Marighella e os Fadai iranianos – Parte 3 de 3

Marighella e os Fadai iranianos
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O Terceiro Mundo é vasto e complexo, mas isso não impede que vejamos as imensas convergências em suas diferenças. Mais do que um paralelo, há um verdadeiro vínculo entre as guerrilhas latino-americanas e suas contrapartes no Oriente Médio, nas abundantes tragédias e erros, mas também nos acertos. É assim que podemos ver a influência das ações e do pensamento de Marighella no Irã.

A chamada Fadaiyan-e-Khalq foi um grupo heterogêneo, mas mais ou mais coeso, que compôs uma organização guerrilheira inspirada no marxismo-leninismo e no paradigma da ação direta dos anos 60 e 70, emergida no período mais autoritário e repressivo da história do Irã.

Nessa série, faremos uma recapitulação da história iraniana, procurando pontuar alguns paralelos e os vínculos entre a experiência guerrilheira na América Latina e a Fadaiyan-e-Khalq, principal organização influenciada pelo foquismo e ação direta latino-americana no Irã.

Na primeira parte, discutimos os antecedentes daquela organização, principalmente no golpe contra o governo nacionalista de Mossadegh em 1953. Na parte 2 vamos contar a história propriamente da Fadaiyan-e-Khalq durante o regime repressivo do Xá Mohammed Reza Pahlevi. Finalmente, na parte 3, comentaremos sobre a guerrilha já no Irã pós-revolucionário e empreenderemos um esboço de balanço comparativo de ambas as experiências.

Parte 3: Decadência das guerrilhas e a Revolução de 1979

Após a queda do quadro central da Fadaiyan-e-Khalq em junho de 1976 e o assassinato do lendário Hamid Ašraf, a organização caiu em um estado de paralisia e caos por pouco mais de um ano. A maioria dos militantes ficou desorientada, sem acesso a informações ou casas seguras. Somente as células nas cidades de Isfahan e Mexede sobreviveram intactas, mas completamente isoladas inclusive uma da outra. A segunda célula eventualmente converteu-se no quadro central da organização, mas levou um ano completo para reestruturar os Fadai – e com severas perdas. A maioria dos militantes de Teerão se separou da organização, juntando-se com a Navid, uma célula sobrevivente do Tudeh, e abandonou a luta armada.

Sob a liderança do grupo de Mexede, o Fadaiyan-e-Khalq lançou poucas ações armadas. Em dezembro de 1977, detonaram uma bomba no centro cultural Irã-EUA, a primeira operação desde 1976. Após sexta-feira negra, em 8 de setembro de 1978, quando as forças do Xá massacraram centenas de manifestantes na Praça Jaleh em Teerão, a organização participou dos protestos contra a brutalidade do regime ao longo do mês de outubro daquele ano, marcado pela greve geral dos petroleiros, que parou todo o país e eventualmente levaria a Revolução Islâmica no ano seguinte.

É importante ressaltar que desde a ascensão da célula de Mexede como quadro central, o Fadaiyan-e-Khalq majoritariamente passou a esposar a tese de Jazani em detrimento da de Aḥmadzāda. Isto é, os Fadai se aproximaram mais da ideia de criar uma frente política que organizasse a classe trabalhadora e se afastaram das teses mais espontaneístas e da noção de que a propaganda armada levaria à deflagração da revolução que já estaria latente entre os operários. Essa mudança se refletiu na estrutura da organização, que passou a ter uma liderança política claramente separada do quadro central, que reteve o controle dos Fadai. Com o passar do tempo, a maioria da Fadaiyan-e-Khalq progressivamente deixou de lado a luta armada.

O regime do Xá Mohammed Reza Pahlevi estava em frangalhos com a longa greve dos petroleiros, possível graças à solidariedade e organização dos militantes islâmicos, coordenada com ações políticas em todas as classes populares – principalmente o proletariado lumpen e o imenso e heterogêneo campesinato iraniano. Milhões tomaram as ruas em manifestações, principalmente em dezembro daquele ano. Do exílio, Khomeini exortava os soldados do Xá para que largassem suas armas – e milhares deles seguiram os ditames do clérigo e não as ordens de seu monarca.

