. Mãe e pai também são funções, oras. Há quem, enquanto filho, só lide com pai e mãe enquanto função e depois não estabeleça outro tipo de relação com eles.

Há quem encontre com muitos analistas até engajar na transferência com alguém, assim como há quem encontre com muitos namorados até casar, ou crushes até namorar. É que não se tinha encontrado a pessoa certa, até então?

Pois bem. A pessoa certa não existe. É sempre por algum desencontro, por algum mal-estarzinho, por algum equívoco, que algo nos mobiliza.

Na transferência, o amor que se (pensa que) tem pela pessoa do analista desliza para o amor pelo saber.

Quando um analista aceita conduzir a análise de alguém, perde de ter essa pessoa como amigo ou namorada. Quando se pede análise para alguém que se acha incrível, perde-se de ser amigo dessa pessoa.

No amor é sempre de perdas que se trata.

Dizer que “é uma função” não quer dizer que seja substituível. Tanto é que, quando se muda de analista, dizemos que começamos outra análise.

Em um mundo onde acreditamos ser todos substituíveis, a psicanálise, pela via do tratamento pelo amor, nos ensina: somos insubstituíveis.

Por: Ana Suy.