Por que odeiam os motoboys?

Por Fabio Sola - Qualquer observador das notícias veiculadas nesse Brasil pandêmico viu, no trágico ano de 2020, um caso de preconceito racial de um morador de condomínio fechado, branco, de classe média alta, contra um jovem pardo entregador do tipo popularmente conhecido como “motoboy”. Ali o preconceito foi sem véu, pois o homem branco disse abertamente para o rapaz, apontando o próprio braço alvo: “você tem inveja da minha cor”.
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Por Fabio Sola – Qualquer observador das notícias veiculadas nesse Brasil pandêmico viu, no trágico ano de 2020, um caso de preconceito racial de um morador de condomínio fechado, branco, de classe média alta, contra um jovem pardo entregador do tipo popularmente conhecido como “motoboy”. Ali o preconceito foi sem véu, pois o homem branco disse abertamente para o rapaz, apontando o próprio braço alvo: “você tem inveja da minha cor”.

Quem circula pelo trânsito das capitais, citamos São Paulo, porque é aqui que vivemos, vê no motoboy um sujeito a ser demonizado. Espécie de Saci urbano sobre duas rodas, o motoboy pinta e borda em manobras ousadas e desrespeito às regras de trânsito, sempre com pressa, sempre urgente. Afinal, as pessoas querem logo a entrega dos seus bens, dos seus documentos, das suas pizzas… as que demonizam os entregadores motorizados são as mesmas que precisam “pra ontem” dos serviços dos motoboys. O motoboy, esse trabalhador urbano do século XXI, é imprescindível para a logística de tudo, sobretudo num quadro de pandemia de Covid-19, em que – apesar da quarentena cada dia mais frouxa – há um enorme número de consumidores de entregas nas residências. Os porteiros de prédio os destratam, os clientes os xingam. A classe média sobre duas rodas não quer nem saber de associação com os motoboys: quem entrega a pizza é o motoqueiro; o branco da Harley-Davidson de muitos milhares de reais é o motociclista, “o que come a pizza” – não confunda nunca, para não ferir os melindres destes intrépidos aventureiros de final de semana.

Enquanto o motoboy personifica tudo o que há de ruim no trânsito das capitais, outros elementos danosos não são percebidos pelo senso comum e tampouco são alvo de tanto ódio. De acordo com a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, entre 2014 e julho de 2020, foram quase 40.268 acidentes envolvendo motoristas bêbados em rodovias federais, com 36.999 feridos e 2.679 mortes. Obviamente, não estamos aqui defendendo a insegurança que os motoboys promovem no trânsito, – que não é pouca, sabemos disso – resultado direto da pressa que o capitalismo lhes impinge. Apenas atentamos para o fato de que o Brasil é a terra do jeitinho, do suborno, da desigualdade, da violência, da irresponsabilidade e os motoboys não são o único elo desta corrente. Por que as pessoas não odeiam os motoristas bêbados? Pelo contrário, o tal do “sertanejo universitário”, estilo musical dos mais populares do país, louva as peripécias de quem vive embriagado. Como sempre, o buraco é mais embaixo.

Os motoboys são em sua maioria negros; são trabalhadores braçais e pobres. De acordo com o estudo do Dieese, a remuneração média da categoria é de R$ 1.325,00, quase 40% inferior à dos demais trabalhadores (R$ 2.166,00). A maioria deles (56,8%) está na informalidade, sem direitos trabalhistas e benefícios como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), não contribuem para a Previdência e, portanto, não podem se aposentar nem receber auxílio-doença ou auxílio-acidente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), não têm direito a férias, 13º salário, auxílio-acidente, e demais conquistas da classe trabalhadora. Segundo a pesquisa, a maioria dos trabalhadores da categoria dos motoboys e entregadores (95,7%) é de homens, sendo que bem mais da metade (61,6%) são negros. Entre todos eles, 44% têm até 30 anos de idade. Enfim, a exemplo do entregador vítima de racismo explícito citado no início deste texto, os motoboys são negros, são jovens, são pobres, o perfil de gente que costuma frequentar as estatísticas da violência policial, dos assassinatos e do desemprego. Mais: são trabalhadores braçais, que ao longo da nossa história são vítimas de preconceito – basta lembrar, no Rio de Janeiro do século XIX era embaraçoso para uma pessoa “de bem” carregar um mísero pacote nas ruas da capital do Império, havia a necessidade de empregar um “escravo de ganho” (escravizado de aluguel) para transportar coisas ou até para ser transportada em liteiras. O país é amante da desigualdade, o trabalhador braçal é aquele que não merece respeito da sociedade branca bem-nascida… é aquele cujos filhos não deverão cursar uma universidade e sim repor a massa de trabalhadores rurais, empregadas domésticas, serventes, operários, motoboys… sim, para a elite escravagista brasileira, o trabalhador deve apenas exercer a sua função e servir como reprodutor, como era nos tempos da escravidão.

Mas não é só. Vamos nos recordar: uma das principais causas da nossa desigualdade é a indistinção entre o público e o privado por parte da elite. As ruas, espaço público por natureza, é repleta de atores que reivindicam a sua propriedade. Porque a coisa pública em nosso país tem dono e não pode ser a classe trabalhadora, maioria esmagadora da população. A luta de classes também se faz presente sobre o asfalto das metrópoles brasileiras. Os ricos e a classe média que os mimetiza tentam colocar as vias públicas dentro dos seus ativos – talvez isso explique o grande sucesso dos carros do tipo SUV e pick-ups, caríssimos e sempre de porte avantajado. Talvez exprima esse desejo dos ricos e da classe média em ocupar mais da via pública, em ter mais espaço sob o seu controle. O caos urbano promove enormes congestionamentos, o que acaba por frustrar os donos das SUVs e outros carros de “bacana”, ávidos por testosterônica velocidade. Eis que surge o motoboy, o trickster das ruas, cavalgando uma “motoca” de baixa cilindrada de dois mil reais, preto, pobre, trabalhador que precisa ser transgressor, mas que consegue se locomover, serpenteando entre os automóveis imóveis dos donos do papel. O motoboy representa o povo brasileiro, que precisa fazer malabarismos constantes e usar a malandragem como arma de sobrevivência para não ser esmagado pela elite necropolítica neoliberal. Por isso sua imagem permanece desagradável aos olhos daqueles que veem a desigualdade como projeto de país.

Por: Fabio R. Saez Sola.