Em uma tentativa desesperada de dar sobrevida ao regime, o Xá nomeou um governo capitaneado por Shapour Bakhtiar, que fora Ministro do Trabalho de Mossadegh e oposição ao regime por toda sua duração, tendo militado nos dois esforços frustrados de se reorganizar a Frente Nacionalista nos anos 50 e 60. Para aplacar os grevistas, Bakhtiar convida o Aiatolá Khomeini de volta para o Irã, que estava exilado desde 1963.

Em janeiro de 1979, Khomeini chega ao Irã, momento capturado na icônica fotografia de seu desembarque de um avião. Poucos dias antes, o Xá Mohammed Reza Pahlevi fugia de seu país para nunca mais voltar. Em fevereiro daquele ano, o Aiatolá apontou um governo chefiado por Bazargan, outra figura da oposição ao regime do Xá, o que tecnicamente seria inconstitucional para as leis da época. Rapidamente, as tensões entre os dois governos paralelos cresceram, até que em 11 de fevereiro um motim estourou na base aérea de Doshan Tappeh.

Parte da Guarda Imortal ainda leal ao Xá foi para a base aérea para prender os amotinados e afirmar a autoridade do governo de Bakhtiar – talvez até mesmo contra a vontade do primeiro-ministro progressista apontado pelo monarca fujão. Os rebeldes resistiram e milhares de manifestantes acudiram até a base para apoiá-los, entre os quais militantes da Fadaiyan-e-Khalq e da Mojāhedin-e Ḵalq. Os guerrilheiros não estavam preparados para a ação, mas foram instrumentais para que os manifestantes capturassem arsenais das Forças Armadas e liberassem prisioneiros nas cadeias, muitos dos quais políticos, que se juntaram ao combate. Ironicamente, a operação mais bem sucedida de de toda a experiência guerrilheira no Irã foi em apoio a uma unidade militar, e não contra ela. Em poucos dias, o regime do Xá estava debelado e o Aiatolá Khomeini emergia claramente como a principal liderança do novo regime, que em pouco tempo completou a obra de Mossadegh, nacionalizando todo o petróleo iraniano e acabando com o consórcio imperialista que partilhava das riquezas da nação.

No dia 14 de fevereiro de 1979, a Fadaiyan-e-Khalq ocupou a embaixada dos Estados Unidos e sequestrou um fuzileiro naval estadunidense. Em um acordo mediado pelo ministro das relações exteriores apontado por Khomeini, os Fadai libertaram o militar algumas horas depois.

O Fadaiyan-e-Khalq teve uma atitude ambígua e francamente contraditória em relação a Khomeini, reflexo de suas cisões internas. Inicialmente, partindo de sua já incorporada leitura equivocada das classes no Irã, boicotaram o referendo que instalou a República Islâmica em março de 1979. É importante ressaltar que os Fadai contavam com certa notoriedade, sobretudo entre os estudantes de Teerão, o que permitiu que levassem mais de 500 mil manifestantes para as ruas no primeiro de maio de 1979. Anos depois, parte dos Fadai alegaram que nas primeiras eleições parlamentares da República Islâmica, a Fadaiyan-e-Khalq teria conseguido quase 10% dos votos e que não elegeu nenhum representante porque foi golpeada.

O episódio mais relevante dessa ambiguidade dos Fadai foi seu apoio ao levante da minoria étnica turcomana em Ṣaḥrā, em março de 1979 (enquanto acontecia o referendo). Inicialmente, a Fadaiyan-e-Khalq apoiou em armas o pleito dos turcomanos locais de reforma agrária, mas em seguida colaborou com o governo provisório de Bazargan, apontado pelo Aiatolá. Com a ajuda dos Fadai, as partes chegaram a um acordo sem violência.

