O PT se mantém fiel às suas origens há 42 anos

O PT se mantém fiel às origens há 42 anos haddad janja lula gleisi hoffman
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É comum nos depararmos na militância com a noção de que o PT esvaziou a capacidade combativa dos trabalhadores do Brasil, o que é verdade. Mas não é correto dizer que isso aconteceu somente durante os governos de esquerda do petucanismo (2003-16). As raízes são muito mais profundas, na própria fundação do partido.

Como Antônio Duarte Vargas bem colocou em coluna recente, o “Novo Sindicalismo” é parte integral do projeto neoliberal pós-fordista surgido a partir dos choques do petróleo em meados da década de 1970. A medula política desse movimento é a rejeição às categorias totalizantes da classe e da nação e a visão do Partido leninista como um fóssil autoritário.

A expressão ideológica desse movimento de destruição foi o pós-modernismo. Suas facetas identitárias são bem conhecidas, com a formação de uma hidra de movimentos em constante processo de re-fragmentação, reflexo do hiperindividualismo neoliberal. A luta de classes, quando não rejeitada por completo, é reduzida a uma caricatura abstrata, quase um pano de fundo, que em geral é absorvida pela espiral fragmentária do identitarismo, produzindo ainda mais identidades. 

Menos debatido, no entanto, é o que poderíamos chamar, por pura metáfora, de “identitarismo do trabalhador”. Se a definição do identitarismo é a ideologia que usurpa as legítimas pautas da luta contra o racismo, o machismo e a LGBTfobia em um hiperindividualismo estético e retórico, o mesmo pode ser dito do fetichismo do trabalhador. A luta da classe trabalhadora pela superação de uma totalidade que é o modo de produção capitalista e inserção subordinada do Brasil na economia mundial é substituída pela luta por “direitos”, por “melhores condições”, por melhores salários, e etc. Há reflexos desse fetichismo na segurança pública, nas chamadas pautas urbanas  (transporte público, moradia, saneamento, etc), acesso à serviços públicos, ecológica e outros. Todas pautas completamente legítimas, tal como no identitarismo.

Esse fetichismo substitui a classe trabalhadora e a nação (na verdade, inseparáveis) pelo trabalhador – uma visão abstrata e reificada do trabalhador no lugar da concretude da classe. Esse fetichismo tem sua expressão teórica na revista “Desvios” na qual eram travados os embates conceituais na época de fundação do PT. Além dos “novos movimentos” de caráter identitário, era também defendida a autonomia do “novo sindicalismo” em relação aos “fósseis autoritários” da vanguarda revolucionária (proxy do Partido Leninista no jargão da época) e do “populismo” varguista. Essa fixação com a autonomia é estrutural da estratégia do partido dos trabalhadores até hoje – está até em seu nome.

Toda a atmosfera teórica da virada dos anos 70 para os 80 era marcada por essa rejeição a categorias totalizantes e autonomismo – que podemos até identificar com o fetichismo das barricadas presente na geração impactada pelos escritos de Régis Debray. Para ficar apenas num exemplo, o processo de formação da sociologia do trabalho como disciplina autônoma passa pela ocupação do espaço deixado pelo que postumamente se chamou de “sociologia do desenvolvimento” – essa segunda invariavelmente ligada ao pensamento isebiano. A formação da sociologia do trabalho no Brasil é capítulo da hegemonia ideológica do uspianismo em sua vertente de esquerda e da institucionalização do “sociólogo profissional”, com o correlato enquadramento do debate crítico, cada vez mais restrito aos muros universitários e esterilizado em revistas especializadas.

Há aqui a importação para o Brasil da literatura anglo-saxã do “marxismo analítico” cuja definição é precisamente a “busca pelo local do trabalho” contra a suposta “abstração totalizante”, como argumentado na famosa introdução de Michael Burawoy para o “Politics of Production” (que cita especificamente Lukács para refutá-lo). Em termos de agenda de pesquisa, os problemas totalizantes da classe, do imperialismo e do subdesenvolvimento são substituídos pela pesquisa empírica e imediatista. Metodologicamente, passamos a ver a abundância de etnografias e observações participantes no local de trabalho e toda uma literatura fragmentária a respeito de “práticas” dos trabalhadores.  

À implosão teórica corresponde a implosão prática da classe como sujeito. O processo de formação do “Novo Sindicalismo” está imbricado na espiral hiperinflacionária que acometeu todo o Terceiro Mundo depois dos Choques do Petróleo no final dos anos 70. Nas categorias organizadas sobretudo no coração industrial do Brasil na região do ABC em São Paulo eclodiram pujantes movimentos grevistas por recomposição salarial, e até mesmo ganhos reais. Como é sabido, foram greves de intensa combatividade e de caráter fortemente espontâneo, fundamentadas em demandas imediatas das categorias diretamente empregadas nas empresas de maior produtividade e composição orgânica de capital de toda economia brasileira, principalmente no complexo automobilístico.

