Eis que o verbo se fez carne: a conexão das candidaturas presidenciais com o Brasil profundo

Eis que o verbo se fez carne: a conexão das candidaturas presidenciais com o Brasil profundo. Lula, Ciro e Bolsonaro
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Por Brand Arenari – No Brasil, um dos caminhos seguros de bom desempenho em eleições nacionais é a capacidade do candidato se vincular visceralmente com histórias, dramas e afetos de grande parte da população brasileira. Não é uma conexão formal através de propostas e ideias, produz-se uma comunicação inconsciente e direta através do corpo, de gestos, olhares e trejeitos que se conectam imediatamente a um universo de afetos e memórias ocultas dos eleitores, despertando arquétipos adormecidos, produzindo simpatias “espontâneas”, como foram bem descritas no conceito de “habitus” por Pierre Bourdieu.

Nesta dinâmica, a mensagem portada se confunde com a história do portador, e ainda mais, está no corpo de quem a porta, bem aos moldes daquilo que o grande sociólogo alemão Max Weber chamou de “profeta exemplar”. Essa constatação torna-se mais dramática e palpável quando miramos o cenário das próximas eleições presidenciais e suas maiores candidaturas até o momento, como também a possibilidade de uma terceira candidatura de sucesso.

Hoje temos duas possíveis candidaturas que se encaixam no que foi narrado acima. Lula e Bolsonaro despontam como forças eleitorais nacionais não apenas porque representam polaridades discursivas de um país dramaticamente dividido, mas também porque representam a síntese de trajetórias regionais corporificadas, carregam nitidamente parte do Brasil em seus corpos, quem quiser ser uma alternativa competitiva a eles terá que estabelecer uma comunicação direta com esses Brasis profundos, em que símbolos concretos “falam” mais alto que grandes programas mediados pela razão.

Darcy Ribeiro, de forma genial, delimitou bem as fronteiras e dimensão desses Brasis e seus respectivos tipos sociais: narrou e descreveu o “Brasil sulino”, o “Brasil Caboclo”, o “Brasil crioulo” e mais dois brasis que merecem nossa atenção aqui: “O Brasil caipira” e o “Brasil sertanejo”. Por mais que Bolsonaro e Lula sejam populares no Brasil inteiro e “falam” para todo país, estão mais diretamente vinculados a esses últimos dois brasis, respectivamente. Bolsonaro traz fortemente consigo o “Brasil caipira” ou a “Paulistânia”, isto é, as formas de vida que tiveram suas origens num passado cuja a fronteira se estendia desde o Paraná, passando por São Paulo e cruzando Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, um Brasil criado pela aventura dos Bandeirantes, distante
dos grandes centros de riqueza e do Brasil “brilhoso”. É um “brasil” de raízes velhas e profundas, mas que devido a sua opacidade do passado, nos parece novo, e que se vê em parte em Bolsonaro, até mesmo em ressentimento ao “brasil brilhoso” e conhecido de todos nós.

Por outro lado, Lula porta em si e na sua história o sonho e a realização do migrante sertanejo que se espalhou pelo Brasil, mas sem deixar de ser e reconhecer-se com as caraterísticas de suas origens. O sonho e a realização de quem atravessou a fome e a miséria e “venceu” na vida, mas “venceu” sem abandonar suas origens, com a esperteza da sobrevivência de João Grilo, com a santidade profana de Padre Cícero, com persistência, típica de sua gente, que antes de tudo é forte, como escreveu Euclides da Cunha. Esse tipo social que migrou do Nordeste para várias partes do país, e no Rio ajudou a construir a espontaneidade do carioca, e em São Paulo enfrentou a luta diária contra o preconceito ao “Baiano”, e que levou a esperança do candango em Brasília.

Há algo de vitória e reconhecimento por parte da população nestes candidatos, Bolsonaro também é visto como o “caipira” que “venceu”, superou a barreira dos “cultos” e “intelectuais” daquele “Brasil brilhoso”, além de nos ligar à um mundo de afetos muito próximos de todos nós, como disse Regina Duarte ao descrevê-lo: todo mundo tem um
tio, um pai ou um avô como Bolsonaro, e que segundo ela, existe doçura humana por traz desse conservadorismo.

Aquele que quiser romper esse quadro, e Ciro Gomes parece ser o mais capaz disso, pois apresenta o projeto de ideias mais bem acabado, inovador e robusto e uma candidatura mais madura dentre os postulantes à terceira via, terá que enfrentar essa dinâmica eleitoral de conexões profundas, ou mesmo, construir a sua própria conexão através da diversidade e pluralidade de brasis não representados, que podem ver-se através de sua história. Mas para isso, as ideias do projeto Ciro Gomes precisam tornar-se uma mensagem concreta que possa ser sentida e tocada por grande parcela do povo brasileiro, povo este que necessita sentir-se parte dessa mensagem. Inspirado pela belíssima poesia do Evangelho de João, diria que o “verbo” de Ciro precisa fazer-se carne e habitar entre nós.

Por Brand Arenari, doutor em Sociologia pela Universidade de Humboldt-Berlim (Alemanha) e Professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).