Em novembro do ano da Revolução, os Estados Unidos e seus aliados imperialistas roubaram as reservas internacionais do Irã para sufocar o novo governo. Manifestantes foram protestar contra o crime na embaixada estadunidense, que acabou mais uma vez ocupada, desta vez por uma guerrilha islâmica. Os militantes libertaram todas as mulheres e negros em solidariedade a luta das minorias no coração do Império e liberaram documentos secretos que revelavam inequivocadamente a participação estadunidense no golpe de 1953 e o apoio dos EUA ao regime do Xá, inclusive seus aspectos mais repressivos e entreguistas. A situação duraria um total de 444 dias, contando com duas tentativas mal-sucedidas de resgate por parte dos Estados Unidos, até que chegaram a um acordo – e devolveram as reservas internacionais iranianas.

O papel do Aiatolá durante o episódio do saque das reservas internacionais iranianas chamou a atenção de grande parte do Fadaiyan-e-Khalq. Assim como a maioria do Tudeh, a ala majoritária dos Fadai passou a apoiar o novo regime, e as duas organizações passaram a debater a sua fusão. Grupos minoritários do Fadaiyan-e-Khalq que continuavam esposando a tese de uma revolução espontaneísta foram expulsos da organização, com destaque para ala de Ašraf Dehqāni (não confundir com Hamid Ašraf, morto em 1976), que seguiu a luta armada junto a minoria curda, na fronteira com o Iraque, até 1981. Outras dezenas de organizações se separaram, formando federações, ou desaparecendo na História. Segundo Vahabzadeh (2015), o apoio da ala majoritária dos Fadai foi tão grande que até ajudaram o governo a reprimir os levantes no curdistão iraniano.

No entanto, os ventos mudaram ao longo dos anos 1980. A URSS desde o começo teve uma atitude francamente hostil à Revolução Islâmica, temendo que ela se espalhasse nos sovietes da Ásia Central, com forte presença islâmica. Coggiola, em seu opúsculo de 2007 a respeito da Revolução Islâmica, cogita que essa tenha sido uma das principais razões para a invasão soviética no Afeganistão (além da situação delicada dos comunistas no país vizinho ao Irã e de maioria cultural persa). Esse temor foi um dos motivos para a URSS apoiar a traição de Sadat, presidente do Egito, ao socialismo panárabe e se aproximar de Israel em 1979. Ademais, parte da elite do PCURSS já estava carcomida e integrada por meio dos dólares soviéticos das exportações de petróleo – curiosa consequência do choque de 1973 – ao grande circuito das finanças imperialistas em Londres.

Saddam Hussein, uma complicada figura que emergira na decadência do socialismo árabe, fazia parte da zona de influência soviética, ao menos parcialmente. É com apoio e beneplácito tanto dos Estados Unidos como da União Soviética que o Iraque invade o Irã em 1981, deflagrando uma guerra inútil por uma fronteira propositalmente mal desenhada pelo Império Britânico. Saddam almejava nada mais nada menos que a principal província petrolífera iraniana. Essa guerra acabaria numa paz branca oito anos depois e com ambos os países destruídos. Saddam ficou tão fraco que se tornou presa fácil das garras imperialistas estadunidenses na primeira guerra do golfo, logo depois de assinar o tratado de paz com o Irã – tudo isso sob os olhares auspiciosos da URSS, já sob o governo do traidor Gorbachev que no natal daquele mesmo ano desmantelou a União Soviética.