Ao longo dos anos 80, sobretudo no governo de Sarney, estruturou-se uma dinâmica na qual a cada falido plano de combate à inflação seguia-se um intenso movimento grevista espontâneo em São Paulo, espraiando-se para algumas outras categorias igualmente bem posicionadas na cadeia produtiva (como químicos e um pouco mais tarde, bancários). Ainda que em algumas ocasiões as greves juntassem mais de uma categoria, seu caráter autonomista se mantinha fortemente presente. Não havia a articulação de uma vanguarda que tocasse um programa geral para o país e toda classe. Eram lutas por “direitos”. Vicejava e, de certo modo ainda viceja, uma espécie de “interseccionalismo” sindical, imaginando que cada categoria lutando por seus direitos atingiria um patamar melhor para toda a classe trabalhadora. 

A culminação desse autonomismo teórico e prático foi a morte ainda em seu nascedouro de uma tentativa de se reconstruir uma Central Sindical verdadeiramente única, como a antiga CGT dos anos 60, fruto da aliança entre trabalhistas e pecebistas. As duas Conferências Nacionais das Classes Trabalhadoras (Conclat) em 1981 e 1983 foram implodidas pelo sectarismo dos sindicatos do ABC, que não queriam compactuar com “pelegos”. A demanda concreta do “Novo Sindicalismo” era a quebra da unicidade sindical, tal como proposta nas atuais reformas sindicais do governo colonial de Paulo Guedes: queriam a representação das chamadas “oposições sindicais” para contornar as lideranças eleitas das agremiações na futura central. Foi assim que o “Novo Sindicalismo” fez seu próprio congresso paralelo em 1983 e roubou a sigla CUT para si. As demais categorias de trabalhadores chegaram a refundar a CGT no mesmo ano, sob a liderança de Joaquinzão, mas a dinâmica autonomista, emanada a partir do coração da cadeia produtiva brasileira em meio a uma conjuntura hostil à organização dos trabalhadores, produziu novos rachas nos anos seguintes, dando origem ao caleidoscópio de “Centrais” Sindicais que hoje assistimos. 

Poucas imagens talvez expressem melhor esse processo do que a hostilidade do Novo Sindicalismo e seus correlatos tanto a Brizola, mal recebido por Lula no ABC, quanto a Prestes, vaiado por petistas nos eventos do 1º de Maio de 1986.

A substituição da inflação pelos juros imobilizadores e rentistas a partir da traição do Plano Real acabou com o “ciclo virtuoso” do autonomismo sindical dos anos 80. A CUT mergulhou em brigas internas que afastou suas lideranças dos holofotes, que eram ocupados pela Força Sindical, alçada a “representante dos trabalhadores” pelo oportunismo de FHC. A despeito de episódios heróicos como a greve dos petroleiros, conformou-se a dinâmica que hoje conhecemos: uma resistência cada vez mais frágil ao avanço do neoliberalismo e da colonização do país. A imagem concreta dessa fraqueza foi a privatização da Vale.

Os sindicatos autonomizados e atomizados passaram a se orientar por “resultados”, isto é, um imediatismo mais exacerbado das lutas sindicais. O golpe de mestre do Príncipe dos Sociólogos foi a instituição de programas como o PLANFOR no final dos anos 90, que enquadraram os sindicatos como prestadores de serviço de agência de empregos e qualificação para desempregados – programas que tiveram plena sequência nos governos petistas como nomes como Planseq e Planteq, com recursos do FAT.  Esse sindicato-cidadão dos anos 90, que seguiu vivo em pleno petismo nos anos 00 e 10, foi a experiência fundante da “digestão moral da pobreza” que marcou a era avermelhada do neoliberalismo petucano. 

Ironicamente, foi o sindicalismo por resultados e o sindicalismo-cidadão que mais se aproximou das teses “roubo da fala” defendidas pelos sociólogos do trabalho da UNICAMP. Enquanto esses autores difamaram o sindicato varguista, acusando-o de burocrático e tocado pelo Estado, o sindicalismo dos anos 40-60 produziu movimentos como o queremismo e a greve dos 300 mil em 1953. O sindicato autônomo defendido por esses pensadores converteu-se em uma espécie de ONG fragmentária, que quando muito em uma posição defensiva, ou relés chancelador em longo prazo dos recuos das últimas décadas, “qualificando” a mão-de-obra em desemprego estrutural em um país desindustrializado.