Os vínculos do Tudeh com a URSS já eram notórios e, considerando que a ala majoritária do Fadaiyan-e-Khalq continha muitos elementos do grupo Jazani-Zarifi (sobretudo o norte teórico), que havia saído da costela daquele partido, eram basicamente eram a mesma organização, ainda que sua fusão formal nunca tenha acontecido. Ao longo dos anos 80, à brutalidade da guerra com o Iraque se somaram às fragilidades do novo governo revolucionário, acossado tanto por Estados Unidos como pela União Soviética; aos levantes de minorias étnicas pipocando por todo seu território, principalmente no curdistão, mas também a minoria árabe e, em questão de tempo, azeri; a invasão soviética no Afeganistão vizinho com quem tinha fortes laços culturais (ambos são persas); ao isolamento econômico e às sanções econômicas de todos os países imperialistas e socialistas. É nesse contexto que o governo iraniano passa a reprimir violentamente o Tudeh e os Fadai. As ações mais agressivas ocorreram em fevereiro de 1983 com ataques aos diretórios do Tudeh e da Fadaiyan-e-Khalq e a prisão de militantes. Membros de ambas as organizações se exilaram na URSS nos anos seguintes, principalmente em Tasquente, capital da SSR do Uzbequistão.

Hoje em dia, somente alguns militantes da Fadaiyan-e-Khalq sobrevivem no exílio nos países imperialistas (notadamente França e Alemanha), esposando teses social-democratas. Suas vozes são instrumentalizadas pela estratégia de caos do imperialismo contra o Irã.

De Te Fabula Narratur

O leitor mais atento certamente já entendeu que a relação da Fadaiyan-e-Khalq com a experiência guerrilheira na América Latina e no Brasil vai além da inspiração nos textos de Regis Debray, Che Guevara e até mesmo o mini-manual de Marighella. As similaridades, certamente menos abundantes que as diferenças, chegam ao ponto de haver quase uma versão xiita da Teologia da Libertação na obra de Ali Shariati.

É claro que as diferenças são mais significativas. Para ficar apenas num exemplo, mas um bastante central, o mundo rural brasileiro, embora com características feudais até a hegemonia do agronegócio moderno nos anos 70 e 80, era marcado por sua abertura, isto é, por ter uma fração hegemônica em permanente contato com a economia mundial, fornecendo bens agrícolas para a exportação. Já o mundo rural iraniano era bem mais fechado e um feudalismo um pouco mais “clássico”, fruto de uma longa maturação em um processo de conquistas como a abássida e a seljúcida, entre outras. Sua principal exportação era o petróleo (com exceção de algumas décadas na virada do século XIX e XX quando o tabaco chegou a ser mais relevante) em uma economia de enclave na fronteira com o Iraque, controlada diretamente pelas transnacionais por boa parte da história contemporânea do país asiático.

O debate dentro da esquerda sempre foi um tanto imbecilizado, mesmo antes da emergência das redes sociais e a redução da discussão pública a uma cacofonia de idiotices e o exercício narcisístico de egos nos “posicionamentos”. Guerreiro Ramos já caçoava disso em 1960 chamando de “rinocentirização” a “nivelação por baixo” e a padronização medíocre que essa dinâmica confere a todo debate dentro da esquerda. Talvez de todos os assuntos que devemos debater a experiência armada no paradigma da ação direta seja a maior vítima da “rinocentirização”. A função da crítica não é expiar a “culpa”, mas colaborar para o auto-conhecimento da classe por meio de seu órgão, o Partido.

A Revolução chegou ao Irã em 1979, mas não a revolução esperada. Não foi o levante espontâneo das classes oprimidas iranianas, tanto campesinato, como operariado e lumpen urbano. Foi sim conduzida principalmente pelo lumpen, pelo campesinato e pela pequena burguesia citadina e rural, mas não com a espontaneidade esperada pela geração de 60. A organização do clero xiita e a canalização da consciência nacional – e inclusive de classe – na forma de uma ideologia a um só tempo religiosa e secular foram seus principais esteios.

Os levantes armados cumpriram um papel, mas é importante destacar que as organizações marxistas como a Fadaiyan-e-Khalq foram relativamente secundárias se comparadas às suas contrapartes islâmicas. Mesmo no seio estudantil abundavam organizações inspiradas no islamismo, como a que fez a segunda ocupação à embaixada estadunidense no episódio do roubo das reservas internacionais iranianas. Vale a pena ressaltar que a Mojāhedin-e Ḵalq, inicialmente inspirada no islamismo e depois operando uma combinação com marxismo foi mais popular por quase todo o período do que os Fadai.

É interessante notar que o principal debate interno dos Fadai girava em torno da necessidade da criação de uma frente política para a organização da classe trabalhadora, paralela às ações de propaganda armada. Esse mesmo debate marcou as discussões internas da esquerda armada no Brasil (e também na América Latina), tanto em sua versão urbana como rural.

Mesmo no período de hegemonia da tese de Aḥmadzāda, os Fadai procuraram articular ações com os sindicatos e outras associações. Mas seu foco o tempo revelavam ou uma visão equivocada da estrutura de classes do Irã ou a incapacidade de estabelecer contato com o Irã profundo e seu correlato, o subproletariado nas favelas criadas durante a Revolução Branca – o que é pior.

O artigo de Haideh Moghissi e Saeed Rahnema de 2001 guarda todos os preconceitos da esquerda liberal do Primeiro Mundo, embora os autores sejam iranianos. Também similar a nossa experiência brasileira com os Haddads da vida. Mas não deixa de chamar a atenção para um elemento singular da estrutura de classes iraniana: a pequena proporção da classe trabalhadora propriamente dita nas classes subalternas:

Marighella e os Fadai iranianos

Somados, os trabalhadores assalariados do setor público e do privado representam pouco mais da metade da população economicamente ativa do Irã em 1996 – em 1979, certamente a proporção deveria ser ainda menor. Acrescente a isso o fato de que boa parte desses assalariados trabalharem em pequenas empresas, configurando muito mais um mercado informal de relações pessoais do que a “moderna” sociedade civil do tipo europeia. Os dados não contemplam o complexíssimo mundo rural iraniano e nos dão o tempo inteiro a sensação de que estamos vendo somente a ponta do iceberg. Nada que desconheçamos em nosso próprio canto do Terceiro Mundo, diga-se de passagem.

Argumentam os autores – bastante críticos à Revolução Islâmica desde uma posição liberal, acrescente-se – que os clérigos xiitas foram hábeis em organizar justamente esses trabalhadores informais. Enquanto os revolucionários islâmicos o tempo inteiro tinham em mente a estrutura complexa do Irã, os marxistas se mantinham presos a um paradigma urbano e francamente eurocêntrico – mesmo quando procuraram estruturar suas células “montanhesas”, que não renderam frutos em todo período de luta contra o Xá.

Além disso, há o problema ideológico. Como dizem Haideh Moghissi e Saeed Rahnema, o clero xiita transformou o “ópio do povo no esteróide das massas”. Enquanto as organizações como a Fadaiyan-e-Khalq se mantinham presas a uma linguagem de classe média que mal dialogava com a classe trabalhadora urbana – ainda que com um ou outro resultado positivo, como no caso dos pedágios e os interesses imediatos dos taxistas -, os clérigos não hesitavam em apelar para a linguagem religiosa, muito mais hábil em galvanizar as classes subalternas. No seu opúsculo, Coggiola relata que durante o exílio de Khomeini, suas pregações em fitas cassete eram altamente demandadas em todo o Irã. As expropriações das guerrilhas latino-americanas, com pouquíssimas exceções, nunca foram além de “assaltos a banco” para grande parte dos trabalhadores – se sabiam que haviam acontecido.

Por todo período da luta contra o Xá e também ao longo da guerra Irã-Iraque as mesquitas desempenharam o papel de uma imensa rede capilar estruturando materialmente a classe como que um único corpo o que a ideologia islâmica revolucionária estruturava em quase uma única consciência. Foi essa capilaridade que deu os fundamentos de solidariedade de classe que sustentaram a greve dos petroleiros em 1978 e 1979 por tempo suficiente para que o regime do Xá caísse por terra.