Durante as gestões petistas, o processo se completou com a captura de quadros sindicais para o governo – o que por si só não seria problema algum, não fosse a conjuntura neoliberal e o autonomismo que presidia o sindicalismo brasileiro a partir da hegemonia cutista. A partir do governo, o PT procurou implementar reformas que privilegiassem a CUT em detrimento das demais centrais, visando seu enfraquecimento.

O resultado nos é conhecido. Esvaziados, atomizados e autonomizados, os sindicatos não ofereceram nenhuma resistência ao golpe de 2016 e às contra-reformas subsequentes. Ao fiasco das contagens de manifestantes pró e contra impeachment seguiram-se greves gerais fracassadas.  Nos últimos anos, algumas categorias heroicamente assumiram o ônus de defender toda a classe, como os metroviários de São Paulo e os trabalhadores dos Correios. Mas somente solidariedade e interseccionalismo não bastam e o fracasso recente o prova cabalmente. A classe, sem estar organizada como sujeito para si mesma, é passiva da conjuntura. Essas categorias sofreram pesadas multas e não conseguiram se converter em vanguarda, sendo profundamente reprimidas pela Justiça do Trabalho aparelhada por figuras como Ives Gandra Filho.

É claro que as derrotas dos últimos 40 anos de movimento sindical não podem ser descoladas da estrutura fortemente hostil aos trabalhadores depois do Choque do Petróleo nos anos 70. Entre os anos 1980 e 2010, a China ainda não ocupava a posição de polarização contra os EUA e a dissolução da URSS implicou numa fraqueza para toda a classe trabalhadora e todo Terceiro Mundo. A própria derrota de Brizola em 1989 é parte desse período histórico.

Mas colocar a responsabilidade das derrotas desse período exclusivamente na conjuntura histórica iniciada nos anos 70 é um mecanicismo determinista. Outros países latino-americanos com estruturas produtivas mais rudimentares como a Bolívia e a Venezuela foram capazes de mostrar consciência nacional e organização da classe trabalhadora no mesmo período – com seus limites, claro. 

Não há nenhum problema em uma determinada categoria lutar por seus interesses imediatos. Muito pelo contrário, é por meio deles que se estrutura a classe como um todo. Mas não é a mera soma em paralelo das demandas. Como argumentamos a respeito da greve política, essas “greves econômicos” estão contidas na luta geral da classe, estruturada como sujeito. A questão está em transcender o mero imediatismo, pegando o todo do problema – nossa inserção subordinada no capitalismo mundial, as “perdas internacionais”, como dizia Brizola.

Igualmente, a responsabilidade não recai sobre os sindicalistas individualmente considerados. Fazem com justeza seu trabalho, lutando para evitar ainda mais agressões contra suas categorias em uma conjuntura flagrantemente adversa aos trabalhadores. Como soldados, pagam pelos erros dos generais que deveriam ter a visão do todo.

Tampouco cabe encaixar o debate aqui suscitado no falso dilema entre radicalidade e pragmatismo – como se fosse possível haver uma prática que descole da raiz real da luta de classes. Revoluções adotam medidas que parecem reacionárias, como discutimos a respeito dos limites do brizolismo nos anos 60 e algumas similaridades entre a esquerda latino-americana e sua contraparte iraniana.

A responsabilidade só poderia recair sobre o hegemon da esquerda em todo esse período: o PT.

Em nenhum momento o PT traiu seus princípios. O autonomismo e o horizontalismo estão em seus documentos fundantes. O próprio nome do partido carrega a concepção do trabalhador reificado. A crítica aos “fósseis autoritários” do Partido Leninista e do populismo são seus movimentos intelectuais inspiradores. O sectarismo sindical que formou a CUT, conjugado com a conversão das agremiações em prestadores de serviço, foi a base do movimento sindical atomizado que hoje vemos. O neoliberalismo de esquerda dos anos  petistas e a incapacidade de se defender frente ao golpe de 2016 e a agressão imperialista que o conduziu já estavam contidas no imediatismo fragmentário que é a medula do PT.

Daí nenhuma surpresa também com a traição de agosto de 2018. A obsessão sectária de autonomia do petismo está na sua veia, e isolar um candidato nacionalista, com um programa mais radical à esquerda foi consequência para manutenção de sua hegemonia à qualquer custo. O PT fez com que dançássemos à beira do abismo nas últimas eleições presidenciais e nele todos nós brasileiros – petistas, inclusive – caímos.

Recuperar o fio da história da Revolução Brasileira é resgatar a classe como sujeito da Nação, liquidando todo o autonomismo fragmentário pós-moderno na teoria e sobretudo na prática.

Esse é o tamanho da tarefa que recai sobre nossa geração.