Finalmente, e nem de longe menos importante, há a centralidade da questão nacional. Foi ela quem acabou vetando a aliança entre o Tudeh e os nacionalistas nos anos 50 – menos de uma década antes, o Irã fora invadido pela URSS. A hostilidade soviética em relação à Revolução Islâmica também revela a péssima leitura que a estrutura do PCURSS tinha do que se passava na Ásia Central – provavelmente fruto de suas deficiências já exacerbadas naquele período e das fragilidades internas e externas de suas relações com os demais países socialistas e sovietes periféricos.

O programa da Revolução também é marcado pela centralidade da questão nacional. A Revolução Cubana, em sua essência um movimento de libertação nacional, assumiu caráter socialista justamente pelas necessidades dessa emancipação, inclusive pela conjuntura geopolítica, a poucos quilômetros de Miami. Igualmente, na Revolução Islâmica a questão nacional, na forma da completude da obra de Mossadegh, foi o elemento central: a nacionalização do petróleo, principal inserção do país asiático na economia política mundial. Como argumentamos em nosso artigo sobre as críticas de Guerreiro Ramos a Brizola, um programa revolucionário às vezes é marcado por pontos com aparência reacionária – no caso brasileiro, a correção monetária e a formação do sistema financeiro nacional, elementos centrais para a industrialização do país. Mesmo no caso dos países socialistas, há muito mais “mercado” e “capitalismo” do que parece – como narrado, por exemplo, por Charles Bettelheim na “Luta de Classes na URSS”. O próprio Mao Tsé Tung reconhece a continuidade da luta de classes no socialismo e a experiência da China contemporânea também ressalta esse fato. É claro que há um salto qualitativo entre os países socialistas e as experiências nacionalistas no Terceiro Mundo, principalmente com a formação do Partido de tipo leninista e sua capilaridade em toda a sociedade (sem deixar de notar a importância da planificação), mas há também um contínuo que une o peronismo ao castrismo.

No prefácio à biografia de Brizola de FC Leite Filho, Neiva Moreira relata um encontro com Che Guevara em Havana, pouco antes do lendário guerrilheiro partir para a Bolívia, onde deixaria a vida para entrar na história. Diz o militante trabalhista que teria desaconselhado o revolucionário argentino a agir em nosso vizinho latino-americano, pois, embora o governo de Barrientos Ortuño fosse alinhado aos EUA, suas reformas na estrutura rural o tornaram popular entre o campesinato. A opinião de Neiva foi suficiente para que Fidel o chamasse para uma audiência privada, mas não convenceram Che Guevara. Para o caudilho, a tática mais eficiente no caso brasileiro seria a insurreição civil-militar e muito mais em defesa de um governo e do Estado, do que contra ele.

Não queremos com essa série “cancelar” o legado da Fadaiyan-e-Khalq e por tabela o de Marighella. Muito pelo contrário. Como dissemos a respeito de Prestes, honrar o legado dos heróis do passado não é se manter preso no imobilismo puramente estético de suas formas; é manter o seu sentido, inclusive na ruptura.

“O guerrilheiro urbano é um homem que luta contra uma ditadura militar com armas, utilizando métodos não convencionais. Um revolucionário político é um patriota ardente, ele é um lutador pela libertação de seu país, um amigo de sua gente e da liberdade.” – Marighella

“De fato, com o estabelecimento do governo imperialista, todas as contradições internas de nossa sociedade foram colocadas de lado por uma contradição – a contradição que se espalha por todo o mundo, a contradição entre o povo e o imperialismo. No último meio século, nosso país testemunhou a expansão dessa contradição: o aumento diário da dominação imperialista. Qualquer forma de transformação tem de resolver essa contradição. A resolução dessa contradição significa o estabelecimento da soberania popular e a queda da dominação imperialista”. – Aḥmadzāda